segunda-feira, 22 de abril de 2019

LAURA


Na tradição cinematográfica norte-americana, Laura é um filme que faz parte daquele grupo que permanece, em que pesem as modas e as puxadas do box-office. Considerado tanto como uma sátira aos meios elegantes da sociedade nova-iorquina como um thriller psicológico-policial ou ainda como um exemplo de filme noir, Laura, por qualquer viés que o apreciemos, é sempre um clássico porque serve de referência principalmente por ter sido criado por um autor que dominava tecnicamente de modo excepcional a linguagem que utilizava. 

O diretor de Laura é Otto Preminger, um austríaco que, como tantos outros europeus, com a ascensão do nazismo, na virada dos anos 1930-1940, procuraram outros lugares para viver e trabalhar. Lembre-se que da geração de Preminger, discípulo do grande Max Reinhardt na Europa, faziam parte outros profissionais do cinema que se mandaram também para os USA pelos mesmos motivos. Ao nome de Preminger podem ser juntados os de Fritz Lang e de Samuel Wilder (Billy Wilder nos USA). Os três  eram judeus e haviam dirigido filmes na Europa. Lang, aliás, recebera uma proposta de Joseph Goebbels, ministro de propaganda do nazismo, para permanecer na Alemanha fazendo cinema. O que se tem de concreto é que os três acabaram emigrando para os USA e lá encontraram o seu lugar em Hollywood. 


OTTO  PREMINGER

Antes de realizar Laura, em 1944, Preminger já havia dirigido nos USA Por Enquanto Querida (1943) e Um Pequeno Erro (1944), tendo chegado a trabalhar, como outros emigrados de fala alemã o fizeram, como ator, atuando no papel de soldados ou de oficiais alemães em filmes americanos.  Reconhecidamente um profissional de grande talento, com grande domínio da técnica cinematográfica, Preminger logo se tornou muito conhecido nos círculos hollywoodianos apesar de sempre dar mostras de um temperamento esquentado,  de difícil convivência, inclusive com a censura. 

Em 1944, Preminger realizou Laura, lançado em janeiro de 1945 no Brasil, classificado  como um filme noir. O roteiro é de Jay Dratler, Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt, com base no romance de mesmo nome de Vera Caspary. Elenco: Gene Tierney, Dana Andrews, Vincent Price, Clifton Webb, Judith Anderson. Música: David Raksin. Fotografia: Joseph LaShelle. Montagem: Louis R.Loeffer. Distribuição: 20th Century Fox. 


LIVRO DE V. CASPARY
A história que deu origem ao filme é de autoria de Vera Louise Caspary (1899-1987), autora de novelas, contos, peças teatrais e roteiros. Ligada politicamente à esquerda do país, tendo se filiado inclusive ao partido comunista e visitado a União Soviética, Vera Caspary sempre centralizou os temas de suas histórias em figuras femininas que procuram buscar a sua identidade através de suas dificuldades afetivas, inclusive com risco de vida. Inicialmente estruturada para ser levada ao teatro, já conhecida por alguns produtores de Hollywood, como conto, a história (Laura), por pressão de Preminger, acabou sendo comprada pela Fox e transformada em filme.  

Para entender melhor o filme é bom lembrar que o  chamado filme noir define, muito mais que um gênero, uma corrente estética. Suas principais fontes estão no cinema mudo, no cinema expressionista alemão, nos filmes B norte-americanos dos anos 1930-1940 e no tratamento fotográfico que é dado a tudo isto. Imagens em preto e branco, deformações pelo uso de lentes especiais, atmosfera surchargée, barroquismo, inclusive nos gestos, alguma afetação (destaque, em Laura, para as interpretações de Clifton Webb e de Vincent Price, mais quanto ao primeiro, dois atores naturalmente “afetados”), excelente fotografia, uso de sombras, planos inclinados, relógios, espelhos, escadas, claraboias etc.

