segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

DEUSES GREGOS: TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA


DEUSES GREGOS
  
ARISTÓTELES
É preciso colocar de início para que as ideias fiquem bem claras que a mitologia grega, quanto à cultura ocidental, se inscreve na chamada tradição imanentista por oposição à transcendentalista. Sem nos
KANT
perdermos em maiores discussões sobre esta questão e sua repercussão na Filosofia, de Aristóteles à  Escolástica  e desta  a Kant e aos existencialistas, entendemos que o imanentismo  se caracteriza simplesmente por  tudo aquilo que procede de um ser como expressão do que ele traz em si, de sua participação no mundo e de suas relações com os outros seres humanos. 

Imanente vem do latim, in, em, dentro, e manere, permanecer, ficar, ou seja, aquilo que está no interior de um ser. A moral é imanente, por exemplo, quando decorre da vida social e tem relação com os homens e com os acontecimentos do mundo. No mito, a imanência nos fala da ação do divino (modelos superiores de existência criados pelos humanos) em nosso mundo, sendo-lhe intrínseca; os deuses dele participam, fazem parte de nossa vida, estão na natureza e inspiram as produções superiores do espírito humano, têm a ver com as nossas ações, a nossa arte, a nossa literatura, a nossa música, a nossa poesia como com os nossos crimes e
JUNG
pecados. Os antigos gregos colocaram em seus deuses a totalidade da existência, toda a sua complexidade e diversidade. Aparecem-nos eles assim como modelos de existência, para o bem ou para o mal, são paradigmas, aquilo que alguns chamam de arquétipos ou, melhor, são os revestimentos primários dos arquétipos da cultura ocidental, segundo uma tradição que remonta a Platão, a Fílon de Alexandria, ao Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a Santo Agostinho e, modernamente, a Jung.

A mitologia grega, para a cultura ocidental, como representação das forças que operam no universo, foi penetrando tudo. Acabou por se tornar a fonte de muitas alegorias  que alimentam as grandes

metáforas de muitos filósofos, místicos, cientistas, artistas, poetas, músicos, fazendo parte inclusive do cotidiano do homem comum ao invadir o léxico de várias línguas. Lembremo-nos do que Platão fez com Eros no seu diálogo O Simpósio quando, através de Sócrates, estabelece uma nova gênese do deus para  falar do amor homossexual. Ou, então, daquilo que Édipo significou para Freud na construção da sua Psicanálise ou, ainda, de como a crônica do titã Prometeu se encaixa à perfeição quando falamos de lutas contra a tirania ou do roubo de segredos científicos.


CERES (WATEAU, 1684-1721)
Quanto ao homem comum, a língua e a mitologia greco-latina estão presentes quando comemos cereais (Ceres), nectarinas, ambrosia, quando calçamos sapatos vulcanizados, ou colunas de mercúrio sobem e descem para medir as temperaturas do nosso corpo (termômetros). Vemos filmes épicos, dramáticos, eróticos; afrodisíacos melhoram o desempenho sexual; deuses (Urano, Plutão,
TÂNTALO
( GOYA , 1746 - 1828 )
Hélio, Selene) viraram elementos químicos (urânio, plutônio, hélio, selênio etc.) e um criminoso da mitologia grega deu nome a um dos metais mais valorizados do mundo, mais que o ouro, o tântalo. Utilizado em telefones portáteis, computadores pessoais e eletrônicos automotivos, o tântalo também é usado para fazer ferramentas de metal para usinagem e para a produção de superligas para componentes de motores a jato.


