quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

MITOLOGIAS DO CÉU - O SOL (5)


Na mitologia grega, o Sol tem um lugar de grande destaque. A divindade que ele representa, Apolo, ocupa no panteão olímpico uma posição que o coloca, do ponto de vista dos humanos, no mesmo nível do próprio Zeus. Isto se deve ao fato de Apolo ser a grande divindade operadora do sistema olímpico enquanto inspirador e fiscalizador dos princípios superiores que devem reger as leis físicas, sociais e morais nas sociedades humanas. Como ocorreu com as demais divindades gregas, Apolo é o resultado de uma síntese grandiosa, de um longo processo de confrontações, simbioses e convergência de modelos divinos de outras culturas que foram se fixar no território grego.

De início, porém, será preciso levar nossa atenção para a divindade que os gregos criaram para representar o Sol antes de Apolo. Refiro-me a Hélio (fig.esq.), filho do titã Hiperion (o que contempla do alto) e da titânida Teia (a totalmente divina), e neto, portanto, de Urano e de Geia, divindades titulares da primeira dinastia da mitologia grega. Seu nome deriva, ao que parece, de um adjetivo cretense usado para designar o Sol fisicamente, abelios, o altíssimo. Era irmão de Eos (Aurora) e de Selene (Lua). Da mais importante de suas uniões, com Perseis, uma oceânida, saiu a família real da Cólquida, dela fazendo parte Circe, Pasífae, Perses e Eetes.



Hélio era antropomorfizado como um jovem belíssimo, de cabeleira dourada, dela emanando raios de luz. Percorria os céus num carro de fogo puxado por cavalos velocíssimos, cujos nomes, Pirois, Eóo, Éton e Flégon, lembram, respectivamente, fogo, luz, chama e brilho. A cada manhã, precedido por sua irmã, Eos, se lançava na direção oriente-ocidente sobre uma estrada, a via solis, ou eclíptica.

EOS

Seus epítetos atestam a importância que lhe era atribuída no período micênico e mesmo antes: “o infatigável”, “o que traz alegria e consolação aos homens”, “o onividente”, “o esplêndido”. Era considerado por todos os povos de origem indo-ariana, árias, aqueus e outros como o “olho do céu”. Nada podia fugir dele, via tudo. Denunciou os amores de Afrodite, o rapto de Kore e muito mais...


AFRODITE E ARES ( BOTTICELLI )

Uma das passagens da vida de Hélio em que a astrologia é citada nos fala de um problema com Faetonte (phaeton, brilhante), filho que teve juntamente com as Helíades, ninfas do rio Erídano, com a oceânida Clímene. Da união de Hélio com a ninfa Rodos (ilha de Rodes) nasceram os Helíades, grandes e famosos astrólogos, uma família que se espalhou pelo mundo antigo.



FAETONTE

Faetonte foi educado pela mãe sem saber que era filho de Hélio. Só quando adolescente teve conhecimento de sua paternidade. Desde a infância fora muito ridicularizado por desconhecer o nome do pai. Um dia, a mãe o revela. A partir desse momento, desejando calar para sempre os que o maltrataram, pôs-se Faetonte a caminho, ansioso por encontrá-lo. Quem narra essa história é Ovídio, nas suas Metamorfoses: “Faetonte se regozija logo que sua mãe assim falou e já se imaginou no éter, e, atravessando as regiões etíopes, de onde era, e as regiões indianas castigadas pelo Sol, dirigiu-se, sem demora, para o lugar de onde seu pai se levantava.”

O jovem se encaminhou então para o extremo-oriente, aproximando-se do majestoso palácio do pai, todo em ouro, com portas de prata e aplicações de marfim. O pai estava sentado num trono de esmeralda, resplandecente. À direita e à esquerda encontravam-se os Dias, os Meses, os Anos, os Séculos e as Horas, dispostos nos seus respectivos espaços. Também no palácio se encontravam a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, apropriadamente vestidos.



QUATRO ESTAÇÕES (MUCHA)

Hélio reconheceu o filho, abraçando-o, e para sacramentar o reconhecimento jurou em nome das águas do rio Estige que atenderia qualquer pedido que ele viesse a fazer, uma tentativa, talvez, de compensar a sua indiferença desde que ele nascera. O jovem, sem titubear, pediu que o pai lhe emprestasse por um dia seu carro puxado por seus cavalos alípedes. Ao ouvir o pedido do filho, Hélio foi tomado por grande arrependimento, pois não podia, como se sabe, deixar de cumprir o prometido. Descreveu então para o filho todos os perigos a que ficaria sujeito. Se levasse o carro solar acima da eclíptica (etimologicamente, sujeito a eclipses; do ponto de vista terrestre, faixa circular celeste de 16º por onde o Sol caminha, arrastando os planetas) certamente se chocaria com os astros, se abaixo, com a Terra. Qualquer descuido na condução do carro, a ordem cósmica seria fatalmente perturbada, com consequências catastróficas, sem dúvida. Hélio lembrou inclusive o exemplo de Ícaro.

Depois de observar ao filho que o próprio Zeus não se atreveria a conduzir o carro solar, disse, tentando demovê-lo da tresloucada aventura: “Supõe que eu te entregue o carro. Que farás? Por acaso imaginas que há no céu bosques, cidades dos deuses e templos repletos de oferendas? Aquele caminho, a eclíptica, avança entre ciladas e animais ferozes. E mesmo se o seguires sem errar terás de enfrentar os chifres do odioso Touro, o arco de Sagitário, a boca do feroz Leão, o Escorpião de ferrões recurvados e também Câncer, o caranguejo, de ferrões recurvados, mas noutro sentido. Quanto aos quadrúpedes, animados por um fogo que têm no peito e que soltam pela boca e pelas narinas, conduzi-lo não te será fácil. Os cavalos mal me obedecem, com aquele seu vigor fogoso, e mal suportam o freio. Cuidado, meu filho, para que eu não te preste um favor funesto e, já que ainda é tempo, muda de ideia.”

De nada valeram as ponderações de Hélio. Pela madrugada, enquanto Eos já abria as portas do oriente para a luz, Faetonte subiu ao carro do pai e partiu numa alucinada carreira. Os cavalos logo perceberam quem estava na direção. Aumentando a velocidade, atiçando os animais, subindo, o jovem pôs em perigo os astros. Nos rasantes que dava, incendiava a Terra. O carro se chocava com as estrelas, as nuvens se inflamavam, cidades e bosques eram incendiados. Na sua corrida louca, ele ia deixando um rastro de destruição e dor.



