sábado, 18 de janeiro de 2020

SOB O SOL DE SATÃ

                                                                        (Literatura e Cinema)     


Quando Maurice Pialat (1925-2003) optou, em 1987, por um tema démodé para enfrentar o júri e o público de Cannes, ele, para alguns profissionais do cinema, correu um risco calculado. Seu filme, Sob o sol de Satã, tendo por base o romance de mesmo nome de Georges Bernanos, competiu, mais diretamente, com os mais cotados nesse ano,  no 40º Festival de Cannes: Asas do Desejo (Win Wenders), A Família, de Ettore Scola, Olhos
SOB  O  SOL  DE  SATÃ
Negros,
de Nikita Mikhalkov, e Yeelen, de Souleymane Cissé. Presidiu o Júri desse festival o francês Yves Montand, famoso cantor e ator francês, muito conhecido por suas atividades políticas de esquerda. Patriotada ou não, o que ficou desse festival, com a vitória de Pialat, highly controversial, como disseram os americanos, foi não só um grande filme, o
ROBERT  BRESSON
excepcional Sob o sol de Satã (comparável, sob certos aspectos, com a obra-prima de Carl G. Dreyer, A Palavra), e o que chamo da necessidade de se conhecer melhor um grande romancista francês. Ainda ligando Bernanos ao cinema não se pode esquecer dos premiadíssimos  filmes Diário de um Pároco de Aldeia, de 1951, e de Mouchette, a Virgem Possuída, de 1967, dirigidos pelo grande Robert Bresson. 

No final dos anos 80, muito se falou e escreveu sobre o filme de Pialat, os cinéfilos, obviamente.  Quanto a Bernanos e ao seu romance, nessa época do festival de Cannes, praticamente nenhuma referência. Só recentemente, nos primeiros anos do nosso século, Bernanos pode se tornar mais conhecido aqui no Brasil por um público maior; alguns de seus livros foram traduzidos e editados e a história dos anos em que aqui viveu foi contada. Minha dívida pessoal para com ele era, porém, mais antiga. Conhecia-o desde os anos 60, inclusive pelo teatro. Reafirmando-se cada vez mais para mim a impressão que dele guardara (a denúncia quanto à desaparição da vida interior e a transformação dos seres humanos em verdadeiras boiadas pelo sistema econômico), tudo isto e muito mais me levou de volta ao livro (Sob o sol de Satã) e ao filme de Pialat, que já nos deixou também.


GEORGES   BERNANOS
Bernanos nasceu no dia 20 de fevereiro de 1888, em Paris, e morreu em Neuilly-sur-Seine em 1948. Pelo lado paterno, a família era de pequenos comerciantes (o pai era tapeceiro) e pelo lado materno de camponeses. Passou a infância e a juventude em Artois, na região norte do país, região que será o cenário de suas principais obras. Seus primeiros anos de vida são muito marcados pela religiosidade do ambiente familiar e escolar. Na juventude, politicamente, tornou-se um monarquista convicto. Participou da primeira guerra mundial (1914-1918), sendo ferido muitas vezes.

OS  GRANDES
CEMITÉRIOS SOB A LUA
Por falta de recursos materiais, por anti-conformismo e também por gosto pessoal, tornou-se desde cedo um fervoroso adepto da motocicleta como meio de transporte cotidiano. Em sua obra Os Grandes Cemitérios sob a Lua evocou bastante as suas incursões de moto através da ilha de Majorca, durante a guerra civil espanhola, referindo-se à sua moto vermelha que roncava como um pequeno avião.

Católico fervoroso e apaixonado monarquista, Bernanos militou, desde cedo nas fileiras da Action Française. Às vezes designada simplesmente pela sigla AF, a Action Française foi tanto uma escola de pensamento, de ideias, como um movimento político
O   JORNAL
monarquista de extrema-direita que se desenvolveu na primeira metade do século XX, na França. Esse movimento, ao terminar a segunda guerra mundial (1939-1945), por ter apoiado o regime de Vichy e por causa de sua cumplicidade com os invasores nazistas não teve mais condições de sobreviver. O jornal Action Française, órgão do movimento, deixou de circular, tendo sido proibida a utilização de seu título.

