domingo, 21 de julho de 2019

OS FILHOS DE HYPNOS



HIPÓCRATES

A virtude profética dos sonhos é atestada desde a mais remota antiguidade. Os antigos gregos davam o nome de oniromancia à arte da interpretação dos sonhos. Hipócrates, o pai da Medicina, e Galeno, famosos médicos da antiguidade, levavam os sonhos em consideração quando prescreviam remédios aos doentes. 


HYPNOS
Oniro era filho de Hipnos, o deus do sono. Ele personificava o sonho enganador, o sonho que precisava ser interpretado por peritos, pessoas muito bem treinadas na arte dos símbolos. Seu irmão chamava-se Hypar, o sonho profético. Hypnos, o deus do sono, usava um tridente com o qual tocava as pálpebras dos humanos e os fazia dormir. Era nesse momento, caminho aberto, que seus filhos apareciam.

LINGAM
Espécie de forcado com três pontas ou dentes, o tridente é antigo símbolo encontrado na Índia pré-védica com o nome de Trishula (três pontas) ou Trikala (três tempos). Era um emblema shivaísta na forma de um lingam (órgão fálico) entre duas serpentes eretas. O primeiro, símbolo do poder gerador, princípio ativo, e as serpentes lembrando o desenvolvimento e a reabsorção cíclicas, guardiãs do nadir, região oposta ao zênite.


No mundo grego, o tridente aparece na mão de divindades que se ligam sobretudo a conceitos de destruição, de dissolução, de eliminação de fronteiras, trazendo uma ideia de caos, de algo anterior ao cosmos, informe, não ordenado, uma proto-matéria. No fundo, uma proposta de indiferenciação de onde pode partir uma nova forma. 

NETUNO  E  SEU  TRIDENTE

SOLUTIO
Poseidon, Netuno para os latinos, usa o tridente como um dos seus grandes símbolos. Irmão de Zeus e de Hades-Plutão, domina o elemento líquido como deus dos oceanos, mares, rios, lagos, águas subterrâneas, fontes. O tridente nas mãos de Poseidon é semelhante ao raio de Zeus, com o qual ele agita ou acalma as águas, tendo o poder ativo de destruir tudo o que estiver preso a uma forma, coagulado. É com esta característica que na Alquimia representa a solutio por excelência. 


MORFEU , 1690 ( RENÉ - ANTOINE  HOUASSE )

Na mitologia grega, uma outra divindade também aparece associada ao tridente, o deus Hipnos, filho de Nix, a grande deusa da Noite. Em várias representações da arte, a encontramos  dirigindo-se ao seu palácio nos confins do poente, levando nos braços Hipnos. Este deus toca com o tridente as pálpebras dos humanos, fazendo-os dormir. A partir daí tudo pode acontecer, pois ele pode liberar a passagem para seu filho Morfeu, deus dos sonhos, “o de mil formas”, que virá como Oniro, o sono enganador, ou como Hypar, o sono profético, premonitório. Com eles, o tempo e o espaço serão abolidos, criar-se-ão visões nunca “vistas”. 


NIX  ( HENRI - FANTIN  LATOUR , 1836 - 1904 )

SATÃ ( DORÉ, 1832-1883 )
Este poder que o tridente tem de criar mundos fantásticos, realidades “irreais”, fantasias, fez certamente com que o Cristianismo o colocasse nas mãos de Satã para representar o perigo das três principais pulsões que nos afligem, sexo, comida e possessão material e da nossa derrota diante do seu poder de sedução. Encantados, fascinados pelas imagens que ele nos oferece, mordemos a isca e, em conseqüência, nos ferramos, literalmente. Sedução e castigo estão, pois, presentes no tridente como o Cristianismo o usa. 


SIGNO  DE  PEIXES
Na Astrologia, o tridente encontra talvez a sua melhor explicação. Sabemos que é usado para representar o planeta Netuno, astro regente do signo de Peixes. Último signo zodiacal, Peixes antecede o equinócio de primavera. Representa o psiquismo inconsciente (pessoal e coletivo), pelo qual podemos ter experiências sublimes ou infernais. Ligado ao elemento água, o signo aponta para uma tipologia marcada por uma natureza inconsistente, muito receptiva e impressionável. Indica também para o indistinto, para o confuso, para a ausência de limites, para o apagamento de todas as particularidades. Dissolução, integração num todo maior, fusão, plasticidade, anulação da coesão, permeabilidade, abandono...

Netuno, mestre do signo, cujo símbolo é o tridente, produz estados de recepção passiva nas suas mais variadas formas, podendo levar à inspiração, à intuição, à mediunidade, à empatia, à comunhão, à utopia, à loucura, ao descontrole, lembrando moléstias mentais, depressões, manias, anarquismo, caos. Como arquétipo, Netuno é a expressão da dissolução, a abolição do tempo (trikala) e a destruição dos limites e das fronteiras do espaço. Nos tipos superiores, é o êxtase, o samadhi, a vidência, a criatividade artística, a santidade, a anulação do eu em benefício do todo...