PÂNICO ( O  GRITO , EDWARD  MUNCH , 1863 - 1944 )

Personagens da mitologia grega,invadiram a Psicologia para dar nome a complexos ou síndromes (complexos de Zeus, de Cronos, de Héstia, de Electra ou síndromes do Pânico (do deus Pan), de Medeia. A palavra economia vem do grego (oikos, casa, habitação, mais nomos, lei, ou seja, é, na origem, a lei,  são as regras da casa) ou foram os deuses e heróis para o mundo das finanças para
AQUILES E AJAX (VASO GREGO)
designar o poder oculto do dinheiro (plutocracia) ou acabaram em prateleiras de supermercados como  sabão em pó (Ajax, herói grego, que é vendido como o furacão da limpeza). Foi o maior dos heróis gregos, Hércules, que no seu décimo primeiro trabalho (A limpeza dos estábulos do rei Augias) que inventou a propina. Os mitos e seus personagens estão em livros de Medicina dando o nome a doenças (satiríase, priapismo, erisipela, mercurialismo, saturnismo). Damos o nome de calcanhar de Aquiles a um ponto fraco em nosso corpo. Se mais quisermos  é só abrir os dicionários  e lá os encontraremos: morfina (Morfeu), hermético (Hermes), ciclópico (Ciclopes), tantalizar (Tântalo), nefelibata (Nefele), etérico (Éter), hemeroteca (Hemera), narcótico (Narciso), carisma (Cárites), bacanal (Baco), letargia (Lethe), museu (Musa), hipnose (Hipnos), oniromancia (Oniro). Quase toda as doenças e males que nos atingem são “gregos”: osteopenia, anemia, osteoporose, leucemia, pneumonia, prostatite, rinite, câncer, hidrocefalia, escoliose, psicopatia, nevrose, encefalite etc.  


HESPÉRIDES  ( HANS  VON  MARÉES , 1837 - 1887 )

Ampliando um pouco mais a nossa abordagem, indo noutra direção, tomemos, por exemplo, o universo semântico (possibilidades significativas) que Nix, a deusa da noite, com alguns de seus filhos ou personagens que com ela se apresentam, nos oferecem. É Nix uma das entidades cosmogônicas, nascida do Caos, como está em Hesíodo. Na ordenação cósmica cabem-lhe as trevas superiores, opondo-se ao Érebo, as trevas inferiores, estas as camadas intermediárias do Hades. Nix habita o extremo-ocidente, além da região das Hespérides, as ninfas do poente, suas filhas;  lá tem o seu palácio, de onde só sai quando Hemera, o dia, seu filho, se retira. A região onde  Nix tem o seu palácio, lembremos, é o lugar onde a luz morre. No interior da palavra ocidente esconde-se a raiz cad, que encerra a ideia de tombar, cair; daí, queda da luz, ocidente. Foi para esta região, vizinha do Hades, que se encaminhou Ulisses quando resolveu interrogar as almas dos mortos (nekyia) na esperança de obter informações sobre o seu caminho de volta  para Ítaca. O ocidente , se por um lado lembra declínio, decadência, como lugar noturno e satânico, sinistro, à esquerda, é o lugar das grandes-mães em todos os mitos, e nos diz, por outro, que ele é também o lugar da fertilidade, da fecundidade, lugar da obscuridade, das confidências, da discrição, do entendimento. 


HEMERA
(BOUGUEREAU,1825-1905)
Retirando-se Hemera, o dia, e mergulhando o deus solar Hélio no oceano ou escondendo-se atrás dos montes, Nix começa  sua viagem pelos céus; vai no seu carro puxado por cavalos negros, com seu vasto manto salpicado de estrelas, franjado de infinito, como diz o poeta. Para muitos, quando ela estende o seu manto, são as horas das trevas, sempre perigosas. O intervalo entre os dois crepúsculos, o vespertino e o matutino, mais o seu ápice, a meia-noite, são as chamadas horas abertas, horas dos acontecimentos maléficos, em que demônios, fantasmas e espectros atuam livremente, principalmente nas encruzilhadas. Por sua representação espacial, a encruzilhada propõe múltiplas possibilidades, sugere mudanças, abandono de um caminho por outro. Para tomar o caminho certo temos que enfrentar as criaturas perniciosas  que do lugar  se apossaram como forças do caos, temos que reverenciá-las sempre, vencer os nossos temores, as nossas projeções imaginárias.  

