terça-feira, 26 de agosto de 2014

CARÁTER (KARAKTER)

                         

O filme é de 1977, da Holanda, dirigido por Mark Van Diem, que inclusive divide o roteiro com Laurens Geels e Ruud Van Megen. No elenco, Fedja Van Huet, Jan Decleir, Betty Swchuurman e outros. Fotografia: Rogier Stoffers. Trilha sonora: Paleis Van Boem. 


Adaptação de um clássico da literatura holandesa, publicado em 1938, de autoria de Ferdinand Bordewijk, Karakter conta a história de um futuro advogado, Jacob Katadeuffe, Fedja Van Huet no filme. A história se passa em Rotterdam nos anos da grande depressão econômica entre o fim da década de 1920 e o início da de 1930. 


No que nos interessa mais de perto, Caráter é uma das grandes ilustrações do chamado complexo de Cronos, e, como cinema, uma obra-prima que conquistou vários prêmios em diversos festivais, inclusive o Oscar do ano. O diretor  Van Diem, com grande habilidade, reconstitui em flash back a relação entre um pai, o odiado Oficial de Justiça, e seu filho bastardo, uma relação impossível, na qual a figura materna tem um papel muito importante, fundamental mesmo. 

Direção excepcional, fotografia primorosa, grandes atores, tudo contribui merecidamente  para que Caráter se torne um filme indispensável não só para aqueles que são cinéfilos  como para todas as pessoas que se interessam por cinema como forma superior de cultura, pois o filme, pelas possibilidades de enfoques que oferece, tem ângulos que nos remetem à História, à Filosofia, à Psicologia, às Artes Plásticas, à Literatura etc. É de se ressaltar que quando da realização do filme, todos os atores vinham do teatro, não tinham muita experiência cinematográfica. A exceção era Jan Decleir, nome já famoso das telas holandesas, principalmente depois de ter participado de outra grande película, A Excêntrica Família de Antônia.


MARK    VAN    DIEM

Em flash back, como dissemos, tomamos conhecimento da história do jovem advogado, uma história que pelo seu clima narrativo lembra muito os romances de Charles Dickens, característica inclusive notada pela crítica holandesa. A mãe do rapaz, Jacoba, chamada Joba, era empregada doméstica do Oficial de Justiça Dravenhaven, que a engravida numa única e brutal relação sexual. Mulher taciturna e silenciosa, grávida, pouco tempo depois, Joba avisa o patrão que vai partir. Quando a criança nasce, ele resolve assumir a paternidade do filho e lhe propõe casamento, por ela recusado. Com o correr dos anos, a proposta é renovada e sistematicamente rejeitada. A infância do menino é infeliz e solitária. Joba sempre lhe diz que “não precisamos dele”, quando o garoto lhe pergunta pelo pai. Discriminado  como bastardo, o menino tem também uma relação muito difícil com a mãe. 


O problema dos nomes dos principais personagens: Drevenhaven é, em holandês,  um composto: dreven lembra impulsionar, fazer em agir, pôr em  movimento; haven é porto. Drevenhaven seria pois “porto em movimento”. Já o nome do jovem, Katadreuffe, viria de kata, para baixo, e de dreuffe, talvez um nome flamengo,  uma espécie de uva. A mãe, Jacoba (Joba), tem seu nome retirado de Jacob, o terceiro patriarca dos judeus, filho de Isaac e neto de Abraão. O prenome do filho de Joba é também Jacob, nome que significa “o que suplanta”.

A bastardia é, como se sabe, um preconceito patriarcal, e seus melhores exemplos nos vêm do Antigo Testamento. É uma condição de nascimento da criança que não é aceita, isto é, reconhecida legalmente, pelo lado paterno. Socialmente grave para qualquer filho, a bastardia se torna mais grave, sem dúvida, para crianças do sexo masculino se pensamos em sociedades fortemente marcadas por valores religiosos monoteístas, patriarcais, muito presentes na história de sociedades fechadas. Bastardo, lembremos, quer dizer ilegítimo, adulterino, que não é puro, espúrio, que nasceu fora do matrimônio legal. A palavra vem ao que parece da Idade Média, usada para designar o filho de um príncipe com mulher plebeia. 