Os grandes temas do filme noir  são as paixões obscuras do ser humano, desde as explosões instintivas, violentas (nos filmes de gangster, choques entre classes, conflitos trabalhistas, corrupção, greves etc.) até os crimes cometidos por representantes de segmentos sociais aparentemente inatacáveis, normais, o mundo das trevas de sociedades que se apresentam como justas, ordeiras e organizadas.

Um jornalista, colunista social (Clifton Webb), homossexual enrustido, fica profundamente seduzido por uma bela jovem chamada Laura (Gene Tierney, então com 24 anos). Essa sedução acaba se transformando numa obsessão (tema de Pigmaleão-Galateia?). Um pouco antes de se casar com um playboy (Vincent Price), ela é encontrada morta, vítima de um assassinato. Através de histórias contadas por seus admiradores, um detetive (Dana Andrews), encarregado de solucionar o caso, acaba também “prisioneiro” de Laura, do seu retrato, do seu fascínio, alimentado pelas histórias que sobre ela lhe contam, sobretudo pelo que sua imaginação projeta sobre ela. Laura, aliás, por este detalhe, faz parte de um bom número de filmes em que retratos têm função importante na fixação da personalidade da figura principal ou do tema do filme, os chamados filmes de retrato (À Meia Luz, Rebeca, Um Retrato de Mulher,  O Retrato de Jennie, O Retrato de Dorian Grey, A Família etc.).

Laura foi “vendido” para o grande público como um filme de entretenimento, um filme que procurava levar esquecer a guerra (estávamos então em 1944) e a política internacional. Os ambientes eram elegantes, os diálogos ágeis, inteligentes (as falas de Clifton Webb: Eu não sou bom, sou muito mau. É o segredo do meu charme.), havia suspense. Nenhum problemas social mais evidente, nada de afrontas a códigos morais. Afinal, todos gostam sempre de ver os “podres” das elites escrachados pelos meios de comunicação. Gente de dinheiro, moda, lojas chiques, restaurantes, New York, já à época assumindo a condição de the Big Apple...


DANA  ANDREWS, VINCENT  PRICE,  GENE  TIERNEY,  CLIFTON  WEBB

O filme tem entretanto atmosfera bem noir, estilo, na medida em que  temas como obsessão, fetichismo e necrofilia estão nele embutidos. Otto Preminger fez com que a câmera passeasse o tempo todos pelos cenários, permitindo que o entendimento do espectador avançasse com a ação, mas sempre lhe subtraindo alguma coisa, impedindo que o final do filme pudesse ser antecipado. Preminger dosou tudo no tempo certo, dando a Laura um ritmo impressionante. Isto se deve sem dúvida a um script (roteiro) muitíssimo bem elaborado e ao elenco  sempre muito afinado.



A produção de Laura filme foi muito confusa. Muitas brigas ocorreram entre Darryl Zanuck, o homem dos estúdios ($$$), e Otto Preminger até que o filme fosse iniciado. Zanuck havia comprado os direitos de Laura para a Fox quando a história não passava de um conto publicado na revista Collier´s, com o título Ring Twice for Laura. A história foi adquirida para ser o veículo perfeito para uma jovem atriz que fosse capaz de usar figurinos elegantes, que não destoasse em cenas em que fosse exigido algum traquejo dramático e, sobretudo, que fosse muito bonita, “devastadoramente” bonita como se disse à época. Gene Tierney preencheu os requisitos com facilidade.

SAMUEL   HOFFENSTEIN
Antes de assumir a direção do filme (inicialmente entregue a Rouben Mamoulian), Otto Preminger mexeu no roteiro. Contratou o poeta Samuel Hoffenstein para dar maior qualidade ao diálogo e desenhar melhor o personagem Waldo Lydecker. Quanto à música, a primeira escolha recaiu sobre Smoke Get in Your Eyes, de Jerome Kern. Depois, Preminger optou por Summertime, de George Gershwin, e por Sophisticaded Lady, de Duke Ellington. 