O mais famoso dos filhos de Hypnos é Oniro, particularmente importante nas terapias adotadas por um centro médico sediado na cidade de Epidauro, na antiga Grécia. Esse centro médico estava colocado sob a tutela do deus Asclépio (Esculápio para os romanos, mais tarde) e seu corpo clínico era constituído por sacerdotes-médicos, muitos deles especialistas em oniromancia.

TEATRO  DE  EPIDAURO

Epidauro, como centro de tratamento e cura, durou vários séculos, quase um milênio, do séc. VI aC ao séc. V dC. A ele acorriam doentes de várias regiões do mundo antigo, dos países banhados pelo mar Mediterrâneo, ou seja, da Europa, do norte da África e da Ásia Menor. Epidauro possuía grandes instalações, sendo, além de clínica médica, um centro cultural e de lazer. Lá havia um Odeon, teatro para a audição de peças musicais, de poesias, declamadas por poetas de renome, e para cursos de dança. Possuía também o centro médico um Ginásio, para práticas esportivas, com piscinas, um Teatro, uma Biblioteca, com um grande número de volumes, um grande Templo e um Museu ao ar livre com numerosas esculturas. No mais, em áreas muito ajardinadas, com pequenos bosques, com fontes e tanques para a vegetação aquática, ficavam os que lá se internavam em alojamentos (apartamentos), frequentando os refeitórios, o espaço dos consultórios, os prédios da administração.

ASCLÉPIO

Asclépio, deus-médico, era filho do deus Apolo, a principal divindade médica da antiga Grécia. Asclépio era conhecido como o Deus Toupeira, apelido que era uma alusão a este animal que tem a capacidade de ver no escuro. O deus “entrava” na escuridão do psiquismo dos doentes para curá-los.


A proposta do centro médico de Epidauro era a de que só haveria cura se todo o corpo do doente fosse curado. Para que isto acontecesse era preciso antes de tudo curar a mente. Só haveria cura se ocorresse a metanoia, ou seja, a transformação dos sentimentos, fonte de todo o mal. Os sacerdotes-médicos de Epidauro achavam que as doenças eram provocadas pelo que eles chamavam de hamartiai isto é, pelos erros, pelas faltas, por comportamentos desequilibrados, gerados por uma espécie de fixação mental (culpas, ódios, raivas, ressentimentos, mágoas, obsessões, apegos idiotas a hábitos errados, atavismos poderosos, erros de educação), que se transformavam no agente mórbido. Instalados estes sentimentos negativos, havia assim uma certa incubação que detonava, cedo ou tarde, as doenças. Os sacerdotes-médicos de Epidauro defendiam a tese de que nós não “pegamos” doenças, nós é que as causamos.

As causas das doenças para eles eram principalmente mentais, produto muitas vezes de representações errôneas que as pessoas faziam dos acontecimentos e do mundo. Tudo isto acontecia geralmente sem que o doente percebesse. Por isso, os sacerdotes davam grande importância ao que chamavam de nooterapia, um tratamento que purificava e regenerava psíquica e fisicamente o ser humano por inteiro. Estas técnicas eram, no fundo, um tratamento da alma humana, que devia estar sintonizada com os ritmos universais. Quando isto acontecesse, o físico e a mente se tornariam necessariamente equilibrados.  


ONIRO

Grande importância nessa abordagem total do ser humano era dada à interpretação dos sonhos, a oniromancia. Os pacientes internados eram induzidos ao sono pela chamada enkoimesis (deitar e dormir), sendo-lhes oferecidas certas infusões que facilitavam a visita do deus Hipnos e de seus filhos, Oniro e Hypar. Pela manhã, os sacerdotes conversavam com os pacientes sobre os seus sonhos. Já sabiam esses sacerdotes que os sonhos eram uma via privilegiada para que se pudesse “entrar” no psiquismo dos doentes e fazê-los ver o mundo de um modo diferente.


O que acontecia em Epidauro era uma verdadeira convergência de várias técnicas, de práticas culturais e físicas, de alto valor terapêutico, que aceleravam os processos de cura. Nesses processos, como dissemos, os sonhos eram muito importantes. 
A oniromancia era praticada em todo o mundo antigo, notadamente

no Egito, na Mesopotâmia e em outras tradições. O primeiro tratado escrito sobre os sonhos data do segundo século da era cristã. Quem o escreveu foi Artemidoro de Éfeso. Seu título: Onirocriticon ou O Tratado dos Sonhos. Diz-se que este tratado era do conhecimento de Freud e que ele o inspirou bastante (há uma carta do próprio Freud sobre essa questão).