GEA

A Grande-Mãe, Geia, ressequida até as suas entranhas, não suportando mais as agressões a que estava sendo submetida, pediu a imediata intervenção de Zeus. Reverente, atendendo-a, o Senhor do universo, do alto do Olimpo, lançou a sua infalível arma, que abatia os orgulhosos e os inconsequentes dominados pela hybris.


QUEDA DE FAETONTE

Faetonte e seu carro se despedaçaram, caindo no solo terrestre. As Hespérides , ninfas do poente, recolheram os restos do corpo do jovem, dando-lhe sepultura. No túmulo, colocaram a seguinte inscrição: “Aqui repousa Faetonte, condutor do carro paterno, que, se não o conseguiu guiar, pereceu em gesta gloriosa.” Um dos únicos a chorar a morte do jovem foi Cicno, um herói da Ligúria, na península itálica. Chorou-o tanto que Zeus, compadecido, o transformou num cisne. Mais tarde, Apolo, concedeu-lhe uma voz melodiosa (?), o que, para alguns, explicava o canto do cisne ao morrer.

Hélio, cheio de dor, deixou a Terra sem luz no dia seguinte à morte de Faetonte. As Helíades (fig.dir.), irmãs do jovem, choraram-no de tal forma junto à sepultura, às margens do rio Erídano, que foram metamorfoseadas pelos deuses em choupos e as suas lágrimas em fragmentos de âmbar. As primeiras são, como sabemos, árvores funerárias que lembram sempre as forças regressivas que atuam na natureza, trazendo mais lembranças que esperanças, falando mais de tempos passados que de renascimento. Já o âmbar (electron, em grego) simboliza o fio (sutratma dos hindus) que une a energia individual à energia cósmica. Lembro que esta história de Faetonte parece ser a reprodução de antiga narração indiana encontrada no Rig Vega sobre um asura chamado Sushna, que por motivos semelhantes, foi fulminado por Indra, o Zeus védico.

Devido à crescente complexidade da antiga sociedade grega, na passagem do período micênico para o arcaico, e aos progressos da astronomia, a figura de Hélio foi adquirindo um caráter cada vez mais secundário no panteão helênico. Ele se transformou numa espécie de servidor das outras divindades, um funcionário relegado a uma função subalterna, a de iluminador. Um exemplo disso está no episódio da ofensa que os companheiros de Ulisses lhe fizeram na ilha Trinácria (Sicília), da qual era patrono, roubando alguns de seus animais (bois) para satisfazer a sua fome. Hélio foi a Zeus e pediu providências. Chegou a falar em abandonar as funções de iluminador e de “olho do mundo”, em descer ao Hades para acabar com a sua escuridão etc. Zeus o atendeu algo contrariado, parece, pedindo-lhe que continuasse a brilhar e que puniria os companheiros de Ulisses, o que fez, destruindo-lhes o barco.


OS COMPANHEIROS DE ULISSES ROUBANDO O GADO DE HÉLIO ( PELLEGRINO TIBALDI )

Hélio era representado geralmente por um pastor, como pode se depreender da Odisseia. Nas pastagens da ilha Trinácria, o rebanho de Hélio se distribuía em cinquenta pequenos grupos de bois e cinquenta pequenos grupos de ovelhas, com sete cabeças em cada grupo. Tal distribuição, como se pode perceber, não era mais que uma representação que então se fazia dos trezentos e cinquenta dias e trezentos e cinquenta noites que o ano primitivo tinha àquele tempo. Hélio era auxiliado, no pastoreio dos animais, por duas filhas, Lampezia e Fetusa, que tivera da ninfa Neera. Foram elas que o avisaram do roubo dos animais pelos homens de Ulisses.

Sua ave sagrada era o galo, cujo canto anunciava diariamente não só o seu aparecimento como expulsava os demônios da noite. Agressivo, pronto a defender o seu território, o galo sempre foi considerado simbolicamente como uma figura masculina. Exercendo seu papel de guardião, fazia também parte do culto de muitos deuses gregos, especialmente de Palas Athena, a deusa das acrópoles, de Ares, deus da guerra, de Asclépio, o vencedor das doenças, o deus Toupeira, e sobretudo de Apolo, como símbolo da luz nascente.


Segundo a mitologia grega, quando, numa noite, Ares se aproveitou da ausência de Hefesto para se deliciar com os encantos e a arte amorosa de Afrodite, esposa do deus metalúrgico, ele pediu a um companheiro que o avisasse antes do Sol aparecer. Pegando no sono, o companheiro não o avisou. Hélio pôs então tudo à mostra. Hefesto chegou a tempo de flagrar o par amoroso ainda no leito. Todo o Olimpo se regalou com a escandalosa cena. Furioso, o deus da guerra, metamorfoseou então o companheiro, transformando-o num galo (origem da ave), dando-lhe o nome de Alectryon, obrigando-o desde então a cantar antes do nascimento do Sol.

Faz parte também desse mito uma história segundo a qual o canto do galo, ao nascer do dia, é natural e benéfico; não ouvi-lo, nesse momento, é de mau agouro, sendo sempre sinal de morte, de alguma infelicidade. O mesmo poderá acontecer se o galo cantar depois que o Sol se puser, notadamente à noite, em horas noturnas insólitas, pressagiando assim seu canto nevoeiros perigosos, intempéries e tempestades no mar.

                   Com a vitória dos olímpicos sobre os titãs, Apolo, filho de Zeus, herdou algumas características de Hélio, que continuou na ativa, embora mais “apagado”. Apolo tornou-se então o mais perfeito representante do mundo helênico, inspirador sobretudo daquilo que o gênio grego produziu no chamado período clássico de sua história. Não é por acaso, aliás, que Platão, nesse período, em que a aristocracia governou Atenas, recomendava aos legisladores que se inspirassem em Apolo para fazer as leis. O adjetivo apolíneo, formado a partir de seu nome, passou a significar tudo o que é elevado, belo, espiritual, sublime, harmonioso, hígido, sereno, justo, ordenado, expressão de beleza equilibrada, luminosidade e esplendor físico.

A etimologia do nome Apolo é duvidosa, podendo ter relação com palavras que lembram assembleias populares, condução do povo, pastoreio de animais etc. O que temos de mais seguro é que seus apelidos, mais de duzentos, conforme os vários mitologemas de que participa, têm um sentido claríssimo, não deixando dúvidas de que ele é uma antiga divindade solar, que desde o seu aparecimento assumiu inúmeras funções como dinamizador da ordem olímpica instituída por Zeus.