Em 1917, Bernanos se casou com Jeanne Talbert d’Arc (1893-1960), uma descendente da família da heroína francesa Jeanne d'Arc (1412-1431), tornando-se pai de seis filhos e trabalhando numa companhia de seguros. Financeiramente, sua vida era difícil, agravada a sua situação pela saúde da mulher, muito frágil.Terminada a guerra, na qual foi ferido muitas vezes, Bernanos retornou ao seu lugar de jornalista na AF e se tornou colaborador do jornal Le Figaro, o que levou a um sério atrito com um dos fundadores e principal figura da AF, Charles Maurras. Bernanos, por essa época, também demonstrou publicamente seu descontentamento pela linha política que a AF vinha adotando.

Rompendo com a Action Française, com problemas financeiros agravados, descontente, resolveu ir com a família para a ilha de Majorca e passou a adotar, com entusiasmo, a motocicleta como seu meio de transporte. Foi nessa ilha que viu o franquismo nascer e estourar a guerra civil espanhola. A princípio, apoiou a política de Franco, mas logo se desiludiu, com a selvageria das tropas franquistas e a hipócrita posição do clero espanhol.

SOB O SOL DE SATÃ
Em 1926, Bernanos publicou o seu primeiro romance, Sous le Soleil de Satan (Sob o Sol de Satã), inspirado na vida do Cura d’Ars, obra que lhe deu o Grande Prêmio do Romance da Academia Francesa, e que imediatamente se transformou num grande sucesso de crítica e de público. Obtendo um pouco mais de folga financeira, pode Bernanos a partir de então  se dedicar inteiramente à literatura, publicando, em cerca de vinte anos, uma obra sui generis. 

Foi nas ilhas Baleares, onde residia, que tomou conhecimento da posição dos países ocidentais com relação à política externa da Alemanha nazista. Com a ascensão de Hitler ao poder e devido às suas pregações nacionalistas, os alemão que habitavam os países vizinhos se sentiram muito atraídos pela possibilidade de fazer parte da chamada Grande Alemanha. Ou seja, os territórios onde vivessem alemães, nos países vizinhos, passariam a fazer parte do território alemão. Em março de 1938, Hitler já havia anexado parte da Áustria, tornando-a uma província do Reich. A Alemanha hitlerista estava tentando conquistar parte do território da Tchecoslováquia do mesmo modo, a chamada Sudetolândia, região tcheca habitada em grande parte por alemães (cerca de 70%). Hitler começou a exercer forte pressão sobre o governo tcheco. O perigo de uma guerra tornou-se iminente. 

O primeiro-ministro inglês, Neville Chamberlain, conservador, e Daladier, presidente da França, propõem encontrar-se com Hitler em Munich. Assim é feito, celebrando-se um acordo, do qual participa a Itália, com Mussolini. Os alemães, sob a promessa (não cumprida) de que não declarariam guerra, obtêm o de acordo da Inglaterra, da França e da Itália, para anexar a referida região tcheca ao seu território. Esse acontecimento convenceu Hitler de como os aliados ocidentais estavam débeis e o estimulou a obter mais. Em março de 1939, a Tchecoslováquia deixou de ser um país independente, transformando-se no Protetorado da Boêmia e Morávia da Alemanha.


CRUZ  DAS  ALMAS , ATUAL  MUSEU  BERNANOS
Revoltado e envergonhado com a posição da França e da Inglaterra, diante da pressão alemã, Bernanos resolveu seguir o caminho do exílio, defendendo publicamente a sua posição. Pretendeu inicialmente fixar-se na América do Sul. O local escolhido para exilar-se com a família era o Paraguai, mas acabou ficando no
STEFAN  ZWEIG
Brasil, onde chegou acompanhado da mulher, dos filhos e de um sobrinho. Dirigiu-se primeiro para Itaipava, no estado do Rio de Janeiro, instalando-se depois em Vassouras (RJ), Pirapora (MG) e Barbacena (MG). Por indicação de Virgílio de Melo Franco, fixou-se em Cruz das Almas (Barbacena), onde recebeu, em 1942, a visita de Stefan Zweig, pouco antes de seu suicídio. 