NIX
(BOUGUEREAU,1825-1905)
Nix é tanto ausência de luz quanto escuridão misteriosa, risco de desvios, confusão de distâncias, anulação de evidências. Mas Nix é também protetora dos úteros, das cavernas e das grutas, dos lugares de nascimento e de renascimento.  A não ser que Pothos, a saudade, interfira , porque saudosos não dormimos, Nix  libera  seu filho Hipnos, o sono, que, baixando o seu tridente sobre as nossas pálpebras, traz o sono reparador. Qualquer que seja a sua representação, como um jovem segurando uma papoula ou  uma espécie de cornucópia a gotejar o sono sobre os que dormem ou (melhor ainda) se ele vier com seu filho  Morfeu, o sonho, na forma de Hypar, o sonho premonitório. 

Há ocasiões em que Nix pode retardar a chegada de seus filhos para  favorecer a reflexão, a meditação raciocinada, colocando-se entre a proposta que nos fazem e a decisão que precisamos tomar, evitando precipitações, ensinando serenamente, generosamente. É nesses momentos  que ela toma o nome de Eufrone, a benfazeja, a benevolente, ou de Eulalia, a boa palavra, a mãe do bom conselho. Duas filhas de Nix poderão, contudo, aparecer se Hipnos não vier ou demorar muito para chegar: a irritante Éris, a discórdia, e Apate,
MORFEU
o engano, sempre desagradáveis e perturbadoras. Quando Morfeu, o de mil formas, vem como Oniro, o sonho enganador, Nix deixa de ser benfazeja. Agora, então, à nossa volta, animais fabulosos, luzes espantosas, gritos, gemidos, monstros, abolição do tempo e do espaço. Oniro, com a sua infinita capacidade de mudar de forma, faz surgir personagens como Iquelos  (aparência de realidade), Fobetor  (terrível, assustador), Fantasos (fenômenos enganadores) e muitos outros...                                                

FERNANDO  PESSOA
Os poetas e músicos têm especial predileção  por  Fílotes, a ternura, um dos filhos de Nix. Muitos escreveram ou compuseram sobre este sentimento noturno cujo nome vem do verbo grego amar e que entre os latinos  se liga  ao tenro, ao terno, ao delicado. Fílotes é aconchego, proteção, afago, delicadeza. Fernando Pessoa nos deixou  em Ficções do Interlúdio  (Álvaro de Campos), ao pedir que a Noite viesse, uma ideia  muito  clara desse sentimento noturno: Vem, e embala-nos, vem e afaga-nos.
BAUDELAIRE
Beija-nos silenciosamente na fronte, tão levemente na fonte que não saibamos que nos beijam senão por uma diferença na alma. Ou lembremo-nos de como Baudelaire, com o seu Recueillement, pede à sua dor que ela se tranquilize quando uma atmosfera obscura envolve a cidade, trazendo a uns a paz e a outros, o cuidado. Em ambos a esperança de que  Nix venha com Fílotes.



CHOPIN
( DELACROIX , 1789 - 1863 )
São certamente de Fílotes as composições musicais, vocais ou instrumentais, depois sobretudo pianísticas  sem forma especial, de caráter melancólico, triste para alguns,  a que deram o nome de noturno. Peças de atmosfera às quais Chopin, mais do que qualquer outro compositor, tem seu nome ligado. Abandono, solidão, um pedido de socorro... São também desse filho de Nix as chamadas berceuses, canções para fazer as crianças pegarem no sono, ritmo que lembra o balanço delicado de um berço. Para os povos de língua inglesa é a conhecida lullabay. Entre nós, é o acalanto (mitigar, acalmar, aquietar, calar), como Mário de Andrade registrou em Macunaíma, ao pedir que Acutipuru devolvesse o sono ausente da criança.
           