DAVID   RAKSIN
Otto Preminger havia contratado David Raksin (1912-2004) para cuidar da música do filme. Nenhuma das canções escolhidas o satisfez. Raksin então propôs e Preminger aceitou que ele compusesse uma canção. Assim aconteceu e Raksin, inspirado numa carta que recebera de uma namorada, desenvolveu o tema musical. Caberia a Johnny Mercer (Moon River e That Old Black Magic), mais tarde, fazer a letra, depois de lançado o filme. Assim nasceu Laura, uma das mais belas canções americanas de todos tempos, gravada mais de 350 vezes.  


                                          TRILHA SONORA

A finalização do filme também foi polêmica, mas a versão (final cut) de Preminger acabou prevalecendo.  No universo do filme noir, Laura é,sem dúvida, o exemplo mais refinado e elegante do gênero. Um detalhe: o famoso retrato de Laura pelo qual McPherson se apaixona não é pintura; é uma fotografia com retoques de tinta a óleo.




Um pouco mais sobre Preminger (1906-1986): nasceu em Viena, de família judaica, estudou Direito e Filosofia, indo para os USA em 1935. Começou como ator, sem muito destaque, passando aos poucos para a direção. Fixando-se nesta carreira, optou sempre para fazer filmes sobre problemas de conduta, desvios, conflitos comportamentais. Tinha a fama de exigente, duro, desagradável. Além de Laura, seu maior sucesso de público e de crítica, temos dele importantes realizações como O Rio das Almas Perdidas, Carmen Jones, O Homem de Braço de Ouro, Bom Dia, Tristeza, Anatomia de um Crime. Seu último filme, O Fator Humano, é de 1979.

Destaque para David Raksin (1912-2004), compositor, com mais de cem créditos como responsável pela música de filmes e de trezentos para a TV. Trabalhou com Charles Chaplin no tema de Tempos Modernos (1936). Laura é conhecido como a segunda canção mais gravada na música popular norte-americana, perdendo só para Stardust, de Hoagy Carmichael. Ensinou em universidades americanas.


Gene Tierney (1920-1991), mulher belíssima, nascida em família rica, estudou nas melhores escolas da costa leste estadunidense e na Suíça. Foi casada com o estilista Oleg Cassini, com quem teve duas filhas. Em 1957, uma forte depressão (problemas matrimoniais e uma filha doente) levou-a a sanatórios, onde ficou internada por muito tempo. Além de Laura, temos dela Tobacco Road, O Fio da Navalha, O Fantasma e Mrs. Muir, O Céu Pode Esperar, A Mão Esquerda de Deus etc.


CLIFTON   WEBB
Webb Parmalee Hollenbeck (1889-1966), quando chegou a Hollywood, como Clifton Webb,  já era conhecido como ator teatral e dançarino. Estudou música e pintura. Aos 25 anos já atuava na Broadway e em Londres em musicais. No cinema, seus grandes sucessos são dos anos 40, Laura e O Fio da Navalha. A série de TV Mr.Belvedere foi baseada em sua vida. Viveu com a mãe até os seus 71 anos, quando ela morreu. Deixou filmes como Ama Seca Por Acaso, Duro na Queda, Náufragos do Titanic, A Lenda da Estátua Nua, Tudo Azul com Barba Azul, Tentação Diabólica.

Quando Laura foi concluído, Zanuck, o grosso chefão da Fox, mandou chamar Preminger e fez uma análise do filme: Dana Andrews é um amador sem “sex appeal”, Clifton Webb é bicha, Judith Anderson deveria ter permanecido no teatro e o senhor em Nova York ou Viena, onde é o seu lugar.