No Brasil, Bernanos escreveu Les Enfants Humiliés (As Crianças Humilhadas), Lettre aux Anglais (Carta aos Ingleses), Le Chemin de la Crois-des-Âmes (O Caminho de Cruz-das-Almas) e La France contre les Robots (A França contra os Robôs). No Brasil, terminou também Monsieur Ouine (O Senhor Ouine), que publicou na França em 1945. No Brasil,  Bernanos, se relacionou com muitos escritores, chegando mesmo a influenciá-los consideravelmente. Aqui, manteve estreitas relações com  Jorge  de
Lima, Alceu de Amoroso Lima, Henrique Hargreaves, Virgílio de Melo Franco, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins, Geraldo
LIVROS  DE  S. LAPAQUE  E  DE  H.J. SARRAZIN
França de Lima e Hélio Pelegrino, dentre outros. Esta fase brasileira de Bernanos foi registrada por Sébastien Lapaque no livro Sob o Sol do Exílio: Georges Bernanos no Brasil (1938-1945). Outro registro foi o de Hubert Jacques Sarrazin, no livro Bernanos no Brasil (Editora Vozes).

Dentre outras obras de Bernanos traduzidas para o português, destaques para: Sob o Sol de Satã, Diário de um Pároco de Aldeia, Diálogo das Carmelitas, Nova História de Mouchette, Os Grandes Cemitérios sob a Lua, Joana, Relapsa e Santa, Um Sonho Ruim.

BRASIL, TERRA DE AMIZADE
Como jornalista, Bernanos participou intensamente da vida política francesa. Mesmo exilado no Brasil, seus artigos eram publicados na Europa. Deu grande apoio à Resistência Francesa e se colocou inteiramente contra o governo francês de Vichy, pró-nazista. Ao retornar à França, depois de terminada a segunda guerra mundial, Bernanos continuou, nômade como sempre, mudando-se de uma cidade para outra (mudou-se cerca de quarenta vezes ao longo de sua vida). O general Charles de Gaulle, que nutria por Bernanos uma grande admiração tanto pelo homem como pelo escritor, ao assumir o governo do país, propôs que ele assumisse uma função importante no seu ministério. Embora admirador das posições políticas de de Gaulle, Bernanos nada aceitou, assim como também rejeitou por três vezes a comenda da Légion d’Honneur e uma cadeira na Academia Francesa. 

Como ler Bernanos? No fim do século XIX e início do século XX, um aspecto da literatura francesa chama a atenção; tratava do declínio da influência religiosa, do cristianismo, em especial, na arte, muito presente até então. Em 1905, por decisão legal, o catolicismo deixou de ser a religião oficial do estado francês.Terminada a primeira guerra mundial, a questão religião-literatura voltou a ser discutida pela intelectualidade francesa. A calorosa acolhida que o romance Sob o Sol de Satã, de 1926, mereceu da crítica e do público pôs a questão de novo na ordem do dia, já que a França sempre foi e continua sendo o país onde se lê mais literatura de nível mais elevado.

No início dos anos 20, o movimento surrealista procurava também o seu lugar como proposta estética, tanto nas artes plásticas como na literatura. O surrealismo foi um movimento de vanguarda do qual fizeram parte artistas plásticos e escritores que procuraram romper com o racionalismo, por eles julgado limitador, redutor, a
BRETON   E   
MANIFESTOS   DO   SURREALISMO
fim de liberar a “vida do espírito” e captar o “maravilhoso” no cotidiano. O interesse mais imediato do movimento se centrava na produção de uma literatura do inconsciente, de base onírica, cuja finalidade, em parte, era a de ultrapassar a realidade da guerra. Em 1924, André Breton, grande nome da poesia, publicou  O Manifesto Surrealista, definindo as bases do movimento, que logo se irradiou pela Europa e pelos USA.