SELENE

Antes as trevas, depois a luz, é a sentença latina (Post tenebras lux), o que se torna válido tanto  para as cosmogonias como para o nosso processo de individuação. Importante destacar que Nix por isso é também vista como algo que devemos atravessar. As travessias noturnas são fortemente marcadas pela presença da Lua, a luz noturna, olho de Nix, que entre os gregos toma, dentre outros, o nome de Selene. Embora associada à doçura, à brancura, à proteção e à generosidade, lembrando em muitas tradições as velhas madrinhas, o poder maléfico de Selene pode ser tão grande quanto os bens que prodigaliza. O ferido por ela chama-se lunático, palavra que na antiguidade e ainda hoje em certas sociedades é sinônimo de epiléptico (agarrado, raptado por cima). Não esqueçamos também que aluado designa o que nasce com perturbações tanto psíquicas (amalucado) quanto físicas, o que nasceu fraco, raquítico, o que não tem coluna vertebral (rhakhis) boa. Tudo isto porque da Lua depende tudo o que nasce e que tem de passar à vida adulta, brotos, crias, ervas, gemas, grelos, rebentos, embriões. É neste sentido que a Lua aparece como deusa das passagens, das travessias, funções que se ampliarão e se fixarão melhor na figura de Ártemis, deusa lunar do panteão olímpico.


HESÍODO
Outra que aparece com Nix é Hécate (a que fere  distância), também  representação lunar como Selene. Vinda de um mundo pré-olímpico, Hesíodo, em sua Teogonia, dá-lhe grande destaque, certamente por ser agricultor além de poeta. Hécate representa os mistérios da noite, todos os seus sortilégios, sua magia, seus encantamentos. Deusa ctônica, dividia o poder sobre as encruzilhadas com o deus Hermes, o deus dos caminhos. Personificava as três fases visíveis da Lua, recebendo, por isso, o nome de Triforme ou Trívia, além dos de  Curótrofa e Enódia, a que faz passar e a dos caminhos. 

Baixava Hécate nas encruzilhadas a cada vinte e oito dias mais ou menos, na Lua nova (ausência de lua no céu). A Lua nova, como se sabe, é tempo de germinações espontâneas, indica que algo vai surgir. Daí um outro nome seu, Numênia, a primeira Lua. Simboliza fecundidade, fertilidade, redes e pomares cheios. Na Alquimia, a Lua nova tem a ver com a primeira etapa da obra alquímica, a nigredo. O séquito da deusa era formado por espectros, fantasmas, demônios, que aterrorizavam os que paravam nas encruzilhadas. Do séquito de Hécate participavam também  cães, éguas e lobas. Os cães, sobretudo, eram muito caros à deusa já que era pelos latidos deles que se anunciava a sua chegada. Fazem também parte do séquito da deusa, às vezes, entidades repulsivas  como a Empusa e a Lâmia, monstros dos terrores noturnos, ligadas aos mundos maternal e infantil. 


HÉCATE  ( WILLIAM BLAKE , 1757 - 1827 )

As almas errantes também faziam, às vezes, parte do cortejo da deusa, almas daqueles que não tinham tido morte ritual, razão pela qual  ficam a perambular pela terra. Hécate tinha, dentre as suas funções, a de estar sempre presente quando a alma entrava e saía do corpo. Daí ser deusa das almas dos mortos. Quando vinha à terra ficava a passear  nos cemitérios entre as tumbas, carregando consigo, em meio a gemidos e ranger de dentes, as almas sedentas, com suas longas vestes. Ao lado dos alimentos que lhe eram oferecidos, sempre juntos da deusa a copa e o cântaro. 

