sábado, 9 de julho de 2011

A BOIUNA & O BOTO


A boiuna é uma serpente que faz parte de um mito hídrico de origem ameríndia americana, mais localizado nas águas da bacia amazônica. Trata-se de uma enorme serpente escura, voracíssima, capaz de tomar a forma de qualquer embarcação, uma canoa, um veleiro ou de sedutora mulher. Ao atravessar os rios, a boiuna produz um ruído que tanto lembra o das cachoeiras quanto o das hélices das grandes embarcações. Seu prestígio vem do pavor provocado pela sua voracidade e pela enorme capacidade que tem de se disfarçar, de mudar de forma. Nenhum culto lhe é devotado. O que se sabe é que para ela convergem mitos como os da mãe-d’água, da iara, do boto e outros. Para os indígenas, matá-la é pior que encontrá-la, pois isto significaria a própria morte e a destruição da tribo.

O nome vem mboya, cobra, e una, preta, na língua tupi. Os olhos do monstro são luminosos como dois faróis ou archotes que desnorteiam todos os que estão por perto. As populações ribeirinhas anunciam sua presença nos rios, lagos, lagoas e igarapés sempre com muito temor. Vive na parte mais funda dos rios e mede, segundo os depoimentos, entre 20 e 45 metros de comprimento. Quando sobe à terra, deixa sulcos que se transformam em igarapés.
É conhecida também pelos nomes de cobra-norato, mãe-do-rio e senhora-das-águas. O mito teria derivado de histórias relacionadas com a sucuri ou sucuruji, serpente da água que se alimenta de pequenos animais, que chega mesmo a atacar e matar os maiores. Em Belém, acredita-se que uma boiuna esteja com a cabeça na Sé e a cauda na igreja do Carmo. No dia em que a boiuna despertar e for para o mar, diz a lenda, a cidade desaparecerá. De certo, porém, ainda segundo a lenda, é que quando a boiuna se mexe a terra treme.
A sucuri ou sucuruji, como se sabe, é uma serpente da família das boídeos (família de cobras tropicais com cerca de quarenta espécies que incluem, entre outras, a jiboia), encontrada em muitas regiões da América do Sul. É a maior serpente do mundo, podendo alcançar de dez a doze metros de comprimento; vive à beira dos rios ou mergulhada em lagos e lagoas; alimenta-se de vertebrados de tamanho variado, que são mortos por ela por constrição. E também conhecida pelo nome de anaconda, nome este importado da Asia, da língua tâmil (sul da Índia e Ceilão), palavra que significa “a que mata elefante”.
O tema da sucuri, no folclore brasileiro, aparece num ciclo que tem o nome de “Cobra Grande”. Nesse ciclo, a cobra-grande ou sucuri é a senhora dos elementos e, como tal, tem poderes cosmogônicos, sendo dela o dia e a noite. Esse ciclo foi aos poucos se fragmentando, tomando a forma de histórias, contos maravilhosos, referentes a cultos astrolátricos que nos falam de constelações e de tarefas agrícolas.


Conta a lenda que a cobra-grande, também chamada de coisa-má, engravidou uma cunhã, que deu à luz uma cobra, que passou a perseguir a mãe por toda a parte. A cunhã, contudo, conseguiu esconder-se de tal modo que nunca mais foi encontrada. Desiludida, a cobra voou para os céus, tomando a forma da constelação do Serpentário, cujas estrelas anunciam o início do verão na região amazônica. Essa constelação também brilha muito em setembro, marcando o início do plantio nas roças, época importante para Guaraci, o Sol.