Hypnos (em latim Somnus) deu origem ao conceito de hipnose. Hypnos é a personificação do sono. Ele é filho de Nyx, a Noite, grande divindade das trevas superiores, e tem como irmão gêmeo Thanatos, o deus da morte. Por essa razão falamos da morte como sono eterno e fechamos os olhos das pessoas que morrem para que possam dormir.

THANATOS COM  ASAS
Hypnos era considerado como uma divindade jovial, suave, mas em certas ocasiões podia se tornar perigoso e fazer com que alguém caísse nos braços de seu irmão Thanatos. Hipnos tem um aspecto relaxante, mas é temido, pois pode paralisar alguém, imobilizá-lo, quando isto não poderia acontecer (o vigia e o piloto que dormem, por exemplo). A diferença entre Hypnos e Thanatos é realmente mínima. Os deuses, em geral, não gostam de Hypnos, pois seu poder é imenso, sendo ele, num certo sentido, o senhor de todos os deuses. Mesmo que não queiramos, ele acaba fechando os nossos olhos.


POTOS
Uma vez instalado o sono sobre as nossas pálpebras, tudo pode acontecer, a noção de tempo desaparece (o tridente é um símbolo da anulação dos três tempos, presente, passado e futuro), temos visões, viajamos sem sair do lugar, visitamos lugares onde nunca estivemos, antecipamos um futuro que nunca será o nosso, somos amigos de pessoas que nunca conhecemos. A rigor, apenas uma divindade consegue deter Hypnos. Esta divindade chama-se Pothos, o deus da saudade, pois saudosos não dormimos.

EPIDAURO , ODEON
Os gregos antigos sabiam que os sonhos levam ao autoconhecimento. A psicologia moderna, ao que parece, procurou aprender com os sacerdotes-médicos de Epidauro que os sonhos preenchem uma função tanto compensadora quanto complementar do nosso consciente, pois eles transmitem os elementos que faltam a este último para que uma situação seja compreendida. Os sonhos têm a função de restabelecer o equilíbrio psíquico chamando a nossa atenção para os exageros ou as omissões que cometemos. É neste sentido que os sonhos revelam o estado psíquico de alguém.. É por essa razão que todos os elementos de um sonho, por mais absurdos e estapafúrdios que sejam, se referem exclusivamente ao sonhador e representam aspectos de sua personalidade.

Em que pesem as diferenças entre as várias escolas psicológicas do ocidente, atualmente, elas parecem todas concordar num ponto, que os sonhos, em geral, não nos remetem somente a uma história individual, mas nos dão pistas e chaves para a compreensão de culturas diferentes da nossa, permitindo-nos interpretar e conhecer muitas de suas características.

A psicologia moderna do sonho se ocupa principalmente com o aparecimento e a duração dos sonhos na chamada fase REM do sono (Rapid Eyes Mouvements) ou fases que comportam movimentos rápidos dos olhos sob as pálpebras cerradas e de seu efeito benéfico sobre as tensões acumuladas de quem dorme. Acredita-se, hoje, por recentes pesquisas na área da neurofisiologia do sono que, além dos seus aspectos propriamente psíquicos, o sonho desempenha um importante papel regulador e reprogramador biológico do cérebro.

Para muitos estudiosos, que repetem os sacerdotes-médicos de Epidauro muitas vezes sem o saber, os sonhos, com as suas imagens, têm relação com os conflitos interiores do sonhador, nascidos do seu desejo de se afirmar e de adquirir poder. Além dessa ideia, não há como negar que os sonhos nos remetem ao chamado inconsciente coletivo, também conhecido pelos gregos, fonte de estruturas inatas e a priori da imaginação do ser humano.

Talvez tenham sido os hindus aqueles, dentre os povos da antiguidade, que nos tenham deixado uma das mais interessantes visões da vida onírica. Reconheciam eles, resumidamente aqui, quatro estados da alma ou quatro estados de consciência: o estado de vigília; o estado onírico,  o estado instável  no qual a alma pode explorar domínios inacessíveis à consciência quando no estado de vigília; o estado de sono profundo, sem sonho; e o estado de mergulho no absoluto, no Brahman, quando o ser com este se identifica, estado que excluía a velhice, a morte e a dor. 


BRAHMAN

Talvez no mesmo nível dos hindus, possamos colocar os antigos egípcios pela curiosa interpretação que nos deixaram sobre os sonhos. Para eles, uma noite de sono era um tempo morto quanto à criação, um retorno ao caos primordial que permitia ao ser humano entrar em contacto com todos os seres e lhe proporcionar visões de um mundo ainda não criado, uma espécie de premonição, de algo do futuro que estivesse por vir.