Em muitas tradições místicas, como no Sufismo, bastante comuns as imagens da viagem noturna. Para se chegar ao desejado estado de contemplação é necessário fechar as passagens dos sentidos físicos para que os espíritos, mais profundamente, possam operar com liberdade. É a chamada Noite Mística: barrar as impressões dos sentidos (esperanças, medo, emoções, sentimentos, etc.) para se chegar à luz interior. Para S. Juan de la Cruz, o famoso místico carmelitano, entrar na noite é o caminho da ascese,  a noite escura da alma: Oh! Noite que me guiaste! Oh! Noite mais amável que a alvorada! Oh! Noite que juntaste Amado com Amada, Amada já no Amado transformada (Canções da Alma).


S. JUAN DE LA CRUZ ( BECERRA , 1520 - 1570 )


TÂNATOS
Mais radical que Hipnos é seu irmão gêmeo Tânatos, a morte, também conhecido como sono eterno, o que tem alma de ferro e coração de bronze, inacessível à piedade, como diz Hesíodo. As representações terríveis de Tânatos, ao longo da história grega, é bom lembrar, admitiram sempre um lado “positivo”, digamos, na medida em que este filho de Nix significava transição para uma outra vida, acenava com possibilidade de renascimento. Se figuras sinistras como as Keres ou Eurínomo a ele se associavam  havia também a imagem dos Campos Elíseos. As Keres,  filhas de Nix, deusas lúgubres, sempre sedentas de sangue, atacavam os moribundos nos campos de batalha, como Homero nos deixou  no canto XVIII da Ilíada. Quanto a Eurínomo, o monstro escuro que devorava as carnes dos cadáveres, registre-se que é criação artística posterior. Polignoto, o pintor, o coloriu de azul, ao executar suas composições murais sobre temas mitológicos, que Pausânias e Plínio descreveram. Mesmo as Moiras, as donas do fio da vida,  também filhas de Nix, ligadas  a Tânatos, nunca chegaram  a ser representadas  de forma repulsiva ou hedionda. É claro que não podemos perder de vista as contribuições órficas e pitagóricas, já no período helenístico, que suavizaram bastante o tema da morte. 



UM  FIO  DE  OURO ( JOHN  MELHUISH  STRUDWICH , 1849 - 1937 ) 

Ao lado do caráter inexorável, iniludível, da ação das Moiras, Tânatos sempre foi visto como uma espécie de véu que se interpunha entre o morto e a luz, uma espécie de nuvem negra. Olhos que se fechavam, pálpebras baixadas, um ato de compaixão, quase. Um benfeitor especial que trazia o descanso e aliviava as dores. O que sempre se destacou quanto às Moiras, mais do que uma ideia de um inimigo físico foi a de que tanto simbolizavam as três etapas da vida humana: nascimento (Cloto), duração (Láquesis) e morte (Átropos), como a impossibilidade de sabermos de antemão o nosso destino. Uma fatalidade, sim, mas também uma liberação, um acesso, uma revelação. Daí, muitas representações de Tânatos como um belo jovem, como que a dormir, recostado numa árvore, uma tocha apagada ao lado. Ou, como em muitas outras representações, uma coluna partida, uma vela de barco arriada, uma corrente quebrada. Em alguns casos, esculpida na pedra, junto, uma borboleta, a indicar crenças reencarnacionistas. Atenuavam-se as representações violentas de Tânatos, como, por exemplo, as que o faziam semelhante a  Bóreas, o terrível vento hibernal do norte.