Nascido na ilha de Delos (luminosa, brilhante), juntamente com Ártemis, sua irmã gêmea, que o antecedeu no sofrido parto, de Zeus e de Leto, Apolo, o filho predileto dentre os inúmeros do Senhor do Olimpo, por seu nascimento, é chamado de Licógenes, nascido da Loba, apelido de sua mãe. O lobo, como se sabe, é um dos grandes símbolos da vida instintiva. Antes de inspirar terror e de se tornar um dos demônios na Idade Média, o lobo, sempre temido por sua selvageria, foi admirado por sua força e habilidade. Perito na arte da caça, tem predileção por incursões noturnas, antes de Eos abrir as portas luminosas do céu; “vê” no escuro, faculdade que Apolo “herdou” para se tornar a grande divindade da mântica profética. Foi assim Apolo aquele que veio para propor aos homens o controle da vida instintiva (homo homini lupus), a realização do equilíbrio dos desejos e a correta ordenação das pulsões humanas (o Eros freudiano), na perspectiva de uma espiritualização progressiva. É sobre a palavra grega lykos que se construiu também a hipótese de Apolo ter sido primitivamente uma divindade matadora de lobos (Lycoctonos). Ainda, nesta esfera de associações do deus com animais, é de se registrar que Apolo era também muitas vezes invocado sob o nome de Carneios, deus carneiro, honrado principalmente pelos dóricos, guerreiros, que, como se sabe, formaram a última leva indo-ariana a chegar à Grécia, por volta do séc. XII aC, trazendo a metalurgia do ferro. É de se lembrar, em abono do que aqui é dito, que, astrologicamente, o Sol se exalta em Áries, o signo do Carneiro.

O papel de deus da profecia assumido por uma divindade solar como Apolo era até certo ponto surpreendente se tivermos em conta que a mântica profética sempre estivera anteriormente (no período matriarcal) sob a tutela de divindades femininas (mântica por incubação ou ctônica). Ao vencer estas divindades, Apolo, ao chegar ao mundo grego, já era o senhor desse tipo de mântica. É com base nesta função assumida por ele que a hipótese da origem asiática (assiro-babilônica) do deus é proposta, o que o torna uma espécie de Shamash grego. Se como deus da mântica profética, Apolo é “asiático”, ele não o será com relação a outras funções. Uma delas, muito importante, é a de deus pastor (Nomios), com a missão de proteger os rebanhos. O bastão de ouro que usava para tutelar os animais, como se sabe, foi negociado com Hermes, que o transformou no caduceu.



Outro fato importante na biografia do deus, também com significativa repercussão sob o ponto de vista astrológico, é o de ele ter nascido num dia sete. Símbolo da vida eterna entre os egípcios, presente em todas as tradições religiosas, o número sete, segundo Hipócrates, “por suas virtudes escondidas, mantém no ser todas as coisas; dispensa vida e movimento, influenciando até os seres celestes.” Produzido pela soma do três, símbolo da dinâmica universal, e do quatro, símbolo dos quatro elementos e dos pontos cardiais, representa o número sete o universo em movimento. Apolo nasceu num dia sete, no início da primavera, entre março e abril, portanto. Suas festas sempre foram celebradas num dia sete, dia também em que as sibilas respondiam às consultas oraculares em Delfos. A doutrina apolínea era constituída de sete princípios (ético-políticos), segundo a lenda adotados pelos sete sábios da Grécia, bem como sete era o número de cordas de sua lira, que simbolizavam a harmonia cósmica, numa referência aos sete planetas da tradição.



OS SETE SÁBIOS DA GRÉCIA

Há várias versões sobre as máximas apolíneas, classificadas geralmente em dois grandes grupos, umas referentes à vida da polis, à vida coletiva, e outras tendo a ver com a vida pessoal de cada polites. Num septenário referente às últimas, encontramos: 1) Doma teu espírito; 2) Nada em excesso; 3) Combate tua hybris (excessos, desmedidas); 4) Tem língua reverente; 5) Respeita a autoridade; 6) Reverencia o divino; 7) Mantém as mulheres sob controle.

A primeira façanha de Apolo tem a ver evidentemente com a penetração e a fixação dos cultos patriarcais no território da futura Grécia. Ou seja, o processo pelo qual os cultos patriarcais vão substituindo de modo até bastante violento antigos cultos matriarcais, pré-helênicos. Em Delfos (etimologicamente, matriz, útero), Apolo matou o dragão-fêmea Piton (fig.dir.), chamado guardião de um antigo oráculo tutelado pela Grande-Mãe Geia e/ou Themis, a deusa das leis imprescritíveis. Com isto, a mântica por incubação, das antigas deusas, cedeu lugar à mântica profética, imposta por Apolo, não tendo, porém, o filho de Zeus outra alternativa senão a de continuar se valendo do feminino (a mediunidade é, por excelência, função feminina), das chamadas pitonisas ou sibilas desde então, para que as suas sentenças fossem transmitidas. Sentadas nas suas trípodes, mascando folhas de louro, em meio às emanações que subiam das grutas da montanha délfica, proferiam as sibilas, em transe, possuídas pelo deus, as suas sentenças, interpretadas pelo corpo sacerdotal masculino (exegetai), a quem cabia também prescrever, em nome do deus, as purificações necessárias. Foi com o nome de Apolo Pítico que o irmão de Ártemis alcançou um grande prestígio pan-helênico. Já no século VIII aC, seu culto estava definitivamente fixado em todo o território, principalmente em Atenas e Esparta, e pronto para ser incorporado às aventuras colonialistas gregas.
        
Sendo o maior dos santuários gregos, Delfos era considerado como um omphalos (umbigo; fig.esq.), o “umbigo do mundo”. O omphalos délfico era simbolizado por uma pesada pedra sagrada sobre a qual estava assentada a trípode da pítia nos subterrâneos da montanha. Representava a fecundidade e unia os três mundos, céu, terra e inferno. A mesma ideia nós encontramos na Índia, no umbigo de Vishnu, na imagem do deus deitado sobre o oceano primordial, de onde brota o lótus do universo manifesto. O umbigo, centro em torno do qual tudo gravita, tem analogia com a estrela polar, o pilar cósmico, a pirâmide e a árvore axial, em várias culturas.