A constelação do Serpentário é austral, sendo chamada pelos gregos de Ophiuchus, visualizada como um homem que segura uma serpente dividida em duas partes, Serpens Caput e Serpens Cauda. Os gregos identificavam a figura humana como a do seu deus médico Asclépio, que aprendeu as artes da cura com o centauro Kiron. Na Idade Média, astrólogos judeus viram Moisés na figura humana desta constelação; os cristãos, uns, nela viram São Paulo com a víbora que lhe picou a mão e outros nela identificaram São Bento, de pé, entre espinhos. Ressalte-se que a constelação do Serpentário, astrologicamente, sempre apareceu ligada a influências médicas e à produção de drogas em geral a partir de ervas, como no caso dos monges beneditinos, que fabricavam um famoso álcool.
A sucuri não é venenosa, sua cor é pardo-azeitonada, com uma grande série dupla de manchas pretas. De hábitos semi-aquáticos, alimenta-se de peixes, aves e pequenos mamíferos que surpreende nos bebedouros (capivaras, antas, veados, bois etc.). Utilizando a sua extraordinária força muscular, enrosca-se nas presas, cujos ossos tritura, preparando assim o alimento para a deglutição. Apesar de poder dominar animais de maior porte (há registros de sucuris que atacaram crianças e adultos), só os ataca eventualmente, preferindo os menores.
Por oportuno, transcrevemos aqui um trecho do livro Viagem pelo Brasil, de J.B. von Spix e de C.F.P. von Martius, sobre os mitos amazônicos. Spix e Martius, alemães, vieram ao Brasil em 1817 com a missão científica austríaca, aqui permanecendo por três anos para fazer principalmente um levantamento da fauna brasileira, chegando a classificar 3.381 espécies de animais: “A dar-se crédito às inúmeras narrações de pessoas simplórias, as profundezas do Amazonas hospedam, além dos grandes anfíbios acima mencionados, ainda uma espécie de cobras-de-água, que são peculiares a esse rio e aos seus maiores afluentes, porém, que evitam as águas das ipueiras e lagoas vizinhas. Têm-se visto enormes serpentes, esverdeadas ou pardas, nadando como se fossem troncos flutuantes, e, segundo dizem, crianças e adultos já foram arrebatados, quando acaso elas saem em terra. A esse monstro os índios dão o nome de Mãe-d’Água (paranamaia, de paraná, rio, e maia, mãe), temem encontrá-lo e ainda mais medo têm de matá-lo, porque então é certa a própria ruína, bem como a de toda a tribo. Um velho remador de nossa canoa afirmava haver avistado essa terrível cobra-d’água perto do Gurupá, e, dois dias depois, ela enroscou e arrebatou o seu irmão. Este passeava com a noiva, à margem do rio, e, chegando a um ponto onde havia no fundo um barro preto fino, com que as índias tingem os tecidos de algodão, ela pediu-lhe que colhesse uma mão-cheia. O rapaz mergulhou, mas a noiva em vão o esperou por muito tempo. Quando, depois, observou, aflita, mais de perto, o lugar onde ele sumira, não viu mais a sombra dele no fundo, e, no meio do rio, a Mãe-d’Água sacudia a terrível cauda furiosamente e o noivo lhe tinha sido arrebatado para sempre. Já desde milênios se preocupa a imaginação dos povos com tais idéias de cobras gigantescas, habitantes do fundo das águas, e que só raramente emergem das mesmas, para terror e desgraça dos homens.
