segunda-feira, 3 de maio de 2021

PAIXÃO E RAZÃO


PLATÃO
A palavra paixão tem uma história muito antiga. Entre os gregos, pathos, paixão, era tudo o que afetava o corpo e a alma tanto de modo benéfico como maléfico. Era algo experimentado, sempre uma ideia de algo sofrido, passivo. Vitimada pela paixão, a pessoa ficava à mercê dela. 

O filósofo Platão usava a palavra epithymia para designar os sentimentos que subjugavam o ser humano, desejos, por exemplo. Este termo que Platão usou tem por base uma outra palavra, thymos, um órgão (glândula timo), situado no centro do peito,  que, no ser humano, tem a ver com a vida afetiva, com sentimentos. Os antigos confundiam esta glândula com o coração. Por essa razão, falamos que uma pessoa quando não tem sentimentos não tem coração. Por essa razão também, na arte religiosa, a imagem de Cristo com o coração exposto no meio do peito aberto significa o amor divino pela humanidade. Ainda mais: na Índia, no Yoga, é nessa região do peito que se situa o chamado chakra cardíaco (anahata, não percutido), governado, na Astrologia, pelo planeta Vênus, que, como sabemos, é o astro da vida afetiva.

CÍCERO
Para o escritor latino Cícero, paixões são sempre perturbações da alma. Santo Agostinho verá como sinônimos paixão e libido. Aristóteles, outro filósofo grego, dizia que paixão é tudo aquilo que nos afeta. Por isso, afetados pela paixão tornamo-nos pacientes, padecemos; agente seria aquele ou aquilo que nos provoca a paixão. Qualquer que seja o entendimento, a paixão se inscreve sempre no campo dos fenômenos passivos da alma. Afetados, sentimos prazer ou dor. Se prazer, tendemos a nos aproximar do estímulo, a buscá-lo. Se dor, afastamo-nos. Todavia, este dois campos nem sempre podem ser definidos deste modo. Muitas vezes, um estímulo poderá nos causar, ao mesmo tempo, prazer e dor. 

Na Psicologia, a paixão é uma tendência de maior ou menor duração, acompanhada de estados afetivos e intelectuais, imagens muito poderosas que acabam por se impor, dominando a vida de uma pessoa pela sua intensidade e permanência. Uma inclinação que, instalada, torna-se o centro de tudo, tudo a ela se subordinando. Por isso, a paixão lembra cegueira. Nada vemos senão ela. Mesmo no caso de paixões ratificadas pela razão, somos tomados por elas. A paixão pode paralisar a ação normal da razão sobre a nossa conduta, impedindo a determinação da vontade. 

O passional se define por uma oposição ao racional, ao lógico. Neste sentido, é como a loucura. A razão, o racional, liga-se à ordem, à harmonia, à clareza. A paixão lembra irracionalidade, desarmonia, desordem, doença, caos. Desde a antiguidade, a mesma recomendação, na Filosofia, na Religião, na Medicina, na Psicologia, vigiar as paixões, pois sempre ameaçam a alma e o corpo de desordem, doenças, destruição.

PASCAL
De um modo geral, as paixões sempre foram vistas como algo condenável. A razão maior disto talvez esteja no fato de que elas atribuem um grande valor, um sentido de absoluto, ao particular, ao pessoal, ao efêmero, afastando o ser humano da sua dimensão moral. Pascal (1623-1662), o filósofo francês, dizia que um ser humano possuído pela paixão é um ser despojado do seu eu.


MONTAIGNE

Montaigne (1553-1592), nos seus Ensaios, recomendava nada de ataques frontais às paixões, pois poderiam se tornar mais teimosas, mais fortes. A não ser em último caso intervenções agressivas poderiam ser admitidas. Adotar, para combatê-las, uma espécie de "rotina", já que o tempo é, na maior parte dos casos, "o soberano médico das paixões". Lembrava que o ser humano é inconstante e que esta característica poderia ser usada para vencê-las, já que "a variação consola, dissolve, dissipa."


DESCARTES
Descartes (1596-1650) não condenava as paixões em nome da Moral. Adota a postura de um médico. Nada de dominá-las ou, pior, reprimi-las. O que devemos fazer é usá-las. A vontade esclarecida pela razão será capaz de controlá-las, afirmava ele. A partir do século XVI, e do século XVII para o XVIII, com a filosofia Iluminista (a razão pode tudo), as paixões foram vistas positivamente quanto ao seu caráter energético. A grande ideia era a de se usar a força, a energia, das paixões. 


Helvétius (17l5-1771), enciclopedista, dizia: tornamo-nos estúpidos desde que deixamos de nos apaixonar. A força das paixões, a partir de então, tornou-se muito útil na economia, na política, assumindo a condição de energia criadora, motor da ação, da História. 

Na antiguidade grega, os filósofos chamados estoicos já haviam proposto uma ética para que o ser humano pudesse escapar das paixões, sempre fonte de muito sofrimento. Era a indiferença àquilo que se sentia, àquilo que os sentidos captavam. Isto levaria o ser humano para fora do torvelinho das paixões. Em suma, reagir pouco ou nada àquilo que causava desejos, sentimentos, emoções. Na Índia, o Budismo, como filosofia, já apresentara proposta semelhante. A partir da constatação do sofrimento como a condição fundamental de toda a existência, superá-las, as paixões, através da obtenção de um estado de bem-aventurança integral, o nirvana. Extinção do sofrimento humano por meio da supressão do desejo e da consciência individual.