Apolo é, acima de tudo, uma divindade da luz solar, o que se pode comprovar por apelidos como Phoibos, brilhante, Xanthos, aloirado, Chrysocomès, de cabeleira dourada. Como tal, ele se comprazia nos lugares elevados, nos altaneiros picos das montanhas, nos promontórios que se debruçavam sobre as costas marítimas e rios. Como deus solar, Apolo provocava o amadurecimento dos frutos, sendo por essa razão a ele consagradas as primeiras colheitas (quando o Sol entrava no signo de Virgo) principalmente em Delos e Delfos, por ele protegidas dos ratos e dos gafanhotos que infestavam os campos. No desempenho dessas funções protetoras recebia, respectivamente, os nomes de Smintheus e Parnopion. Porque o Sol pode se transformar muitas vezes num astro assassino, por causa de seus raios que se assemelham a setas, ele recebia o nome de Hecatebolos, como o deus da morte súbita. Quando, porém, seus raios exerciam uma atividade purificadora, que afastava os males, ele era chamado pelo nome de “Alexicacos”. Nesta última função, Apolo suplantou uma primitiva divindade de nome Paian, o curador, que Homero mencionou como médico dos deuses. No período clássico, o nome se tornara um epíteto ritual de Apolo. Na antiga literatura grega, paian era também o nome de um hino entoado em agradecimento aos deuses pela cura obtida.

A esta altura, julgo oportuno colocar aqui algumas contradições, muito paradoxais até com relação à personalidade de Apolo, para melhor compreender, numa perspectiva astrológica, a sua personalidade, tida geralmente como a mais perfeita representação do gênio grego. Como muitos outros deuses do panteão grego, Apolo não é uma divindade indige, uma divindade nacional, como diziam os romanos; é estrangeiro, importado, um novensile segundo a mesma classificação dos romanos. Sua origem é, para muitos, hiperbórea, isto é, ele vem de regiões que ficam além do Bóreas, o que, na geografia mítica, significa vir do extremo norte, das regiões setentrionais da Eurásia, onde vivia uma raça sagrada livre de enfermidades e da velhice. Segundo Píndaro (fig.esq.), os hiperbóreos podiam viver mil anos, não conheciam o trabalho ou a guerra e passavam o seu tempo a dançar, a tocar a lira e a flauta. Se esta informação é bastante discutível e duvidosa, ela serve, pelo menos, para justificar o fato de Apolo se ausentar do mundo grego nos longos períodos hibernais, retornando só na primavera.

Outra questão é o fato de que sua “vida”, seus feitos, suas aventuras, suas conquistas amorosas, as causas que patrocinou, a sua “ingenuidade”, contrariam em grande parte as suas proclamadas virtudes, tão celebradas, principalmente por poetas. É neste sentido, aliás, que Platão tem alguma razão ao achar que os poetas são seres perigosos, suspeitos, condenando por isso abertamente as fábulas narradas por Homero e Hesíodo (A República). Todavia, se condena os poetas, Platão, quando lhe convém, sem nenhum pudor, usa o mesmo patrimônio mitológico por eles criado, transfigurando-o, falseando-o e o colocando a serviço de suas ideias...

Deus vingador, Senhor do arco, as ações de Apolo revelam muitas vezes um caráter orgulhoso e até violento, uma personalidade altamente contraditória (o mesmo se diga dos demais deuses e heróis gregos) na qual a síntese de seus numerosos conflitos interiores, grandes virtudes e grandes defeitos, nunca chegou a definir o ideal de sabedoria do chamado milagre grego, como procuraram nos fazer nele acreditar filósofos, artistas, políticos e poetas.

Consta que Apolo, ainda infante, teria proclamado: “Dêem-me a lira e o arco curvo para que eu anuncie aos homens a inflexível vontade de Zeus”. A sua grande fixação paterna (“jamais proferi sentença oracular alguma sobre homens, mulheres ou cidades que não fosse ordenada por meu pai”, dizia) nos fala muito sobre a sua personalidade, sempre muito voltada para as ideias da lei e da ordem, ideias que não eram senão as da aristocracia grega. Por isso, Platão, outro aristocrata legalista, o chamava de “exegeta nacional”.

Outras características apolíneas, muito notáveis: ele era o afastador de todos os males (apotropaios) e o purificador dos miasmas (katharsios), esta última principalmente com as suas conhecidas implicações médicas, assumidas depois da morte do dragão. Apolo, como se sabe, purificou-se a si mesmo por essa morte. Seu filho Asclépio (fig.dir.) e os filhos deste, seus netos, herdarão do pai e avô muitas destas características. Essa passagem na vida do deus (morte do dragão) e a sua conquista do poder catártico significou socialmente, por exemplo, olhando-a sob um outro ângulo, uma “contribuição” dos olímpicos no sentido humanizar antigos e bárbaros costumes com relação ao homicídio, que tinham por base, ao puni-lo, a pena de Talião. Em que pese essa humanização é de se lembrar porém que qualquer homicídio, mesmo no período clássico, sempre foi considerado entre os gregos como produtor de uma mancha maléfica, um miasma (miainein, sujar, corromper), emanação pútrida que envolvia o psiquismo do criminoso, de efeito deletério, que não só o atingia como podia alcançar coletividades inteiras.

Katharsis, purgação, purificação, lembro, é palavra que, desde Apolo, tem ligação com a religião e com a arte médica. É sempre uma purificação da alma. Os filósofos se apropriaram dela. Sócrates, por exemplo, fala em “remoção do mal da alma”. Aristóteles a incorporou à sua teoria da Arte, ao falar da tragédia como produtora da katharsis.

A biografia de Apolo (como a de várias divindades mitológicas, gregas ou não), pode se constituir numa inestimável fonte de possibilidades significativas, quando da avaliação do Sol num mapa astrológico (é o que Morin de Villefranche, fig.esq., chamava de significado essencial de um astro). Valendo-me deste entendimento, lembro, além do que já se disse, que Apolo e Ártemis são gêmeos, ambos arqueiros (atuam a distância), tendo a segunda nascido antes do primeiro. As conseqüências astrológicas deste fato e dos que abaixo apontamos são inúmeras e nos indicam que os dois luminares constituem uma polaridade, que, como tal, em qualquer mapa astrológico, deve ser sempre avaliada.

Outro destaque na biografia de Apolo, com muita “repercussão” astrológica (as dificuldades afetivas e emocionais dos leoninos), é a sua história amorosa, são os seus “casos”, no geral muito insatisfatórios: Clítia, Cassandra, Dafne (fig. dir.), Ciparisso, Coronis (mãe de Asclépio), Jacinto, Cirene (mãe de Aristeu), Tália (a florescente, mãe dos Coribantes) etc. Esta última era a Musa da comédia e da poesia lírica. Ela e suas irmãs, como se sabe, faziam parte do séquito do deus, juntamente com as Cárites, quando ele atuava como deus das artes, da poesia e da música.