Na Europa, admiramos o primor artístico do Laocoonte, originado dessa lenda; na América, a fantasia toma proporções colossais no cenário agigantado, quando delineia esses monstros. O aparecimento, tantas vezes confirmado, da serpente do mar nas costas norte-americana deu ensejo a semelhante crendice acerca das águas, tão cheias de vida, do Amazonas. Cumpre dizê-lo, porém: os índios enfeitam os mais simples fatos com exageros fabulosos. Assim, eles contam que, de quando em quando, aparece a Mãe-d’Água com um diadema de brilhantes ou deixa emergir a cabeleira luminosa fora do rio, quando o nível da água baixa em extremo, com isso determinando a propagação das doenças decorrentes. A firme crença, com que os índios contam tais lendas, é uma das feições do seu caráter, e o viajante, neste país, deve ficar prevenido disso, para descontar a parte da imaginação nos fatos maravilhosos que ouvir da boca dos Peles-Vermelhas. Florear os mais simples fenômenos da natureza com galas da fantasia é a única poesia de que é capaz a alma soturna e obscura do índio. De igual modo, quase todos os fatos naturais, que se assinalam por qualquer distintivo, logo se transformam em fábulas. De muitos animais e plantas, os índios contam as maiores extravagâncias. As lendas das Amazonas, de homens sem cabeça e com a cara no peito, de outros que têm terceiro pé no peito ou possuem cauda, do conúbio de índias com os macacos coatás etc., são idênticos produtos da fantasia sonhadora dessa raça de homens.”
Alguns estudiosos aproximam o mito da lara ao das ondinas e sereias do Mediterrâneo. Iara (Yara, senhora, na língua tupi) seria o nome literário da Mãe-d’Água. As ondinas são ninfas da mitologia escandinavo-germânica, ninfas do amor que vivem nas águas, seduzindo, desencaminhando marinheiros e navegadores. Na mitologia grega, as sereias, um ser metade peixe (a parte inferior do corpo) e metade mulher lindíssima (a parte superior do corpo), são atraentes e perigosas. Antigos navegadores falam delas, do seu canto mavioso; quem o ouvisse não resistiria. Atraíam os marinheiros, que, lançando- se ao mar, pereciam afogados. De acordo com o mito, habitavam a costa sul da Itália. Aparecem em várias histórias, sendo a mais famosa a de Ulisses (Odisseia), de Homero.
O mito da Mãe d’Água, ou Iara, ganha, contudo, outro sentido, ampliando-se bastante, se o associarmos, como de fato devemos fazê-lo, ao do Boto. O boto (butis, em latim, barrica, odre de vinho) é um cetáceo encontrado no mar e em rios, em várias partes do mundo, sendo chamado também de golfinho e toninha. Nos mitos amazônicos, o Boto é um personagem que seduz as moças que vivem perto dos rios. Por esse motivo, o Boto passa por ser o pai de crianças com paternidade desconhecida. Há registros de depoimentos sinceros de mulheres ribeirinhas que confirmam essa história. É comum, por exemplo, no Pará, a alusão ao “filho do boto”, isto é, a criança sem pai.
O mito do Boto nos conta que ele, perto do anoitecer, transforma-se num belíssimo jovem, branco, grande dançarino e bom de copo; surge nos bailes, ficando todas as mulheres caídas por ele. Um fato notável: jamais esse Boto-Homem tira o chapéu da cabeça. Explicação: como o boto, o misterioso dançarino tem um orifício no alto da testa, razão pela qual usa o chapéu, para ocultá-lo. Depois de dançar e brincar com todas as belas jovens, desaparece misteriosamente. Volta à água, tomando a sua forma primitiva. Uma ou mais das jovens presentes aparecerão grávidas, tendo, no tempo devido, um filho, o “filho do boto”.