A primeira guerra mundial deixou marcas profundas na sociedade europeia, tornando-se bastante representativa uma corrente literária voltada para temas a ela ligados, com obras muito significativas, algumas premiadas (prêmio Goncourt). Quando, nesse cenário, o livro de Bernanos apareceu, grande era o debate literário envolvendo críticos, religiosos, leitores, filósofos e escritores. Foram precursores desse debate grandes nomes da literatura francesa que desde os últimos anos do século XIX haviam se convertido ao cristianismo, escritores como Paul Claudel, J.K. Huysmans e outros. No início do século XX, esse movimento em direção de conversões religiosas aumentou com a adesão de Francis Jammes, Jacques e Raissa Maritain, Max Jacob e outros. Gabriel Marcel, filósofo (fenomenologia) e dramaturgo, publicou a sua
FRANÇOIS  MAURIAC
peça L’Homme de Dieu, em 1925, convertendo-se oficialmente ao cristianismo em 1929. Julien Green, por essa época, abandonou o protestantismo pelo catolicismo. François Mauriac, que se tornara famoso com a publicação de Deserto do Amor, Thérèse Desqueyroux e Le Noeud de Vipères, voltou também à fé cristã.

A mais importante revista literária da época, a Nouvelle Revue Française, criada em 1909, conhecida pela sigla NRF, tornou-se uma arena de debates sobre a febre religiosa que tomara conta de algumas correntes literárias francesas, motivada principalmente pelos problemas sociais e psicológicos gerados pela guerra de 1914-1918. Entre o início dos anos 1920 e o início da segunda guerra mundial (1939-1945), Jacques Maritain manteve em sua casa o que alguns chamaram de o último salão de conversão. O abade Altermann, que celebrava aos domingos, em Paris, a missa dominical na Igreja dos Beneditinos, tornou-se o diretor de consciência de muitos escritores católicos dessa época. A teologia de Santo Tomás de Aquino voltou a ser discutida e muitos críticos literários, dentre os quais destacam-se Jacques Rivière e Albert Thibaudet, procuram debater os novos rumos da espiritualidade cristã na literatura.


ANDRÉ  GIDE
Por essa época, André Gide (1869-1957), simpatizante dos movimentos políticos de esquerda, depois de ter publicado Os Frutos da Terra, A Porta Estreita e Os Moedeiros Falsos, passou a ser considerado como um mestre por toda uma geração de jovens escritores. Em 1921, ele fez uma série de palestras, muito concorridas, num teatro de Paris, com base num ensaio que escrevera sobre Dostoievski. Esse teatro, chamado de Vieux-Colombier, funcionava como uma espécie de anexo da NRF.


  THÉÂTRE  DU  VIEUX-COLOMBIER 
Gide, nessas palestras, enunciou dois aforismos, logo tornados célebres e relacionados com a obra de Bernanos, aforismos que causaram muito escândalo: 1) É com bons sentimentos que fazemos a má literatura; 2) Não há obra de arte sem a colaboração do Demônio. Na sua quinta conferência, Gide discorreu sobre a existência do Demônio, no mais das vezes considerado pelos religiosos e pelos protestantes em particular como um simples conceito do Mal. Gide afirmou que o Demônio existia realmente, que o Maligno era um ser pessoal. Ele assinalou que o Demônio afetava o intelecto do homem, a sua parte mais nobre, e que ele agia sobretudo sobre os artistas enquanto estavam a elaborar a sua obra: toda obra de arte é um lugar de contacto, ou, se preferirem, um anel de casamento entre o céu e o inferno, dizia ele.

Vários escritores responderam a Gide. Um deles foi Henri Massis, também crítico literário,diretor de publicações da editora Plon, que tinha entre seus colaboradores Jacques Maritain. Massis era católico e um nacionalista convicto, discípulo de Maurras. Massis, com farta argumentação, acusou Gide de opor valores confusos, que só rebaixam o homem, a ideais clássicos e cristãos que, ao contrário, só o elevam. Jacques Rivière, então diretor da NRF, que fora atacado por Massis, e o escritor François Mauriac entraram também no debate. Ambos, embora não tivessem acatado totalmente os pontos de vista de Gide, não aceitavam o epíteto de demoníaco gideano. O que se sabe é que os meios intelectuais se agitaram bastante com aquilo que, para muitos, não passou de uma provocação de Gide. Foi neste ponto que George Bernanos entrou no debate, primeiro para concordar com Massis e depois, enquanto rompia com a Action Française e Maurras, se colocar totalmente contra ele.