Um dos casos amorosos mais interessantes de Apolo (algumas versões nos falam de Hélio), na perspectiva acima, foi o que ele teve com Clítia. Amado pela jovem, ele a abandonou por Leocothoe, princesa, filha do rei Orchamus. Apolo, para seduzi-la, disfarçou-se como mãe da jovem para entrar no seu quarto. Magoada, ferida, Clítia levaou ao conhecimento do pai de Leocothea o ocorrido. Ele puniu a filha, mandando encerrá-la viva no fundo de um poço, onde morreu. O deus, tomando conhecimento do ocorrido, despejou o néctar divino no poço onde a jovem morrera, nascendo ali então a planta do incenso. Rejeitada por Apolo, Clítia desde então passou os seus dias a olhar fixamente para a marcha do sol nos céus. Consumida de dor, acabou se transformando no heliotrópio, flor que sempre se volta para o astro.



CLÍTIA (JEAN-FRANÇOIS DE TROY)

Quando nos aproximamos dos vários mitos ligados ao Sol, evidentemente o que deles ressalta é que em todas as tradições a visão é, em grande parte, positiva: manifestação da divindade, fonte de luz, saúde, harmonia, cura, racionalidade, energia, regeneração, ressurreição, fecundação, imortalidade, encarnação do divino no ser humano, vontade, glória, rei interior, senso de propósito etc. Entretanto, não podemos esquecer que o Sol também pode queimar, destruir, devastar, secar, incendiar e matar. No hemisfério norte, como se sabe, entre julho e agosto, o Sol transita pela constelação do Leão. Estamos no período mais quente do ciclo anual, período da canícula, de calores muitas vezes terríveis, insuportáveis. Se de um lado é o calor deste período que dá os últimos retoques no amadurecimento do fruto, trazido para fora da Terra pelas vibrações cancerianas, e que deverá ser colhido quando o Sol atravessar Virgo, ele, de outro, é incêndio, seca e morte.

Se de um lado com o Sol temos, psicologicamente, ideias de maturidade, de esplendor, de autonomia, de individualização, de poder masculino (na astrologia ocidental, poder paterno e marital), de conquista de um ego, requinte, magnanimidade, plenitude de forças, de “superego” (conceito criado por Freud, ao lado do “ego” e do “isso” ou “id”, que exerce as funções de juiz e de censor em relação ao ego), generosidade, podemos ter, de outro, vaidade, narcisismo, sentimento de casta (noblesse oblige), tirania, opressão, triunfo de um egocentrismo resplandecente, desdém pelos sentimentos dos outros, fatuidade, gosto pelo brilho, prioridade pela satisfação passional, conflito entre vontade e consciência, tendência à inflação psíquica.

É nos próprios mitos solares que encontramos muitas ilustrações destes aspectos negativos do Sol. Nergal (fig.esq.), por exemplo, divindade mesopotâmica solar e marciana, como o Sol do meio-dia, traz a seca e faz murchar as plantações. Lembremos que no Egito o Sol tanto era Osíris como Seth, o primeiro, unido a Ísis, simbolizando a cheia do Nilo, provocando a fertilidade do país; o outro, também chamado Apohis, era a seca, o monstro que representava a desertificação, a morte da vegetação. Considerado no auge do verão também como um agente mórbido, o Sol, na antiguidade, aparecia como causador de muitas doenças, como helioses e cefaleias insuportáveis. Uma das grandes vítimas de helioses brutais foi Hércules, que nele produziam assomos de raiva, frenesis incontroláveis de natureza epiléptica, que o levaram, por exemplo, a matar Lino, seu professor de música, por sinal filho de Apolo, e a própria família. Outras versões, porém, nos dizem que Hércules, por ignorar o Conhece-te a ti mesmo, lema délfico, era, a pedido de Apolo, atacado por Lyssa, a Loucura (fig.dir.), deusa silvestre do luar, criatura do cortejo de Selene, que muitos diziam irmã gêmea de Hélio, que vivia no Jardim de Pérsefone.

É de se lembrar porém que bem antes dos romanos definirem as suas divindades solares, já faziam parte de antigos cultos da cidade, ainda nos seus primórdios então, certos rituais de origem sabina que honravam os luminares. A instauração destes rituais pode ser localizada historicamente quando da aliança entre sabinos e romanos, no séc. VIII aC. Mais exatamente, quem introduziu o culto solar em Roma foi Tito Tácio, rei sabino, que dividiu o poder da cidade com Rômulo, seu fundador e epônimo.

Nas suas primeiras expressões, o culto solar (Sol, Solis, brilhar, resplandecer) não tinha na antiga Roma muito destaque. A tutela do deus estendia-se apenas à agricultura, como divindade fecundante, celebradas as suas festas no dia 9 de agosto. Aos poucos, porém, sobretudo devido a influências orientais, o culto solar se desenvolveu bastante. Quem inicialmente proclamou o deus Sol como divindade nacional foi o imperador Heliogábalo, com a pretensão de incorporar à sua imagem real a luminosidade solar. Ao pretender impor aos romanos o culto do Sol como deus único, envolveu-se em problemas sendo assassinado. Outro imperador que tentou proclamar o Sol como deus único foi Aureliano (séc.III dC), vencedor dos gauleses, recebendo por isso o título de “Restaurador do Império Romano”. Tentou instituir uma moral única para o império, usando para isto o culto solar, criando para isso templos (Campo de Agripa) e uma classe sacerdotal. Foi Aureliano quem fixou no dia 25 de dezembro a festa anual do “Sol Invictus” e se fez aclamar como o seu representante na Terra. Foi este mesmo imperador que no ano de 274 dC proclamou o mitraísmo persa como religião oficial do império.

Na cultura ocidental, os temas heroicos aparecem na mitologia invariavelmente ligados ao Sol, elaborados todos naquele período que astrologicamente denominamos era de Áries, signo de exaltação solar. Nesses temas encontramos sempre a glorificação de determinados seres que se destacaram sobretudo por feitos guerreiros, por seus esforços físicos, pela luta que travaram contra monstros e malfeitores. A esses seres se deu o nome de heróis. A palavra veio do grego (heros); latinizada, passou a designar os chamados semideuses, filhos de uma divindade e de um ou uma mortal, mais raramente um ser humano divinizado após a sua morte (evemerização). Lembravam esses semideuses, união das forças terrestres com as celestes, um esforço evolutivo, um exemplo que poderia iluminar a vida das pessoas.