Este mito é muito diferente do mito do Ipupiara, uma espécie de homem marinho, como narram os índios, inimigo dos pescadores, que vira embarcações, que afoga e mata. O Boto, pelo contrário, é um sedutor irresistível, sente o cheiro de mulher a enorme distância. Pode virar às vezes as embarcações, quando vislumbra uma mulher que lhe apetece. Nesse momento, vira Boto-Homem, mantendo relações sexuais com a escolhida. Não há registros de acontecimentos dessa natureza que tenham provocado a morte da mulher. As mulheres que tiveram contacto com o Boto-Homem, conforme vários depoimentos, sempre guardaram do acontecimento uma lembrança muito agradável...
Uma versão tardia do mito do Boto nos revela, contudo, uma dominante feminina ao lado da masculina. Essa versão nos fala que o Boto se transforma muitas vezes numa sedutora mulher, a Mãe-d’Água, que atrai os jovens para os rios, seja para manter relações com eles ou para puni-los por terem feito mal a alguma cunhã. Esta versão introduz o hermafroditismo no mito, provavelmente uma contribuição das populações ribeirinhas mestiças da Amazônia. Dessas histórias sai por exemplo a grande fama que o olho de boto tem como talismã, uma infalível eficácia nas coisas do amor, no erotismo. Mas, para funcionar, o olho do boto deve ser convenientemente preparado numa pajelança (rituais que o pajé executa em determinadas ocasiões com o objetivo de cura ou magia).
Lembremos que há uma longa tradição que nos fala do sucesso do delfim, isto é do boto, na magia amorosa. Ele tem um papel de destaque na mitologia grega. Está relacionado com diversas divindades, Apolo (Delphinios), Poseidon, Eros, Dioniso e Afrodite. No mundo grego e romano, o delfim, quanto à magia amorosa, era de Afrodite. Os delfins eram tidos como voluptuosos e enamorados, sendo a eles atribuído também o sentimento da saudade (pothos). Os gregos viam nos movimentos do delfim, seu dorso descendo e se elevando acima da superfície das águas, uma grande semelhança com os movimentos que o corpo do homem faz no ato sexual.
Uma das melhores histórias que a tradição conserva desde a antiguidade pela via mitológica sobre o delfim é a do seu afeto pelo homem. Com efeito, muito se fala sobre ele como salvador de náufragos. Por isso, o delfim foi utilizado pela iconografia cristã para representar o amor de Cristo pelos humanos, amor que, através da Eucaristia, os tira da condição de náufragos. O delfim é, assim, um agente do retorno daquele que se perdeu na imensidão oceânica da vida. O perdido retorna à matriz da qual todos saíram Não é outra, aliás, a origem da palavra delfim (delphys, em grego, quer dizer matriz, seio, entranhas, o umbigo, e, por extensão, o centro da terra). Por isso é que o deus ApoIo instalou o seu oráculo em Delfos, lugar de renascimento para aqueles que iam procurar a sua sentença oracular. Mais ainda: a palavra grega para designar irmão é adelphos, uma palavra que exprime a ideia de extração ou a separação de uma mesma matriz, de um mesmo seio. Dentro deste campo semântico pode ser colhida também a palavra delfim como a usam os franceses como título do primogênito do rei da França.
É nesta perspectiva que esse mamífero aquático, o delfim, é o mais difundido símbolo da salvação, da transformação e do amor. É por essa razão, segundo os gregos, que o deus Poseidon colocou o delfim nos céus como constelação, junto das constelações de Aquário e da Águia. Amigável, brincalhão e inteligente, o delfim se integrou a várias expressões mitológicas e religiosas. Os etruscos, gregos e cretenses diziam que o golfinho salvava os náufragos de afogamento ou levava as almas dos que morriam para as ilhas dos Abençoados. O aproveitamento das histórias do delfim pelo Cristianismo encontra certamente justificativa pelo fundo mítico que já estava pronto, conforme se explica acima. Como emblema do Cristo sacrificial, o delfim pode aparecer perfurado por um tridente ou com o símbolo secreto da cruz veiculado pela âncora. Quando entrelaçado com a âncora, o delfim se torna um símbolo da prudência (velocidade controlada).
Voltando às serpentes, registremos que no folclore brasileiro, popularmente, há dois tipos delas, a de sangue quente, não peçonhenta, e a de sangue frio, venenosa. Quando a de sangue frio vai beber água num rio, diz a tradição popular, deixa seu veneno escondido numa folha. Ainda segundo a tradição possivelmente herdada de Portugal, as cobras costumam procurar mulheres que amamentam, para sugar-lhes o peito, dando o seu rabo à criança. Uma simpatia eficaz para prender cobra: a mulher deve virar o cós de uma saia branca; se estiver menstruada, basta tocar numa cobra para matá-la.
A lenda da cobra-norato é muito popular no norte brasileiro. Diz-se que engravidada pela boiuna (como Boto), numa região próxima ao município de Óbidos, entre os rios Amazonas e Trombetas, uma cunhã pariu duas crianças. Pressionada pelo pajé, atirou-as no rio, onde se criaram como cobras-d’água. O menino chamava-se Honorato (Norato) era de boa índole; sua irmã, porém, chamada Maria Caninana, perseguia animais, virava embarcações, matava os náufragos. Tantas fez Maria Caninana que seu irmão Norato para poder viver em paz a matou. Norato gostava muito de dançar. À noite, ele se transformava em rapaz elegante e frequentava as festas. Na margem dos rios, quando isso acontecia, deixava o seu couro imenso. Para se quebrar esse encanto, dizia-se que seria preciso que alguém com coragem se aproximasse dele como boto e deitasse leite em sua boca; na cabeça de Norato como boto seria preciso também dar uma cutilada de sair sangue. Se isso fosse feito, ele voltaria a ser inteiramente humano. Diz a lenda que foi um soldado que vivia em Cametá, no Pará, que realizou esta proeza, libertando Norato para sempre, mas isso nunca foi inteiramente confirmado.