Na sequência da história, o jovem receberá auxílio e acabará concluindo o curso de Direito, tentará se aproximar do amor, mas alimentando sempre sentimentos de ódio e de medo com relação ao pai, um conflito muito bem construído no filme. O grande tema de Caráter é inegavelmente a relação pai-filho, ou seja, uma ilustração do complexo de Cronos, que pode ser visualizado aqui pelo lado paterno (o pai reconhecidamente temido, impiedoso e cruel) e pelo lado filho (dependente e massacrado pela figura paterna) .


DRAVENHAVEN

Na história do cinema, poucos personagens se igualam a Dravenhaven. Odiado, cruel, rico, poderoso, é o agente da lei que cumpre o seu dever. Suas tarefas são executadas com indiferença e insensibilidade. Não é alcançado por nenhum toque afetivo. Emocionalmente, Dravenhaven é um fracassado, como, aliás, o são todos os personagens do filme. O único golpe que o atingiu (orgulho ferido?) foi certamente a recusa de Joba. Katadreuffe, o filho, por sua vez, identificado com a mãe, acata a sua proibição, embora deseje se aproximar do pai. Neste sentido, pelo lado materno, é o Jovem Advogado uma vitima do complexo de Atis, complementar do complexo de Isaac, ou seja, o do filho que se entrega à vontade materna.
    
A riqueza do filme é, entretanto, muito grande. Além de ser uma ilustração do complexo de Cronos, ele permite que concomitantemente nele também encontremos referências, ainda que não explícitas, a outros complexos. Uma poderosa figura da história é Joba, a mãe, uma mulher miserável, fechada, que recusa firmemente qualquer aproximação com o homem que a engravidou. Será que a violência a que ele a submeteu justificaria tal comportamento? 


                                    KADREUFFE    E    JACOBA

Podemos admitir que por trás dessa atitude orgulhosa de Joba esteja, na realidade, o que ela encontrou, dentro de si mesma, para se opor e, quem sabe, superar e derrotar o poderoso Oficial de Justiça, atingindo-o na sua sua onipotência. Uma autopunição por ter se entregue passivamente à investida do patrão e  por não ter procurado nenhuma ajuda exteriormente? Um arrependimento tardio porque nada pediu a ele?

Mais ainda: ao reter o filho não estaria Joba, através dele (lembremos da sua frase: não precisamos dele) tentando compensar a sua total inferioridade, sobretudo  social e sexual, diante do patrão, do Grande Macho que a violentou? Não estaria usando o filho para isso (a relação bebê-pênis dos psicanalistas)? Para um psicanalista, acredito, será que estes dados não bastariam para configurar o famoso Complexo de Castração, tão encontrado em muitas mulheres fálicas?  

Castração, como se sabe, é uma operação pela qual um homem ou um animal macho é privado de suas glândulas genitais. É sinônimo de emasculação, perda de virilidade, impotência. Freud denominou Complexo de Castração como o sentimento inconsciente de ameaça experimentado pela criança (adulto) quando ela constata a diferença anatômica entre os sexos. Na antiguidade, os cultos da Grande-Mãe Cibele e suas relações com Atis, seu filho-amante, são representações míticas da castração.

 Os problemas que o Complexo de Castração causam a Joba são evidentes, já que ele a amarra a um comportamento impossível de ser mudado (procurar alguém, constituir família, admitir que o filho possa ter um pai etc.). Ela usa o filho como um instrumento (uma arma, um pênis?) para se afirmar na vida sem se dar conta disso, não querendo, por um lado, a ajuda financeira do Oficial de Justiça e, por outro, anulando-o, com o seu desprezo, como macho fecundante. Ao assim agir, Joba impede que o filho tenha qualquer possibilidade  de acesso ao pai. O filme nos sugere muitas perguntas. Uma delas, por exemplo: até onde os três personagens de Caráter estão presentes ainda hoje como patologias em muitas famílias patriarcais, padrões arquetípicos que, apesar de tudo, subsistem em muitas sociedades humanas?