segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

MAURICE E SUA OBSTINADA PAIXÃO PELO CINEMA


Cid Marcus*

Ele gostava de plantas, flores, aquários, selos e teve cachorros que se chamavam Felicidade em outras línguas. Era o Maurice, que, como poucos, viveu o cinema. O Langlois, na França, talvez o tenha vivido como ele, lá na sua Cinemateca. Ambos passando a vida em salas de projeção, emendando filmes, guardando nomes, fichas técnicas, revistas, livros, críticas, metidos em debates apaixonados e discussões infindas pela noite adentro.

Muitos se lembrarão dele como polêmico, contraditório, irritado, do contra mesmo. Mas acredito que alguns tenham percebido o que toda essa encenação escondia. No fundo, uma grande sensibilidade, temerosa de se revelar, possível de se adivinhar, contudo. Uma sensibilidade fina que lhe escapava por pequenos gestos, quase imperceptíveis, envergonhados gestos. Outras vezes ela se insinuava reticente nas lembranças de observações que um dia havíamos feito e que ele trazia à conversa, a nos revelar como contávamos para ele.

Com uma enorme quantidade de horas-filme em seu currículo, compulsivo arquivista de toda a documentação referente à arte, Maurice tem seu nome inscrito, par droit de conquête, na galeria dos memorialistas do cinema. Seu alter ego mais próximo neste sentido é o personagem que Ettore Scola nos apresentou em Nós que nos Amávamos Tanto, pelo Satta Flores. Uma entrega total à musa, fidelidade absoluta, nada de concessões, de médias.

Cinema para ele era arte completa, sonho e realidade misturados, técnica, divertimento, indústria, pedagogia, comércio, fenômeno social e político, sobretudo, uma maravilha, enfim. Era algo que se confundia com a dinâmica multifacetada da própria vida e até a ultrapassava, provavelmente mais em preto e branco que em cores. Maurice fez parte daquelas gerações que se informaram sobre cinema com os teóricos franceses, a lição pioneira do Sadoul, do Jean Mitry, com o pessoal dos Cahiers du Cinéma, com os russos da teoria da montagem, com os primeiros americanos que fixaram a linguagem cinematográfica

Aqui entre nós, com quantos ele não dividiu generosamente a sua paixão, a quantos não fez ver um pouco mais. Estudantes, curiosos, gente da crítica, de outros cine-clubes, longas conversas, cigarro aceso, entre um trago e outro, a noite avançando.

Muito do que de melhor se fez em cinema foi apresentado em Santos devido à sua obstinação. Cinema de arte, de animação, o infantil dos países do Leste europeu, o Bergman dos primeiros tempos, o cinema baiano antes do Glauber "estourar", as retrospectivas polonesas e tchecas, o intimismo japonês, os clássicos russos, a surpresa indiana, todo o neo-realismo italiano e muito mais. Eram os tempos heroicos da bitola de 16 mm, com toda a sua precariedade e sedução.

Embora de uns anos para cá o modelo hollywoodiano de se fazer e ver cinema viesse se impondo cada vez mais, cinema de baixíssimo nível, muito mais comércio que cinema, Maurice resistiu, optando pelo que de melhor se podia obter em vídeo. Esses novos tempos trouxeram um grande rebaixamento qualitativo para o cinema. Boa parte da crítica oficial aderiu, publicando como "análises" aquilo que as distribuidoras fornecem. Maurice conseguiu montar, como lhe foi possível, as suas defesas, para tentar deter a invasão inexorável dessa barbárie.

Maurice se foi no último domingo. Não só a cidade ficou menor, nós também, pois ele, à sua maneira, soube fazer com que nós pudéssemos ir um pouco além de nós mesmos.


A Tribuna - AT Especial / Leituras 1/6/1997
(*) Cid Marcus, ex-professor universitário e antigo companheiro de Maurice em várias diretorias do Clube de Cinema de Santos.

                                  Ilustrações: Caricatura de Miro, Fotografia de Maurice e cartaz com foto de Maurice