A ideia de que a serpente expresse ao mesmo tempo a polaridade feminina e masculina é encontrada em muitas tradições. É a serpente neste sentido um ser cosmogônico, das origens, dos momentos da formação inicial do cosmos, dos tempos primordiais, quando as polaridades ainda não estavam bem definidas. Por isso, em muitos mitos ela oscila entre o macho e a fêmea. Como fêmea, ela se enrosca, envolve, estreita, abafa, engole, devora, digere. Noutros momentos, ela assume um papel masculino, se apropria, é poder, conquista. A fêmea é portadora da vida, é princípio anterior e, como tal, ela é quem dá origem ao masculino, como está aliás em todas as mitologias. O mito da boiuna, como tantos outros de mesma elaboração, não é mais que uma reminiscência dos momentos originais, quando os sexos ainda não estavam totalmente separados ou definidos.
Nas primeiras elaborações cosmogônicas, o ser é andrógino. A chamada arte primitiva, dos povos africanos ou indígenas, ou a oriental, principalmente a da Índia (Shiva), escandalizam ainda hoje muitos ocidentais ignorantes e/ou desinformados pela sua simbologia erótica. Não chegou e nunca chegará talvez ao grande público que no plano da sexualidade ninguém é totalmente masculino ou feminino. O mito da boiuna não é mais do que uma tradução desta dualidade num nível mais elevado e extensivo, no contexto dos povos ameríndios. O fenômeno da androginia aparece no início e ao final dos tempos. A mitologia, de um modo geral, sempre participou dessa compreensão, antecipando-se não só às conquistas da Biologia como da Psicologia. Na mitologia grega, por exemplo, inúmeros e fortes traços andróginos são encontrados em deuses e heróis como Dioniso, Adônis, Aquiles, Palas Atena, Tirésias, Castor e Polux, Ártemis etc. A rigor, toda divindade grega é bissexual. Por isso, as tendências ao transformismo ou travestismo que muitas delas apresentam.
Os mitos primitivos deixam claro que a dualidade em que o ser humano vive é falsa, mentirosa. As oposições fundamentais do céu e da terra, do dia e da noite, do calor e do frio, do masculino e do feminino nunca se resolvem totalmente. A plenitude do ser só se resolve momentânea e precariamente pela fusão das partes numa integração sempre buscada, conquistada e perdida. O masculino e o feminino não são mais que dois aspectos de uma multiplicidade de opostos que sempre se interpenetram.
Não é por outra razão que o mito da boiuna aparece dentro de um ciclo indígena maior sobre a origem da noite. Nesse mito, a boiuna casa a filha e manda-lhe a noite presa num caroço de tucumã. Os emissários da boiuna, no meio do caminho, muito curiosos, abrem o caroço e libertam a noite. A tucumã é uma palmeira que tem um caroço escuro. Como o ovo, o caroço simboliza a germinação, o princípio da manifestação a partir do qual aparecerá a dualidade e se desenvolverá a multiplicidade. Esta ideia está presente em todas as mitologias. Ovos e caroços nos mitos contêm em potencial a diferenciação progressiva dos seres.
Raul Bopp (1898-1984), descendente de alemães, nasceu no Rio Grande do Sul. Desejando conhecer o mundo, saiu pelo Brasil afora. Nesse meio tempo fez o curso de Direito, completado em três capitais (Recife, Belém e Rio de Janeiro). Na Amazônia, não demorou muito, como disse, para começar a acreditar nos seres fantásticos da floresta: o Minhocão, o Curupira, o Caapora, o Mapinguari. Ouviu muitos “causos” dos canoeiros. Poeta, participou do chamado grupo Verde e Amarelo do Modernismo brasileiro. Publicou, em 1931, o livro-poema Cobra Norato, em versos brancos, por ele mesmo definido como “obra de audácias extragramaticais e uma movimentação da matéria de camada popular”. Prendendo-se a esse grande tema das melhores tradições indígenas do norte do Brasil, o da boiuna, o poeta realizou uma fusão da linguagem poética e dialetal com a visão fantástica de uma Amazônia em que os cipós e as raízes se entrelaçam com as evocações de animais fabulosos. Em 1932, ingressou na carreira diplomática. 
Dentro do movimento modernista deflagrado em 1922, a literatura teve um papel muito importante, nela se destacando principalmente a produção poética. Uma das vertentes da produção poética foi a nacionalista, enfatizando-se especialmente o folclore e os mitos históricos brasileiros. Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Menotti Dei Picchia, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Raul Bopp, Augusto Meyer e outros, todos se voltaram para os temas brasileiros. Oswald de Andrade, em 1924, lança o Manifesto Pau-Brasil e Menotti DeI Picchia o Manifesto Verde-Amarelo. O objetivo de ambos era o de levantar e usar um ternário artístico exclusivamente brasileiro.
É no quadro sumariamente acima apresentado que o livro-poema de Raul Bopp se situa. Cobra-Norato e outras produções como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, constituem as três principais obras poéticas sobre a mítica brasileira segundo a proposta modernista.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