BARBEY D'AUREVILLY
Publicado em 1926, pela editora Plon, Sob o Sol de Satã, seu primeiro romance, coloca Bernanos, como disse André Malraux, na linha de Barbey d’Aurevilly, mas acima deste, o que não é verdade, se aprendemos a conhecer a obra deste curioso e fascinante escritor. Nascido em 1808 e falecido em 1889, Barbey d’Aurevilly foi romancista, novelista, poeta, crítico de literatura, jornalista e polemista; aproximou-se de temas como o sobrenatural, o dandismo, o catolicismo, o decadentismo e o realismo fantástico. 

Segundo o próprio Bernanos afirmou, Sob o Sol de Satã é um livro nascido da guerra. Ele começou a escrevê-lo durante uma estada em Bar-le-Duc, em 1920, pequena cidade situada no noroeste da França, no departamento da Meuse, na região da Lorraine. Segundo ele, nesse momento, o mundo lhe oferecia uma face odiosa, o que o fazia duvidar se viveria por mais tempo, mas que não queria morrer sem dar o seu testemunho.


SANTO CURA D'ARS
O personagem principal do livro é o abade Donissan, inspirado no Santo Cura d‘Ars. Este santo é Jean-Marie Baptiste Vianney (1786-1859), padre francês canonizado pela Igreja Católica. É considerado o padroeiro dos sacerdotes. Oriundo de uma família de camponeses, conta a tradição que para seguir a vida religiosa teve Vianney que enfrentar muitos dissabores, principalmente a sua falta de instrução, e inclusive a oposição paterna. Com o auxílio do pároco da aldeia, ele conseguiu, com vinte anos de idade, ingressar no seminário da região. Consta que a sua capacidade de raciocínio não era boa. Para os seus professores era considerado um rude camponês que não tinha capacidade para aprender matérias mais abstratas como filosofia e teologia. Entretanto, se tinha dificuldade para acompanhar os outros, era um modelo de obediência, de caridade e de perseverança na fé. 

Foi o seminarista Vianney ordenado em 1815, mas com o impedimento de não poder confessar, por não o julgarem apto para guiar consciências. Apesar disso, acabou conseguindo assumir a condição de confessor três anos depois, tornando-se  um dos mais famosos e competentes confessores na história da Igreja Católica. Foi designado para cura de Ars, ao norte de Lyon, uma pequena cidade cuja população, na sua maior parte de não-praticantes da religião, era famosa por sua violência. Aos poucos, por sua postura, conseguiu mudar a realidade da pequena cidade. Afastou os homens das tabernas e os atraiu para a Igreja, usando para tanto a confissão, que passou a ser muito procurada como um meio de reconciliação. Tornando-se famoso por seu trabalho, o padre Vianney, com a sua atividade e conselhos, atraiu também muita gente das pequenas cidades vizinhas. 

Na paróquia em que vivia, em Ars, o padre Vianney fazia tudo, inclusive os serviços da casa paroquial, a limpeza, as suas refeições. Comia muito pouco e dormia cerca de três horas por noite. Quando herdou bens da sua família, distribuiu tudo entre os pobres. A fama de sua generosidade e desprendimento alastrou-se por toda a região, tornando-se Ars um centro de peregrinação. Jamais descansou e morreu consumido pela fadiga na noite de 4 de agosto de 1859, aos setenta e três anos. 

O padre Donissan, como o constrói Bernanos, é um personagem atormentado; duvida de si mesmo, chegando até a se considerar como indigno de exercer seu ministério. Seu superior e pai espiritual é Menou-Segrais, que o vê de outro modo, como alguém com traços até de santidade, pois ele tinha, segundo acreditava, a capacidade de irradiar a graça divina à sua volta. Mais tarde, Donissan receberá  o dom de “ler as almas”, de nelas entrar, dom que lhe fora concedido quando de um encontro noturno extraordinário que tivera com o próprio Satã. Seu destino sobrenatural vai confrontá-lo com Mouchette, uma jovem que ele não conseguirá salvar apesar de seu engajamento total para que tal acontecesse.