Aos poucos, o sentido da palavra foi se ampliando, admitindo-se o seu uso para apontar pessoas que tiveram um destino incomum. Do século XVIII em diante, com o Romantismo em especial, uma nova dimensão foi incorporada à palavra, principalmente através da Arte (literatura). Determinados personagens que problematizavam sua relação com a sociedade começaram a ser chamados de heróis, nada tendo de exemplares na maioria dos casos.

A sociedade moderna, principalmente a partir do século XX, mais da sua segunda metade, impregnada de profunda irracionalidade, vem tornando heróis muitas pessoas que se destacam do coletivo, que “brilham”, por um brutal egoísmo, por excessos individualistas, pela violência. Ladrões que vivem nas altas esferas do mundo político, financeiro e da comunicação, demagogos, estelionatários, políticos enganadores, corruptos eméritos, falsificadores, ricaços, conhecidos sonegadores, esportistas dopados, artistas de TV, uma extensa galeria promovida em escala mundial pelos meios de comunicação, pelo cinema, pela Internet, atingiu hoje o status heroico para a grande massa, idiotizada como sempre.



HÉRCULES E A HIDRA DE LERNA (GUSTAVE MOREAU)

Nas antigas culturas, a história do nascimento, da infância e da juventude dos personagens heroicos costumava se revestir de traços fantásticos, extraordinários, que vão sempre além da esfera do humano. A Grécia clássica procurou transmitir para as gerações futuras uma visão sublime do herói. Na realidade, os heróis gregos não eram tão “heroicos” assim. Todos eram marcados por uma forte dualidade, por inúmeras contradições. Eram apresentados como invulneráveis, mas podiam ser abatidos (Aquiles, fig.dir. - Palacio Achilleum, Corfu). Têm graça e beleza, mas podem ser monstruosos (o gigantismo de Hércules). São, na realidade, teriomorfos, andróginos, mudam de sexo, adotam o travestismo, transitam do masculino para o feminino, têm anomalias físicas (Hércules), deformações (Édipo), são transformados em serpentes (Cadmo). Com muita facilidade são tomados por monstros e demônios, por espectros como Lyssa (Loucura), Até (Erro) e Éris (Discórdia), no que acompanham as próprias divindades. A maior parte dos heróis gregos tem um comportamento sexual aberrante, cometem estupros, são chegados à homossexualidade, atacam os próprios deuses, têm acessos de cólera sem nenhum motivo, desrespeitam de um modo que beira a anarquia as normas da convivência e as regras da hospitalidade.


CADMO (HENDRICK GOLTZIUS)

Embora punidos e castigados, os heróis tentarão sempre enfrentar os deuses, como se fossem iguais a eles, podendo contudo ajudá-los, salvá-los, como Hércules. Ambivalentes e monstruosos, os heróis gregos, pelo seu comportamento, lembram a fluidez dos tempos primordiais quando os elementos constitutivos do universo ainda não haviam se assentado. Um período onde as irregularidades e os abusos eram comuns, período do cosmos ainda em formação. Com o “mundo dos homens”, onde as desmedidas, as explosões temperamentais e os excessos devem ser proibidos, ou pelo menos controlados, os heróis tornaram-se figuras extravagantes. Com eles, encerra-se o chamado período heroico da mitologia grega.

Os heróis gregos, enquanto simbolizam propostas de impulsos evolutivos, revelam também a situação de conflito do psiquismo humano pelos combates que nele se travam entre as forças da luz (atributos solares) e as forças das trevas, lunares (monstros, malfeitores, gigantes, dragões femininos), lembrando tendências regressivas, uma espécie de fatum a persegui-los. Sempre para eles a vida como luta (agonística), como criação de novas formas de relacionamento com o mundo a partir dos conflitos internos, as conquistas sempre ameaçadas de dissolução. Um processo de interiorização e de exteriorização constante. Pressões internas imaginárias, temores, fobias, tentações, dúvidas. De outro lado, o mundo com os seus monstros, dragões, seres ameaçadores, sedutores. Ao lado dos ingredientes da vida heroica, da excepcionalidade (areté) e da honorabilidade pessoal (timé) que estão na base das vitórias interiores, sempre, de outro lado, as ameaças das origens inconscientes, a vaidade, o orgulho, a fama, o renome través da consideração pública...

O Apolo romano (fig,dir) era, como Júpiter, uma divindade importada. Não teve jamais em Roma a importância que os gregos lhe deram. Não era o guia nacional, não possuía oráculos. A Grécia era culta, civilizada. Os romanos, ao contrário, eram militaristas, utilitaristas, colonialistas, centralizando na sua máquina administrativa toda a vida do país, inclusive a religiosa. As honras recebidas por Apolo e sua irmã em Roma sempre ficaram restritas a discursos políticos e a manifestações literárias, poesia principalmente (Horácio) durante o império de Augusto.

Os excessos heroicos, a rigor, não têm limites. Há heróis que violentam deusas (Orion, Ixion) e que são sacrílegos (Jasão, fig.esq., se une a Medeia em lugar sagrado). O traço mais característico do herói solar grego é, sem dúvida, a hybris, a desmedida, em escala superlativa, lembrando ela que o Sol tanto dá a vida, vitaliza, ilumina, cura, higieniza, fertiliza como pode secar, cegar, ser um agente patológico, enlouquecer, incendiar, destruir, matar.

Embora punidos e castigados, os heróis tentarão sempre enfrentar os deuses, como se fossem iguais a eles, podendo contudo ajudá-los, salvá-los (Gigantomaquia). Ambivalentes e monstruosos, os heróis gregos, pelo seu comportamento, lembram a fluidez dos tempos primordiais quando os elementos constitutivos do universo ainda não haviam se assentado. Um período onde as irregularidades e os abusos eram comuns, período do cosmos ainda em formação. Com o “mundo dos homens”, onde as desmedidas, as explosões temperamentais e os excessos devem ser proibidos, ou pelo menos controlados, os heróis tornaram-se figuras extravagantes. Com eles, encerra-se o chamado período heroico da mitologia grega.