JUDITH  ANDERSON
Dame Judith Anderson (1897-1992) é australiana. Estudou teatro e em 1918 estava em Nova York, atuando em peças de Shakespeare. Teve um período muito difícil, voltou para a Austrália, retornando depois aos USA. Nos anos 30, 40 e 50, já era, contudo, reconhecida como uma das maiores atrizes do teatro americano. Atuou em peças de Pirandello, Eugene O´Neill e outros enquanto começou a fazer cinema. Em 1937, estava no Old Vic de Londres, interpretando Shakspeare e Tchekov. Em 1947, com produção de John Gielgud, fez uma soberba Medeia. Trabalhou com Charles Laughton e outros grandes nomes. No cinema, destaque para seu papéis em Rebecca, Lady Scarface, Gata em Teto de Zinco Quente etc. Gravou muitos discos com trechos de peças teatrais importantes. 



Dana Andrews (1909-1992), filho de um pastor da Igreja Batista, antes de fazer cinema, trabalhou em administração de empresas, como contador. Em 1931, tentou se fixar como cantor enquanto fazia um curso na escola teatral de Pasadena. Em 1940, foi contratado por Samuel Goldwyn, atuando ao lado de Gary Cooper, Henry Fonda e outros nomes famosos. Nos anos 40, fez, além de Laura, Os Melhores Anos de Nossas Vidas, um clássico. Na década de 50, sua carreira declina por problemas com o alcoolismo. Em 1963, conseguiu ser eleito para a presidência do Sindicato de Atores do Cinema. Parece ter vencido o alcoolismo, aparecendo inclusive em programas da AA. Seu último filme é de 1978 (Uma Árvore, uma Pedra e uma Nuvem).


Vincent Price (1911-1993) é de um rica família americana, muito familiarizada com o que havia de melhor na tradição cultural europeia. Começou no teatro, indo depois para o cinema, ficando mais conhecido como ator de filmes de terror e de suspense. Tem uma longa carreira, nela se destacando filmes como Museu de Cera, A Mosca da Cabeça Branca, A Casa Amaldiçoada. Participou de um criativo ciclo de adaptações da obras de Edgar Allan Poe para o cinema, sob a direção de Roger Corman (O Solar Maldito, Mansão do Terror, Muralhas do Pavor, O Castelo Assombrado).

Nos anos 70, Price aumentou o ritmo de sua carreira, com O Uivo da Bruxa, O Abominável Dr. Phibes, As Sete Máscaras da Morte e outros. Ao lado de alguns astros do terror, Peter Cushing, Christopher Lee e John Carradine, fez paródias de seus próprios filmes. Trabalhou com o astro da música pop Alice Cooper, seu fã declarado. Participou inclusive de uma famosa gravação com Michael Jackson. Além dessas atividades, apareceu como narrador de vários filmes e documentários. Seu último filme foi Edward Mãos de Tesoura (1990).


LAURA
Depois de tanto tempo, Laura continua, sem dúvida, a nos fascinar, seja pela fabulosa   direção de Preminger, pelo entrosamento perfeito do elenco, pela excepcional fotografia,  pelo inesquecível tema musical que Raksin compôs. Laura é um um dos melhores exemplos, quando pensamentos em sentimentos humanos, daquilo que podemos entender por solidão, por nostalgia (etimologicamente, algos, sofrimento, e nostos, passado, dor que sentimos por não mais poder voltar ao passado). En passant, acrescentem-se às sugestões que o tema de Raksin nos oferece, carregando-o ainda mais, as falas dos personagens, especialmente as de Waldo Lydecker (Clifton Webb), como aquela sobre o que sentira no final de semana em que Laura morrera: Jamais esquecerei o final de semana em que Laura morreu. Um Sol de prata queimava no céu como uma enorme lupa. Ao que me lembre, foi o domingo mais quente que já vivi. Em me senti como se fosse o único ser humano em New York, ali abandonado. Laura morrera e eu estava sozinho. Eu, Waldo Lydecker, fora realmente o único a conhecê-la.