Tal não era o entendimento do séc. XVIII. O mesmo Montaigne já referido, em seu livro O Espírito das Leis, afirma a propósito da Inglaterra desse século: Lá todas as paixões são livres, o ódio, a inveja, o ciúme, o ardoroso desejo de enriquecimento e de alcançar distinção pessoal. Comenta ele que o Estado, se fosse o contrário, seria como um homem abatido pela doença, um homem sem paixões seria um homem sem força.

As paixões, a partir do século XVIII, vão aos poucos deixando de ser estudadas pela Filosofia, pela Ética, pela Moral, pela Axiologia. Começam a ser estudadas pela Medicina, surgem terapias. As paixões, aos poucos, são entendidas como algo estranho ao ser humano, não mais integradas à vida das pessoas. Serão submetidas agora a tratamentos que as enfraqueçam ou exorcizem. Como consequência maior dessa nova atitude, os nossos modernos terapeutas das paixões não têm hoje como objetivo o fazer com que nos tornemos mais sábios ou virtuosos, mas, apenas, mais eficientes. Perderam-se as noções de pecado e vício. Os terapeutas procuram tão somente nos adaptar a uma vida "normal". O ser vitimado pelas paixões passa a ser visto como um doente, um alienado. As paixões não são mais vistas como parte do caráter de alguém, componentes que deveriam ser governados, controlados, como fatores de perturbação.

Ao invés de discutirmos valores éticos, falamos hoje de diagnósticos. Tentamos decifrar condutas. O desrespeito à norma social é atribuído a uma doença, a um defeito de educação, etc., etc. Os perversos e depravados são, na sociedade atual, doentes que devem ser curados e não pessoas que devem ser punidas. Tolerância? Atenuação da responsabilidade? Será que somos todos culpados? Qual a razão que leva a maior parte das pessoas a fazer "vistas grossas" com relação a comportamentos absolutamente antissociais ou mesmo com relação a procedimentos que podemos facilmente enquadrar como transgressões legais? Nada dizemos, fazemos que não é conosco, passamos ao largo. 

SCHOPENHAUER
Na Filosofia, Schopenhauer (1788-1860), no séc. XIX, com visível inspiração budista, discorre sobre o tema da paixão. Segundo ele, a vida é dor. Para nos libertarmos dessa dor, só um meio: suprimir a vontade de viver, vontade esta alimentada pelos desejos (paixões), sempre fonte de sofrimento. Inútil esperarmos a libertação pelo progresso da civilização. Na História, não havia progresso, sempre a mesma tragicomédia, arrematava. A redenção da dor só seria possível, e, mesmo assim, parcialmente, através de uma destas três formas: 1) Arte, ocasião em que as coisas deixam de ser consideradas segundo a sua conexão causal. Pela Arte, saímos da caducidade empírica e podemos nos fixar na eternidade de um mundo ideal. Com a Arte, elevamo-nos assim acima de nossa individualidade dolorosa. Para Schopenhauer, a Música era a Arte que melhor expressava esse universal; 2) Justiça, que permite a percepção e o reconhecimento do outro, levando-nos a superar o egoísmo, um dos enganos pelo qual  a vontade nos liga à vida; 3) Compaixão, pela qual sentimos como nosso o sofrimento do outro. A compaixão era para o filósofo o sentimento ético fundamental. O homem torna-se imoral sempre que provoca dor no outro ou permanece indiferente ao que o outro sente. O homem torna-se um ser moral quando procura mitigar a dor do outro. Todavia, reconhece ele que mesmo se valendo destes três recursos o homem não logrará a afastar totalmente a dor, já que a vontade, fonte da desgraça, está sempre presente. A redenção só seria possível mesmo como aniquilamento da vontade, isto é, pela afirmação da não-vontade e pela entrada do ser no Nada, o conceito último da filosofia schopenhaueriana.

NIETZSCHE
O maior inimigo das teses estoicas e budistas, na Filosofia, é Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão. Observa ele que estas teses sempre aparecem num momento de decadência social. A apatia é para ele um sintoma de profunda fraqueza. Os estoicos são os filósofos da vontade fraca, da vontade incapaz de enfrentar as tempestades da alma. Ingenuidade, tolice, prossegue ele. Destruir as paixões através de práticas ascéticas seria como extrair os dentes para que não doam. Temos, sim, que suportar as paixões, dominá-las, usá-las, vivê-las. O contrário será uma forma petrificante de vida. 

FREUD
Outro que tem muito a falar sobre as paixões, do século XIX para o século XX, é Sigmund Freud (1856-1939), com as suas ideias de recalque, de repressão e da ação do aparelho psíquico sobre os afetos. Como tentar excluir de admissão consciente sentimentos, recordações, como inibir ou reprimir um afeto, uma ideia, afastando-os do campo da consciência sem evitar sua "descida" para o inconsciente? Como, com base nestas observações, lidar com a somatização, a transformação de conflitos psíquicos em afecções de órgãos ou problemas psicossomáticos? Lembremo-nos da observação de Freud: O importante não é o que conhecemos, mas o que, em nós, desconhecemos.

As paixões, até o século XIX, em que pesem as teses racionais, não excluíam a responsabilidade. Os apaixonados hoje não são mais monstros como os descritos por Eurípedes, Shakespeare, Balzac, Dostoiévski, Stendhal e outros. Atualmente, a infração, o desvio da norma não são mais atribuídos a uma vontade má, perversa. Além do mais, como condenar se somos todos transgressores? Auto-proteção? Permissividade?

JULES ROMAIN
No fundo, quem sabe, talvez a razão esteja com o Dr. Knock, personagem de um romance (O Triunfo da Medicina) de Jules Romain (1885-1972), que afirmava: Todo homem com saúde é um doente que se ignora.