Os heróis gregos, enquanto simbolizam propostas de impulsos evolutivos, revelam também a situação de conflito do psiquismo humano pelos combates que nele se travam entre as forças da luz (atributos solares) e as forças das trevas, lunares (monstros, malfeitores, gigantes, dragões femininos), lembrando tendências regressivas, uma espécie de fatum a persegui-los. Sempre para eles a vida como luta (agonística), como criação de novas formas de relacionamento com o mundo a partir dos conflitos internos, as conquistas sempre ameaçadas de dissolução. Um processo de interiorização e de exteriorização constante. Pressões internas imaginárias, temores, fobias, tentações, dúvidas. De outro lado, o mundo com os seus monstros, dragões, seres ameaçadores, sedutores. Ao lado dos ingredientes da vida heroica, da excepcionalidade (areté) e da honorabilidade pessoal (timé) que estão na base das vitórias interiores, sempre, de outro lado, as ameaças das origens inconscientes, a vaidade, o orgulho, a fama, o renome través da consideração pública...

Quanto aos celtas, seus mitos e suas fontes literárias não são muito esclarecedores sobre os seus cultos solares. É preciso muitas vezes recorrer à arqueologia para se ir pouco mais profundamente nesse mundo. Sabe-se que desde a chamada Idade do Bronze muitas comunidades do ocidente europeu veneravam o Sol, representando-o por uma roda, um disco, um círculo. Evidentemente, a escolha para o simbolizar desta maneira levou em conta duas dentre as suas principais características, a sua forma e o seu movimento. Sabe-se que na Idade do Ferro os guerreiros costumavam usar amuletos com a forma solar, mortos eram enterrados com miniaturas do Sol com objetivo de ter iluminado o seu caminho no “Outro Mundo”.



Para nos situarmos melhor quanto ao que aqui se expõe, é preciso ter em mente que grande parte da Europa ocidental foi ocupada pela civilização celta, situando-se a sua história entre os anos de 600 aC e 400 dC. A área ocupada compreendia uma extensa região que se estendia pelo centro da Europa, do mar Negro à costa atlântica francesa, uma parte do norte da Itália, quase que toda a península ibérica e mais as ilhas britânicas e a Irlanda. Dentro de sua mitologia, os principais temas foram as selvagens deusas da guerra, os deuses solares, os sacrifícios aos deuses, o mundo dos espíritos e a vida do além-túmulo.

O chamado período romano-céltico da história européia conheceu um grande desenvolvimento dos cultos solares. A complexidade desses cultos pode ser inferida pela descoberta de muitas representações do papel que o astro desempenhava no seu relacionamento com a Terra. Várias imagens solares ligavam o astro à guerra, ao deus Júpiter e lhe atribuíam uma função apotropaica, a de afastar as trevas e do mal. Foram encontradas também grandes colunas feitas de troncos de árvores com a mesma função, chamadas de “As colunas gigantescas de Júpiter”. Embora a iconografia deste período apresente muitas influências romanas, encontramos na tradição celta mais isenta destas influências um deus da luz e da vida, montado num cavalo (os cavalos entre os celtas sempre apareceram intimamente ligados aos cultos solares), carregando numa das mãos um disco à guisa de escudo e na outra um raio como arma, atacando uma serpente gigantesca, símbolo das forças ctônicas.

O calor e a luz deram origem a cultos relacionados com a cura de doenças e com a fertilidade, com a abundância. Muitas imagens solares (discos, rodas) faziam parte da paisagem onde se encontram fontes de águas curativas. Aliás, a deusa que pontificava no grande santuário de Bath (depois estação termal inglesa muto famosa nos sécs. XVIII e XIX) tinha o nome de Sulis. Um Apolo céltico, como divindade da luz e das curas, estendia o seu poder às fontes de águas termais. Era o deus Apolo Belenus, o “Brilhante” (fig.dir.), cuja tutela alcançava fontes tão distantes como as da Nórica (Áustria). Havia um grande festival celta nas ilhas britânicas presidido por esta divindade, no começo do verão, com a finalidade de prevenir doenças, constituído de inúmeros ritos de purificação. Outro Apolo tinha o sobrenome de Vindonnus, nome celta que significa puro, claro, luminoso. Grande parte dos cultos do Apolo celta era voltada, na área médica, para a cura de moléstias dos olhos. Em várias regiões da Gália e da Inglaterra, os símbolos solares, como talismãs e amuletos, apareciam associados às deusas da fertilidade, sendo comuns os discos solares e pequenos chifres (cornucópias) agregados numa mesma peça.

Grandes festivais célticos do fogo se realizavam por toda a Europa com a finalidade de celebrar o poder solar. A ideia era a de que o fogo dava e destruía a vida, que ele purificava e que das cinzas nascia sempre o novo. Estes festivais se baseavam no princípio da magia simpática com a finalidade de fazer o Sol voltar no período hibernal. Muitas festas cristãs, saliente-se, foram instituídas nas mesmas datas das festas célticas.

O nome do Sol na língua céltica era do gênero feminino, como acontece aliás nas línguas indo-europeias. Personificado mitologicamente, ele é Lug (luminoso, fig.esq.)), considerado como um dos elementos fundamentais do universo. Os celtas da Irlanda, por exemplo, sempre faziam seus juramentos em nome das forças celestes, nelas se incluindo, com destaque, uma menção ao deus solar. Entre os celtas da Irlanda, Lug ou Lugh (brilhante) era o deus da luz. Seu mais importante festival era o Lughnasad. É interessante notar que na língua gálica a palavra lugos quer dizer corvo, ave que aparece ligada ao deus Lugh. É de se lembrar também que na mitologia germânica, o deus Wodan, Odin para os escandinavos, anda sempre com dois corvos nos seus ombros, Hugin (Pensamento) e Munin (Memória), que são encarregados de recolher na vastidão do mundo e relatar a ele tudo o que acontece.

A cidade de Lyon, na França, era Lugdunum (colina de Lugh) porque foi o corvo do deus que, pousando sobre ela, indicou o lugar onde a futura cidade deveria ser levantada. O corvo também na antiga Grécia era uma ave divina, solar, consagrada a Apolo. Foram os corvos que indicaram o lugar do omphalos de Delfos. Como mensageiros dos deuses, os corvos desempenham funções proféticas, funções estas que na mitologia grega colocam-se sob a tutela de Apolo (mântica profética).

Os melhores exemplos de heróis solares (astrologicamente, o Sol nos três signos de fogo), nós os encontramos em Gilgamés (mesopotâmico), Hércules (grego) e Cuchulain (celta, fig.dir.)). O primeiro é o mais famoso herói babilônico, nascido entre o humano e o divino, figura central de um vasto poema intitulado “Aquele que descobriu a fonte” ou “Aquele que tudo viu”. O poema contém doze cantos, com cerca de trezentos versos em cada um. A versão disponível é do séc.VII aC (biblioteca de Assurbanipal, de Nínive); o poema é de muito antes, tendo sido composto por volta do ano 2000 aC. Gilgamés é “aquele que parte em busca da imortalidade”. Encontrou-a na forma de uma planta colhida por ele no fundo do oceano e a perdeu, levada por uma serpente.