À MARGEM DO AMOR CORTÊS


Parece estar hoje suficientemente provado que o século XII marcou, na Provença, o apogeu do trovadorismo e do amor cortês graças, em grande parte, à poderosa ação que a Igreja desenvolveu sobre a sociedade feudal a partir dos fins do século X. Com efeito, deixando de lado as implicações se­cundárias, veremos que a princípio tal ação significou, por um lado, o reforço do poder espiritual sobre o temporal e, por outro, contribuiu para que fossem revigoradas as estruturas que os próprios senhores ameaçavam destruir à custa de guerras e disputas entre si.

Num outro plano, ver-se-á que esta influência da Igreja veio introduzir um novo elemento nos quadros da época — o importantíssimo papel que a mulher passará a desempenhar — elemento que se liga íntima e diretamente ao trovado­rismo e ao amor cortês, e dá margem, inclusive, ao aparecimento de uma instituição sui generis, as Cours d'Amour, assembleias femininas que legislaram sobre a matéria amorosa, rediscutiram a galanteria e consagraram o adultério.


Extensa literatura já foi publicada sobre o assunto desde os autores que lhe são contemporâneos ou que de­le estão muito próximos até os que,o o estando, puderam, contudo através de um paciente trabalho de pesquisa, levan­tar o véu que escondia este suposto período de trevas. Temos assim os romances de Chrétien de Troyes, as poesias de Ber­nard de Ventadour, o catecismo do amor cortês, De Arte Amandi, do célebre André Le Chapelain, as informações de Jehan de Nostredame, irmão do famoso astrólogo Nostradamus, Stendhal, en­tre as fontes mais antigas, e Gaston Paris, Marc Bloch, Faral, Gustave Cohen, Belperron, A. Jeanroy como os estudiosos moder­nos. 

O fato é que, examinados os documentos, confirmados uns, desprezados outros, com uma descoberta sensacional de quando em vez, como é o caso de De Arte Amandi, que só saiu do pó recentemente, não cabe dúvida que no século XII a mulher ganha o primeiro plano na sociedade feudal e, dos meados desse século em diante, tornar-se-á a inspiração dos trovadores e o ídolo dos cavaleiros, ideal divinizado que a todos domina e a quem se há de prestar obediência e respeito.

A mulher até esse século ocupara uma posição social bastante inferior, sob o jugo férreo do macho, que a man­tinha encerrada no âmbito familiar, onde não havia lugar para outras manifestações poéticas senão as das canções de gesta, do período heroico da cavalaria, eivadas de violência e brutalidade. Nada mais coerente, todavia, se considerarmos que o casamento até então se resumia a um contrato do qual a mulher não participava, acerto entre senhores, que dispunham livremente seu corpo e da sua vontade.


Ainda que se vislumbrassem algumas alterações, a atitude da Igreja era severíssima com relação às mulheres: “soberana peste”, “porta do inferno”, “arma do diabo”, “sentinela avançada do inferno”, são nomes pelos quais, dentre muitos ou­tros, os padres da Igreja as designavam. O mesmo se poderá di­zer dos trovadores (Guillaume IX, Jaufré Rudel, por exemplo) que ainda no século XII as tratavam com grosseria e insolência tais que nos espantamos hoje do vocabulário empregado. Mas, jus­tiça seja feita, o próprio Guillaume IX, o debochado e excomungado duque da Aquitânia, já no segundo grupo das suas canções mostra-nos que também podia haver decência e correção, embora as suas pretensões estivessem bem longe do amor platônico e casto que a cortesia impunha. ­