MAQUIGNON
 O encontro do padre Donissan com Satã, sob os traços de um maquignon, acontece numa noite em que ele foi a uma vila vizinha, para confessar alguns de seus habitantes. Maquignon em francês quer dizer alquilador, contratador de animais, vendedor de cavalos, sendo figuradamente um corretor de negócios um tanto escusos. Maquignoner, o verbo, quer dizer traficar, enganar, dissimular os defeitos de animais negociados, obter lucros em negócios pouco lícitos.

A história se passa na mencionada pequena cidade do norte da França, onde o abade Menou-Segrais acolheu na  sua paróquia o jovem sacerdote Donissan. Atormentado por dúvidas sobre a sua vocação religiosa, tendo recorrido inclusive a mortificações, Donissan experimenta grandes dificuldades para dar conta das suas funções cotidianas. O seu superior, Menou-Segrais, por sua ascendência natural, consegue fazer com o que jovem sacerdote volte a entrar em contacto com a sua aspiração profunda, na sua busca espiritual.


Perto da paróquia, Germaine Malhorty, chamada pelo apelido de Mouchette, uma adolescente de 16 anos, filha de um fabricante de cerveja da região, levava uma vida desregrada, cheia de fantasias, tendo aventuras sexuais com homens mais velhos. Tornara-se amante do arruinado marquês de Cardignan, que passara a se desfazer dos bens que herdara; mantinha também a jovem relações com um médico casado e deputado, Mr.Gallet.


MOUCHETTE,  APÓS  MATAR  SEU  AMANTE
Certa manhã, depois de ter passado a noite na casa de seu amante, Mouchette o mata com um tiro de uma velha espingarda de caça, um gesto meio acidental, meio intencional. Grávida, ela fala de seu estado a Gallet. Cioso de sua posição social, ele tenta confortá-la, revelando que a sindicância sobre o ocorrido concluiu pelo suicídio de seu amante, mas se recusa a ajuda-la, fazendo um desejado aborto. Mouchette que vive cada vez mais assediada interiormente pela sua culpa, passa a viver cada vez mais à deriva. 

Enquanto isso, Menou-Segrais envia Donissan para prestar assistência aos fiéis de uma paróquia vizinha. É no caminho que o jovem padre encontra a estranha figura (maquignon) acima mencionada, que se revela como uma encarnação de Satã. Enquanto o jovem padre tenta resistir ao fascínio da inusitada presença, esgotado, ela lhe oferece o dom de ver o interior dos seres humanos.

Donissan vai depois, ciente do que estava se passando com Mouchete, encontrá-la, com a firme intenção de reconduzi-la ao reino de Deus. A jovem, contudo, tendo retornado à sua casa, com uma lâmina, rasga a própria garganta, suicidando-se. Donissan, perdido, nada mais pode fazer senão levar o corpo agonizante de Mouchette ao altar da igreja. Um gesto escandaloso, que dele vai exigir uma explicação, uma retratação.

PADRE  DONISSAN  E  MOUCHETTE
Sous le Soleil de Satan pode ser dividido em três partes: 1) uma introdução onde se narra a  história de Mouchette, a jovem orgulhosa e impulsiva que vivia atormenta pela presença do mal em sua vida. Matou o homem que a seduziu e ficou chocada com a fraqueza e a pusilanimidade do seu outro sedutor, o deputado e médico Gallet. O padre Donissan não conseguiu salvá-la do poder de Satã. Arrancando o ensanguentado corpo da jovem do ambiente familiar, como foi dito acima, o leva e o deposita no altar da Igreja. Este gesto, escandaloso, como se disse, lhe vale cinco anos de reclusão, depois dos quais é nomeado para cura de Lumbres, uma pequena paróquia de gente insignificante. 2) Considerado um santo pela população local, vamos encontrar, tempos depois, Donisson envelhecido, mas sempre humilde e angustiado. Ele acreditou no fundo, um dia, respondendo ao apelo de Deus, que, pelo milagre da fé, poderia ressuscitar uma criança morta. Nova oportunidade lhe aparece, mas uma explosão de riso nervoso lhe revelou que tudo não passava de uma artimanha do próprio Satã, a lhe insuflar o pecado do orgulho. A criança não ressuscita, a mãe enlouquece e Donisson experimenta na sua transtornada desorientação os primeiros sinais de uma lancinante dor no peito. Ele será descoberto, como se disse, em seu confessionário, morto.