Hércules, o mais célebre herói da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Alcmena, é famoso, dentre outros feitos, por ter realizado doze trabalhos, que lembram de algum modo os do herói mesopotâmico. Estes trabalhos simbolizam, como se sabe, a caminhada do Sol pelos signos zodiacais, desde o primeiro, a captura e morte das éguas geradoras de cavalos antropófagos do rei Diomedes (signo de Áries) até o último, a libertação do gado vermelho aprisionado por Gerião , o monstro de três cabeças (signo de Peixes).

O último é o grande modelo heroico dos celtas (Ulster, Irlanda do norte), um guerreiro de feitos extraordinários, cujo verdadeiro pai é o deus Lug. Sua vida se assemelha muito à de Gilgamés e à de Hércules. Já na infância, suas façanhas eram notáveis, sua força era prodigiosa. Quando colérico, um calor intenso emanava de seu corpo, derretendo a neve, afetando o que estava à sua volta. A magia fazia parte de sua vida; matador de gigantes, participou de guerras, amou deusas.

Por último, uma referência a um famoso mito grego que muito tem a ver com o Sol, o de Narciso, nome que lembra embotamento, entorpecimento. Filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, era de uma beleza quase divina. Cresceu o jovem despertando paixões, mas nunca amando, indiferente a tudo e a todos. Era visto, não via. Tudo se concentrava nele. Uma ninfa se apaixonou e o procurou. Ele, como sempre, nenhuma atenção lhe deu. A jovem foi definhando, transformando-se num rochedo que passou a repetir os últimos sons que lhe chegavam. Recebeu, por isso, o nome de Eco.

As demais ninfas recorreram à deusa Nêmesis, pedindo que o belíssimo filho de Liríope fosse punido. Ela o condenou a um amor impossível. Um dia, debruçando-se num lago, o jovem viu sua imagem refletida nele. Não conseguiu mais sair dali. Apaixonou-se pelo seu próprio reflexo. As pessoas, a princípio, nada notaram. Os dias se passaram e o jovem ali, imóvel, olhando. Um dia, porém, a sua ausência foi notada. Procuraram-no. O jovem caíra e seu corpo descera ao fundo das águas, foi a conclusão de todos. Seu corpo jamais foi encontrado. No lugar, apenas uma pequena flor amarela com pétalas brancas. Deram a ela o nome de Narciso (narke, narkissos; narcótico), o “embriagado de si mesmo”.


                                                                  ECO E NARCISO (NICOLAS POUSSIN)

O narcisismo, como podemos perceber, tem como fundamento os espelhos, o fascínio que eles exercem. Espelhos têm relação mágica com seus donos, podem aprisionar a sua imagem ou a sua essência vital. São muitas vezes símbolos da vaidade, da sensualidade, do orgulho. Podemos dizer que depois de Lewis Carroll e de Jean Cocteau devemos sempre desconfiar deles. Os espelhos, além do seu interesse poético, transformaram-se em armadilhas (trompe-l´oeil) mágicas. Aliás, não foi por acaso que se deu o nome de psyché, em francês (psichê, em português) a um grande espelho móvel montado num chassis com pinos, graças aos quais esse espelho pode ser inclinado para se olhar o corpo todo. A palavra, vinda do grego, psyché, alma, foi usada também para designar o conjunto dos fenômenos psíquicos, considerados como formadores de uma personalidade. Na mitologia, o espelho era o instrumento de Psiquê, personificação da alma no conto de Apuleio.

Os dicionários definem o narcisismo como amor-próprio ou autoadmiração de natureza mórbida. Outros sentidos podem ser admitidos, ligando-o a pessoas que se centralizam em si mesmas, com excesso de preocupações com a própria imagem, pessoas em cujos discursos o pronome pessoal eu é repetido insistentemente. Define-se também o narcisismo filosoficamente como uma forma de solipsismo (ipse, a, um, mesmo, de si mesmo), doutrina segundo a qual só existem efetivamente o eu (Sol) e suas sensações, sendo os outros entes (seres e objetos) meras impressões sem existência própria. Tendência a fazer de si mesmo o ponto de referência em torno do qual se organiza a experiência. Extremo individualismo, ausência de interesse pelo passado e pelo futuro, falta de consideração pelos outros, desinteresse absoluto por questões sociais.

Astrologicamente, como se pode notar, o narcisismo é um fenômeno tipicamente leonino, isto é, solar. Filosoficamente, esse fenômeno da vida psíquica consiste na sustentação de que o eu individual, do qual se tem consciência, com as suas modificações subjetivas, é toda a realidade e que os outros não passam de representações oníricas, sendo “sonhados”.

Difundindo calor e claridade, o Sol sempre simbolizou o princípio da vida, a ressurreição e a imortalidade. O epíteto solar qualifica qualquer objeto que tenha relação com a ideia de centro, lugar de onde parte o movimento do ser em direção do múltiplo, do interior para o exterior, do imanifesto ao manifesto, sendo, ao mesmo tempo, esse o lugar para onde tudo retorna depois num processo de convergência em busca da unidade. Localizado no centro do cosmos, é no corpo humano representado pelo coração, centro de onde partem as forças centrífugas e que a ele retornam por um movimento centrípeto.


MYSTERIUM CONJUNCTIONIS

Na astrologia, o ponto onde se encontra o Sol numa carta é considerado como o lugar onde o ser humano tem a sua vontade dirigida, seu senso de propósito. Neste sentido, cabe a este centro solar buscar um equilíbrio entre esse lado consciente que ele representa e as forças inconscientes, sempre também presentes e muito atuantes. Não se pode esquecer que se Apolo é o deus do logos a serviço da vida espiritual, articulador de funções lógicas, complexas, ele é também o deus da mântica profética, dos oráculos, de funções daquele eu mais profundo, de forças desconhecidas que atuam por trás da consciência direcionada. Não é por outra razão que para os alquimistas o verdadeiro eu só aparece quando o rei se une com a rainha. É nesse momento que temos então a mysterium conjunctionis, o casamento sagrado entre o Sol e a Lua, a união das forças masculinas e femininas que deve ser renovada constantemente, já que sobre ela pairam sempre ameaçadoras as forças da destruição.