Com o correr do tempo, a Igreja começou, pois, a intervir no sentido de tolher os abusos dos senhores feudais, cujo comportamento não só contrariava os preceitos do Cristia­nismo como também os levaria à própria destruição. Isto por­que, durante boa parte da Idade Média o direito de guerra privada foi considerado como inviolável pelo poder civil e pela mentalidade em geral. A paz, entre esses senhores, oferecia dificuldades cada vez maiores para ser concretizada. Urgia, assim, que se tomassem medidas práticas, leis, rituais, amea­ças com o inferno, condenações, tudo no sentido de assegurá­-la. É certo que a primeira tentativa já se fizera, com o Concílio de Charroux, em 989, quando a Igreja lançou o seu anátema contra aqueles que entrassem à força numa igreja e dela levassem algo, contra os fortes que atacassem os fracos, contra o roubo, contra a violência e contra a rapinagem.


Como se vê, eram noções novas, que o mundo pa­gão não conhecera, interdições nem sempre respeitadas, mas sempre válidas para impor sanções aos que transgredissem na medida em que o poder espiritual se consolidava. Em 1023, o Bispo de Beauvais obtém do Rei Roberto, o Piedoso, um juramento pe­lo qual não mais se maltratariam as mulheres, os padres e as crianças nem mais seriam violadas as casas dos camponeses e as igrejas. O concílio de Perpignan (Elna), a seguir, renova tais proibições e, em 1095, Urbano II, ao passar por Clermont, ratifica-as e impõe o fracionamento das guerras, de modo a reduzi-las no tempo.

Contudo, a situação carecia de medidas ainda mais práticas e eficazes. E a Igreja as toma, envolvendo a Cavalaria e encaminhando-a a uma ação além-fronteiras. Assim é que esta instituição, talvez a mais característica da Idade Média, transforma-se, aos poucos, democratiza-se, pois mesmo aqueles em condição socialmente inferior, servos, vassalos, podiam chegar até ela. Nul ne naît chevalier, Le moyen d' être anobli sans lettres est d'être fait chevalier, são má­ximas correntes na época.

Foi então que a Igreja mostrou à nobreza o caminho do Oriente: acabar com os infiéis e libertar o túmulo de Cristo. Vieram as Cruzadas, que, se não obtiveram o resultado almejado, contribuíram enormemente para impulsionar o comér­cio, tanto por terra como por mar, transformando a vida dos senhores feudais. As relações se intensificam, expedições e caravanas chegam à Síria, à Palestina, à África do Norte e até ao Mar Negro. Era o tempo das grandes feiras: Champagne, Brie, Ile-de-France. As estradas e os portos se animam; a influên­cia oriental não tarda a chegar, a luz asiática banha a Europa e lhe faz conhecer a vertigem do tráfico, os tecidos preciosos, os perfumes violentos, os costumes suntuosos. Acima de tudo, multiplica-se o gosto do risco e da aventura, a ânsia de movimento, que, na Idade Média, coexiste de modo chocante com o mais forte e profundo apego à terra.

Temos assim o quadro esboçado: reabilitada pela Igreja, responsável pela vida material do castelo, já que o homem estava longe, ent
regue a grandes empreendimentos religiosos e comerciais, a mulher adquire importância. Eis como o historiador Faral nos informa sobre o fato: a prosperidade material, acompanhada de uma nova cultura, tinha desenvolvido nas cortes, desde o fim do século XI, uma forma de vida social on­de o luxo, as festas e os jogos de espírito exigiam natural­mente a participação das mulheres. O exemplo veio, parece, do Midi: ele se propagou para o norte graças às expedições militares empreendidas em comum e graças às alianças matrimoniais.

A mulher conquista então na sociedade um lugar cada vez mais proeminente e respeitado. O homem se apercebeu instintivamente de que a mulher não mais poderia ser somente conquistada pelo di­reito da força; que ele a obteria muitas vezes pelo seu méri­to, em se fazendo valer; que ele devia agradar; que ele devia professar um respeito que lhe abrisse os caminhos do coração. Eis nascida a noção, eis nascido o sentimento que se chamará amor cortês: uma mística nova, uma exaltação de alma que, pelo amor à mulher, não tem outro sonho senão o de atingir as per­feições da virtude cavalheiresca e da pureza do coração, pelas quais o amante merecerá sua recompensa. E eis, ao mesmo tempo, a mulher transformada em juiz".