Passa-se o tempo, Donissan está agora em Lumbres (palavra que lembra, em francês, ombres, sombras), um lugarejo para cuja paróquia fora nomeado. Adquirira a reputação de um santo sacerdote, por sua caridade e humildade. Um camponês de uma comuna vizinha o procurou então para que ele desse atenção ao seu filho, que agonizava, vítima de uma meningite. Ao se encaminhar para ministrar os últimos sacramentos à criança, algo diferente o esperava: a família e um padre que se encontravam na casa do camponês esperavam dele nada mais que um milagre, pois a criança morrera. Donissan, alarmado, põe-se em fuga, persuadido da vitória das forças do mal. Esgotado, suplica a Deus que lhe permita viver se Ele julgá-lo capaz de ainda poder ajudar os outros. Fracassa, morrendo em pleno confessionário, onde o abade Menou-Segrais, que viera visitá-lo, o encontrou.

Bernanos deu a dois personagens o nome de Mouchette. A primeira delas figura em Sous le Soleil de Satan (1926). É a orgulhosa adolescente vítima do egoísmo dos homens que a desejaram sem amá-la, o que a fez voltar o seu desprezo contra si mesma e a sua
COM  TREZE  ANOS
revolta contra a ordem estabelecida. A segunda Mouchette tem treze anos e aparece em Nova História de Mouchette (1937). Neste personagem, Mouchette, se encarnam todos os miseráveis que suportam as agruras do seu destino sem jamais chegar a compreender toda a infelicidade de sua condição. Mouchette não existe senão como um ser que sente, mas uma sensibilidade sempre aguda, profundamente sofrida, dolorosa. 

No prólogo de seu romance, Bernanos procura reunir alguns temas que lhe são caros para nos mostrar as vias comuns do pecado. A humanidade, como uma boiada (troupeau) inconsciente, frouxa, perdida nos seus mil cuidados cotidianos, mais preocupada em manter a sua honorabilidade aparente do que procurar seguir moralmente uma vida firme e sadia, pactua sem cessar com o mal a ponto de criar continuamente as estruturas dos seus próprios pecados e faltas. As almas amolecidas, anestesiadas pela indiferença, niveladas pela descrença, não percebem que mergulham pouco a pouco no nada. 

Mouchette, como Bernanos nos deixa claro, recusou essa vida morna e procurou levar uma vida ativa, exaltada, mas enganosa em sua revolta. Ao fim de sua caminhada, ela só encontrará o desespero, a loucura e o suicídio. Nestas condições, o que há para aqueles que como Mouchette se envolvem na vida dessa maneira, é a morte da alma, uma solidão desesperada. Bernanos nos aponta que Satã é o mestre da ilusão com relação ao fim último do homem, conduzindo-o na direção das aparências enganadoras e estéreis, sempre causadoras de insatisfação e, nos piores casos, da sua própria autodestruição.

Bernanos, ao procurar uma síntese no seu prólogo, nos põe diante de dois valores ilusórios, o realismo e o otimismo, que não podem ajudar a humanidade ferida pelo mistério do Mal, do pecado, e do necessário combate espiritual. Para ele, o realismo era uma visão horizontal da natureza humana; era a boa consciência dos salauds
A   NÁUSEA
(safados). Este termo, lembro, Sartre usará também para designar em sua novela La Nausée (A Náusea), aqueles que se iludem, assumindo uma máscara social, conformista e tranquilizadora, para negar os aspectos trágicos e angustiantes da existência, a obrigação das escolhas pessoais e intransferíveis. Os salauds sentem-se justificados, acreditam na ciência, não têm problemas, afivelaram a máscara e representam. São os habitantes de Bouville, observados por Roquentin, o personagem de La Nausée. 

