quinta-feira, 3 de junho de 2021

A PEÔNIA


PEÔNIA
No Ocidente, as sementes e raízes da peônia, desde a antiguidade, têm uma reputação medicinal. É a peônia uma flor do gênero das ranuculáceas (família de plantas venenosas, cujas raízes lembram as patas de uma rã). O nome da flor foi retirado da palavra grega curandeiro (paion). Paion, nome já registrado em Creta, bem antes de seu aparecimento na Grécia, é um dos apelidos do deus Apolo, o médico dos deuses, pai de Asclépio, divindade médica de Epidauro; era Apolo irmão gêmeo de Ártemis, deusa lunar. Outro nome da peônia entre os gregos: rosa sem espinhos, por sua cor e semelhança com a rosa.

APOLO

Em grego, ferir é paiein. Apolo era aquele que "como num golpe de mágica" curava as feridas, as doenças. Próximo deste verbo temos em grego pauein, que significa acalmar, suprimir, fazer cessar as moléstias. Com o tempo, o apelido Peã se juntou ao nome de Apolo para designá-lo como uma espécie de deus curandeiro, a grande divindade das curas. A palavra serviu também para designar um hino de agradecimento cantado por aqueles que tinham a sua saúde por ele restaurada. O poeta Píndaro é o maior cultor deste gênero poético, um gênero do qual saíram muitos ditirambos, peãs e trenos, estes últimos lamentos fúnebres, cantos chorosos. 

ASCLÉPIO
Para Homero, Apolo-Peã foi o deus médico que curou as feridas dos deuses Hades e Ares, agredidos por Hércules. Asclépio, filho de Apolo, também acabou por receber o apelido. Os deuses tinham os seus males (feridas) curados por um bálsamo aplicado por Apolo. O poeta da Ilíada prestou grandes homenagens aos poderes do deus, que ensinou inclusive os humanos a colecionar ervas dessecadas, conservadas e organizadas segundo uma sistemática, dando origem ao que passou a ser conhecido mais tarde como fitotaxonomia, ciência que lida com a descrição, identificação e classificação dos vegetais. 

A peônia era considerada por Homero (Ilíada) como a “rainha das ervas”; na poesia bucólica grega (séc.III DC) tinha o mesmo status, sendo aclamada inclusive por sua beleza e poderes curativos, tornando-se, nas mãos de Apolo, uma verdadeira panaceia, aliás, nome de uma das filhas de Asclépio, Panaceia, a que socorre a todos. As demais filhas de Asclépio eram Áceso, a que cuida de; Iaso, a cura; e Higeia, a Saúde (há uma bela estátua desta última no MASP, em São Paulo). 

HIGEIA ( MASP )
O nome Asclépio tem relação com a palavra grega, toupeira, animal insetívoro, de olhos muito diminutos, quase cego, corpo alongado, com patas traseiras adaptadas para cavar. Simbolicamente, no mito, a toupeira aparece como um animal de natureza ctônica, que conhece as profundezas da terra. Figuradamente, designa pessoas que trabalham em lugares escuros. Os sacerdotes de Asclépio “desciam” à escuridão do psiquismo dos doentes que procuravam a clínica de Epidauro. Para tanto, sabiam usar com grande habilidade a oniromancia, a técnica de interpretação dos sonhos. 

HÉCATE
A peônia era também encontrada nos jardins da deusa Hécate, que tinha um conhecimento profundo das ervas, o que confirma os seus poderes de maga. Segundo consta, Hécate, a deusa triforme das encruzilhadas, que vivia no mundo infernal, num palácio ao lado do deus Hades, mantinha um jardim famoso na Cólquida, perto do Mar Negro, cercado por altas muralhas, com o auxílio de Medeia (sobrinha da maga Circe), que às vezes passava por sua filha. Já entre os judeus, a flor era conhecida por causa de Moisés, que sabia de suas virtudes anti-demoníacas. Conta-se que ele aconselhou sua sogra, perturbada por espíritos infernais, a se dirigir ao pico de uma montanha, onde Deus lhe indicaria lugares em que a peônia crescia.  


Dioscórides, médico e botânico grego do séc. I, compilou a primeira descrição sistemática de 579 plantas da Grécia e definiu cerca de 4.700 usos medicinais dessas plantas e o seu modo de ação. Seu trabalho chegou até nós pela tradução latina do texto De Materia Medica (c.65 dC). Esse trabalho teve importância fundamental para a medicina europeia até o séc. XVII. Galeno, nascido em 131 dC, registrou mais tarde as propriedades das plantas descritas por Dioscórides e desenvolveu a concepção humoral do corpo humano.   

Dentre as prescrições de Dioscórides, destacamos: para conter o fluxo menstrual, dar, numa taça de vinho, de dez a doze sementes da peônia vermelha; para combater pesadelos, histeria e dores uterinas, elevar a dose, dando-se quinze sementes. Depois do parto, para rápido restabelecimento das mulheres, acrescentar ao vinho raízes secas da planta.