MOMO
Próxima de Éris, a Discórdia, estava outra  filha de Nix, Momo, a zombaria, o sarcasmo. Sua ocupação era a de ridicularizar as ações divinas ou humanas, com exceção as de Afrodite, nas quais  não encontrou nada que pudesse ser ridicularizado. No canto II (86) da Odisseia, lá está ela nas palavras de Telêmaco, filho de Ulisses. Momo marcou sua presença  na mitologia grega de modo espetacular ao se tornar a inspiradora da guerra de Troia a Zeus como recurso para a diminuição da densidade demográfica, insuportável àquela altura conforme queixas da grande-mãe Geia. Já Geras, a  velhice, outra filha, a angústia do efêmero, era uma triste divindade. Sempre representada por uma velha mulher, de túnica negra, um bastão de apoio retorcido numa das mãos; na outra, uma taça vazia; ao lado, uma clepsidra quase esgotada

PÍNDARO
Na divisão dos bens do universo, couberam aos humanos, por sua própria culpa, muitos males e misérias, embora, como dizia Píndaro nas Nemeias, deuses e humanos tivessem uma mãe comum. As atividades humanas ficaram restritas a limites impostos pelos deuses. Ultrapassá-los, era ofendê-los. Ofendiam os humanos aquilo que os gregos chamavam de Nêmesis,  grande divindade, filha de Nix, que personificava a justiça distributiva. Mais ainda: admitiam também os gregos que,  por mais rico e poderoso que fosse um homem, os deuses, talvez por inveja, poderiam sujeitá-lo a uma punição. A fortuna demasiada era um insulto aos deuses, sentimento que fazia parte do culto a Nêmesis. A deusa recebia  também o nome de Adastreia  (a da qual não se pode fugir, a necessidade).  Nêmesis marcava os limites dentro dos quais deveriam se distribuir as ações humanas. Não é por outra razão que a Moira é chamada de Aisa, parte igual, o “pedaço” de vida assinalado a cada um de nós.

Os deuses gregos  interferem na vida dos mortais, os efêmeros, os nascidos para um dia; dela participam, misturam-se, chegam facilmente à  promiscuidade, têm paixões, fazem sexo, muitos são declaradamente homossexuais. De outro lado e ao mesmo tempo são imortais (athanatoi), imperecíveis, imputrescíveis, sublimes. Vivem no Éter, gerado por Nix, a camada superior do cosmos, acima da Lua, região da luz eterna. Seu modo de viver é o de um banquete sem fim (thaleia). Difícil compreender, inaceitável mesmo, se não tivermos em mente o caráter imanentista da mitologia grega, que os deuses e sua entourage sejam ao mesmo tempo imortais, isentos de preocupação e de cuidados, estes típicos dos humanos, vivendo numa situação de satisfação sem carências, possam chegar na sua convivência ou envolvidos com mortais a tantas situações de perigo, de risco, de degradação e de vexame. Verdades ou poesia? Sólon já havia observado  que muito mentem os poetas. Xenófanes foi mais claro e Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que entre os homens é vergonhoso e censurável, roubo, adultério e logro mútuo. Por isso, Platão certamente proibiu a entrada de Homero no seu  Estado ideal...


JAVÉ
Na tradição imanentista , as divindades não ficam fora da existência humana, distantes e inacessíveis como um Javé-Adonai, nem a transcendência é transferida para uma outra vida, para o além, fora dos limites da experiência possível. A transcendência é colocada no aqui e no agora, nesta vida, tornando-se algo histórico. Os deuses gregos vão representar o possível dessa transcendência, salientando a importância da existência humana no que ela tem de irredutível. São a consciência permanente que temos de tomar do nosso destino pessoal na medida em que nos arrancamos a cada momento do nada para abrir adiante um futuro onde nossa existência se decidirá. 

Representam assim as divindades gregas os possíveis de nossa transcendência, que não é lançada para uma outra vida, cabendo-nos a escolha ou, se quisermos, a perplexidade diante das várias  possibilidades que tipificam. São eles  em nosso mundo princípios
KIERKGAARD
vitais que nos animam e não algo que vem de fora. A imanência é o momento pelo qual nós, refletindo sobre a nossa existência, experimentando, quem sabe, um sentimento de angústia diante dela; chegamos por nós mesmos ao “divino” ou ao “demoníaco” da divindade que “vive” em nós. É neste sentido que a transcendência só pode se dar pela existência (Kierkgaard).