Quanto aos otimistas, Bernanos nos fala (Os Grandes Cemitérios sob a Lua) que o otimismo sempre lhe pareceu como o álibi dissimulado dos egoístas, que  jogam para mais adiante os problemas com a finalidade de esconder a sua satisfação autocentrada. São otimistas porque tal postura os dispensa de intervir, de participar. Realismo e otimismo são para Bernanos duas justificativas satânicas que muitos homens usam para escapar do necessário combate. Para Bernanos, tal combate deveria ocorrer sempre no aqui e no agora, no que lembra Dostoievski. Ou seja, o homem não poderia encontrar a sua felicidade senão em Deus, mas sempre ao preço de um combate espiritual exigente no curso de sua existência. 

O nome Donissan, para alguns estudiosos da obra de Bernanos, parece evocar duas noções; primeiro, aquela de um dom; depois, a de algo que se consome. Donissan seria, pois, aquele que, ao se doar, vai se esgotando (uma imagem solar). Donissan , como seu modelo, o cura d’Ars, renunciou às possessões terrestres, mas guarda um sólido bom senso da realidade concreta. O misticismo, segundo Bernanos, deveria enraizar-se no mundo material, não sendo jamais um sonho vazio ou feito de pensamentos desencarnados. 

O sol de Satã é a ilusão do conhecimento racional que se atém às aparências, ao fenomênico, à superfície das coisas, sonho de poder, que não alcança o coração, os sentimentos dos homens. Neste sentido, o conhecimento humano se tornou para Bernanos um divertimento inconsequente, causador das misérias humanas, e não o dom que devemos fazer de nós mesmos na direção de alguém. 


PADRE   DONISSAN
 No personagem Donissan, Bernanos reuniu diversos valores do cristianismo que lhe eram caros. De início, lembremos o espírito de pobreza, ou seja, a liberdade com relação aos bens materiais e aos conformismos de toda espécie. Donissan desprezava o conforto dos bens materiais, renunciou à posse do que é meritório inclusive para um camponês. Este desapego é evidenciado por seu aspecto descuidado, pelos sapatos cambados que usa, por sua cama miserável, seu sótão nu. Acima de tudo, Donissan, perante o mundo social, o mundo dos “bem pensantes”, é um pobre de espírito, característica revelada por sua atitude expectante diante da vida; Donissan era o que “esperava” sempre um sinal, aquele que estava sempre na escuta de um eventual apelo. A pobreza de espírito é uma abertura, uma permanente disponibilidade. Donissan era humilde e se considerava vazio, condições para que Deus o viesse habitar. 

Alguns poucos críticos qualificados que leram Bernanos com atenção falaram do espírito de pobreza de Donissan como algo infantil, uma atitude desinteressada e natural com relação aos outros. É neste estado que as crianças têm acesso de modo espontâneo ao sobrenatural, pois conseguem perceber além das aparências. Donissan é chamado muitas vezes de criança (mon enfant) por seu diretor de consciência. Nele, estavam presentes as três virtudes teologais, fé, esperança e caridade. Embora se sentisse quase sempre sozinho na sua luta contra Satã, que queria corromper a sua fé e a sua esperança para mergulhá-lo no desespero, ele resistiu, para poder reafirmar o seu espírito infantil e conquistar esse estado que alguns chamam de santidade, à hora de sua morte. Este acesso se deu no momento em que ele pronunciou, ao morrer, um sim, definitivo para ele, através do qual reconheceu que não compreendia nada, mas que aceitava.

Para Bernanos, havia duas formas de exercício do ministério sacerdotal. Uma, a mais comum, era do funcionário do culto e a outra do aventureiro de Deus, o combatente espiritual. O mesmo ele dizia dos escritores: há os ilusionistas, os enganadores, de língua dourada, como dizia, e uns poucos, sacerdotes ou não, que entendem o que seja o Sol de Satã e por extensão quem é Donissan. A palavra destes últimos é difícil, eles muitas vezes, como o personagem do filme, gaguejam, não são eloquentes, prestidigitadores, mal sabem jogar com algumas palavras do seu cotidiano. São, porém, simplesmente simples, diretos, convincentes, olham nos olhos, falam pouco, quando não se calam. E isto é o que basta.