DISCÓRIDES
Nos trabalhos de botânica que deixou, Dioscórides fez a descrição de dois tipos de peônia, uma chamada "macho" e outra "fêmea", mencionando que cresciam em zonas montanhosas, mais nos picos, e nos seus contrafortes. Plínio, o Velho, grande naturalista e enciclopedista romano, nos fala que as peônias cresciam nas áreas sombrias das montanhas e que eram um ótimo remédio para pessoas que tinham pesadelos. Já Teofrasto, grego, sécs. IV-III AC, grande botânico, discípulo de Platão e depois de Aristóteles, mencionara o valor medicinal da peônia, desfazendo inclusive a história que herboristas haviam espalhado, a de que sua colheita só deveria ser feita à noite para que fossem evitados ataques de pássaros. A história, evidentemente, procurava evitar que pessoas não iniciadas se entregassem à colheita predatória da flor.

THESSALUS
No tempo do imperador Nero, havia um médico, Thessalus (nome grego, de um filho do famoso Hipócrates) de enorme fama, que freneticamente denunciou todos os seus colegas como incapazes. Foi enterrado na Via Appia. Uma inscrição, em grego, na lápide, proclamava-o o Conquistador dos Doutores. Thessalus enviou uma carta a Nero, aliás muito chegado a convulsões (epilético?), e nela discorria sobre a peônia, afirmando que ela crescia e minguava simpaticamente como a Lua; se arrancada na fase crescente, sua raiz não pode ser utilizada para a expulsão dos demônios, agravando ela a moléstia do paciente. Deve-se arrancá-la na fase decrescente lunar.

Astrologicamente ligadas ao Sol, as raízes da peônia, segundo antigas crenças, só podem ser colhidas à noite e, mesmo assim, se um cão a ela estiver amarrado (?), porque ela pode soltar um grito, fatal para quem ouvi-lo. Este cuidado evitará também um possível ataque de aves, no caso o pica-pau, ave de Marte. Esta ave, como se sabe, era muito honrada na Roma antiga, pois alimentou Rômulo e Remo quando o leite da loba se tornou insuficiente.

SHISHI.
Na China, como flor nacional, a peônia se liga a significados de riqueza e de honras, tanto pelo seu porte como pela sua cor vermelha; está muito presente em todas as festividades populares, especialmente nas da primavera, em casamentos e nascimentos. Na China era conhecida com a rainha das flores. Já no Japão, também, era a flor da boa sorte, da beleza, da fertilidade, da longevidade e da prosperidade. Ao lado do leão, formava o símbolo shishi, como representação do equilíbrio entre o poder e a beleza. Associa-se também ao cinábrio e à fênix, o primeiro, droga alquímica e a outra, ave mítica, ambos trazendo ideia de longevidade e de imortalidade..

Por causa de sua cor, avermelhada, que sugere vitalidade, a peônia foi também muito apreciada na Idade Média. Os grânulos e raízes de uma peônia colhida em noite sem Lua e aplicados em compressas sobre os pulsos ou colocados em volta do pescoço, como um colar, eram remédios excelentes contra a epilepsia. Lembre-se que ainda hoje, em alguns países da Europa (no interior da França, por exemplo), um colar feito com sete raízes da planta, colhida na Lua decrescente, entre a meia-noite e o nascer do Sol, é considerado um remédio eficaz contra a dança de São Guido ou de São Vito, coreia, um mal nervoso acompanhado de convulsões. 

PAEONIA OFFICINALIS
Chamada na Europa de rosa de Nossa Senhora, símbolo da Virgem Maria, a peônia dos jardins (Paeonia Officinalis), sempre foi muito procurada por suas inúmeras virtudes: ajudava muito as crianças quando do aparecimentos dos primeiros dentes; era, para muitos, além do que já se apontou acima, remédio infalível contra a asma e a gota. Recomendava-se também a peônia aos homens do mar, pois ela evitava tempestades.


PRINCESA AYA E PEÔNIAS

Ao longo dos séculos, inúmeros poetas escolheram a flor como seu tema predileto, aproximando-o das belas donzelas, como a concubina favorita do imperador. Neste particular, merece referência também a ópera O Pavilhão das Peônias que exalta a coragem dos jovens contra os costumes da sociedade confuciana feudal, especialmente contra o casamento arranjado. Um dos textos mais famosos sobre a flor é o da lenda Os Galanteios de Lu Dongbin para a Peônia, que narra o assédio amoroso de um imortal taoista à fada Peônia para obter o grampo sagrado da Rainha Celestial a fim de salvar uma aldeia.

MANUSCRITO DO SÉC. XIII
Devido ao seu aspecto exuberante, farto, ereto e elegante, a peônia como flor nacional sempre nos apontou para símbolos relacionados com a nobreza e a riqueza. Invariavelmente, sempre foi representada junto de outros vegetais, frutos e flores para que se associem os seus símbolos. Com hibiscos, temos, por exemplo,  riqueza e reputação, com maçãs sinalizam riqueza e bom crédito, com pêssegos apontam sobretudo para longevidade. Quer pensemos em regiões geográficas diferentes do país ou grupos étnicos que parecem pouco ou nada terem em comum, é sempre através dela e de sua simbologia, que espantosamente vamos encontrar algo como um grande centro que a todos e tudo une.