Esta posição da mulher no século XII é que vai explicar como nasceu na Idade Média a poesia amorosa dos trovadores e porque todas as manifestações poéticas,
Chansons d’ Amour, Tensons, Jeux Partis e os Romances de Chrétien de Troyes elegem o amor para tema. E mais: explicará porque trovadores e cavaleiros, num determinado momento histórico, se dirigem às mulheres para que elas, organizadas em assembleias, as Cours d'Amour, decidam e deem a última palavra sobre as questões do amor e da galanteria. ­

Eis, à guisa de informação, os preceitos e as regras do amor, conforme André Le Chapelain, em
De Arte Amandi os apresenta, de modo a codificar não só o amor cortês mas toda a poesia trovadoresca.


Preceitos (Livro 1 — Capítulo VII) — 1) Foge da avareza como de um flagelo perigoso e pratica, ao contrário, a prodigalidade; 2) Evita sempre a mentira; 3) Não sejas maledicente; 4) Não divulgues os segredos dos amantes; 5) Não tomes muitos confidentes para o teu amor; 6) Conserva-te puro para a tua amante; 7) Não tentes conscientemente tomar a amiga de outro; 8) Não procures o amor de uma mulher, se tiveres vergonha de desposar; 9) Sê sempre atencioso a todas as ordens das mulheres; 10) Procura sempre ser digno de pertencer à cavalaria do amor; 11) Em todas as circunstân­cias, mostra-te polido e cortês; 12) Entregando-te aos praze­res do amor, não ultrapasses o desejo de tua amante; 13) Quer dês ou recebas os prazeres do amor, observa sempre um certo pudor.


ARLETY E ALAIN CUNY - LES VISITEURS DU SOIR - MARCEL CARNÉ, 1942


Regras (Livro II — Capítulo VIII) — 1) O pretexto do casamento não é uma desculpa válida para o amor; 2) Quem não é ciumento não pode amar; 3) Ninguém pode ter duas ligações ao mesmo tempo; 4) O amor deve sempre diminuir ou aumentar; 5) Não há sabor algum naquilo que o amante obtém sem o assentimento de sua amante; 6) O homem só pode amar após a puberdade; 7) Pela morte de seu amante, o sobrevivente esperará dois anos; 8) Ninguém, sem suficiente razão, deve-se pri­var do objeto de seu amor; 9) Ninguém pode amar verdadeiramente sem ser levado pela esperança do amor; 10) O amor deserta sempre o domicílio da avareza; 11) Não convém amar uma dama da qual ter-se-ia vergonha de fazer mulher; 12) O amante ver­dadeiro não deseja outros beijos que aqueles de sua amante; 13) O amor pode raramente durar quando é muito divulgado;
14) Uma conquista fácil torna o amor sem valor, uma conquista di­fícil dá-lhe o preço; 15) Todo amante deve empalidecer na presença de sua amante; 16) À vista súbita de sua amante, o coração de um amante deve disparar; 17) O amor novo expulsa o a­mor antigo; 18) Só o mérito torna digno o amor; 19) Quando o amor diminui, enfraquece depressa, e raramente refloresce; 20) O amante está sempre temeroso; 21) O verdadeiro ciúme faz sempre o amor aumentar; 22) Uma suspeita sobre sua amante, ciúme e ardor de amar aumentam; 23) Não dorme nem come aquele que paixão de amor consome; 24) Todos os atos do amante terminam no pensamento da amante; 25) O amante verdadeiro não encontra nada de bom naquilo que não agrada à sua amante; 26) O amante não saberia nada recusar à sua amante; 27) O amante não pode fartar-se dos prazeres de sua amante; 28) A menor suspeita le­va o amante a imaginar o pior de sua amante; 29) Não ama verdadeiramente aquele que possui uma luxúria excessiva; 30) O amante verdadeiro está sempre absorto pela imagem constante de sua amante; 31) Nada impede a uma mulher de ser amada por dois ho­mens; nem a um homem de ser amado por duas mulheres.

Alguns filmes relacionados com o tema acima:

Lancelot du Lac (Robert Bresson), Robin and Marion (Dick Lester), Monty Python and the Holy Grail. Les visiteurs du Soir (Marcel Carné), A Walk with Love and Death (John Huston), Silvestre (João César Monteiro), A Fonte da Donzela (Ingmar Bergman).


Ver neste mesmo blog "A Princesa Imperfeita".