quinta-feira, 4 de abril de 2019

DEUSES E DOENÇAS (1)

                                       
OS   DEUSES   DO   OLIMPO

Os mitos gregos fornecem os modelos para a maior parte das condutas humanas, dando-lhes sentido e valor. São, para a cultura ocidental, aquilo que chamamos de padrões de conduta, conjunto de atitudes, posturas, modos de ser específicos, arquétipos. Conduta, lembremos, tem relação com vida interior, ou seja, acrescenta uma significação interna a um comportamento, numa dada situação. O comportamento lembra um conjunto de reações objetivas, já conduta manifesta-se com o acréscimo pessoal de uma significação interna. 

O mundo dos arquétipos é insondável. Pessoalmente, só o percebemos através de suas manifestações no nosso consciente. Os arquétipos são assim possibilidades latentes, como fatores históricos, biológicos e outros. Em função da vida que levamos, conforme as condições de tempo e lugar, as imagens arquetípicas se apresentam ao nosso consciente. Nesse sentido é que os gregos, principalmente, descreveram e deram nome a histórias e a personagens que sempre atuaram no psiquismo humano, afetando nossa vida consciente,  despojando-a de sua autonomia, gerando fenômenos de massificação, maneiras de ser, formas de alienação, doenças, patologias etc. 


Os antigos gregos já haviam percebido que muitos personagens e fatos de sua mitologia estavam, simbolicamente, por trás de suas queixas, de atitudes compulsivas, abusivas, de anormalidades e de doenças. Desde Homero (séc.IX aC), por exemplo, os antigos gregos já trabalhavam com essas ideias. No canto III da Ilíada, Príamo isenta Helena de qualquer culpa com relação à guerra entre gregos e troianos. Ela abandonara o marido,
MENELAU ( G. BROGI, 1822 - 1881 )

Menelau, rei de Esparta, para viver em Troia, com o príncipe Páris. Príamo, rei de Troia, chamando Helena, pede-lhe que se sente ao seu lado, para que, quando do cerco dos gregos à cidade, reveja o primeiro marido (Menelau), os parentes e os amigos. Diz-lhe mais que ela não é culpada de nada; só os eternos,  os deuses,  têm culpa, pois foram eles os responsáveis por gregos e troianos estarem envolvidos em tal guerra.




HELENA E PÁRIS

Este entendimento encontra a sua melhor explicação na teoria grega sobre os arquétipos, atualizada pela Psicologia nos tempos modernos. Uma frase de Jung resume o que aqui se coloca, desde
KIRON
que saibamos nos aproximar corretamente da mitologia: Os deuses gregos viraram doenças.  Não foi por acaso também que a Psicanálise redescobriu o que os antigos gregos já sabiam, conforme nos revelam, dentre muitas outras, as histórias das suas divindades médicas, de Kiron, o centauro-mestre, e das práticas utilizadas no santuário médico de Epidauro, inspiradas pelo deus Asclépio.

É neste sentido que para infernizar o nosso dia-a-dia, com uma lógica assustadora, temos o Bosque de Perséfone, que fica numa região vestibular do Hades, o Inferno da mitologia grega. É de lá que ”saem” constantemente demônios ou espectros que, invadindo o campo da consciência dos humanos, perturbam enormemente a sua vida, tipos como Phtonos (Inveja), Algos (Dor), Geras (Velhice), Lyssa (Raiva), Penia (Carência), Ponos (Fadiga), Apate (Fraude), Ate (Erro) e outros. 

O que chama igualmente a nossa atenção, na perspectiva acima, quando nos aproximamos dos mitos gregos, é o modo pelo qual podemos usá-los hoje. Ou seja, vamos a eles, diacronicamente,  recolhemo-los, lá onde se originaram, e os aproximamos sincronicamente para iluminar melhor o que estamos vivendo hoje. Mais: espanta-nos também que os deuses gregos, acentuadamente ambíguos nas suas manifestações originais preservam essa característica hoje, ou seja, conforme o caso, podem nos trazer benefícios quando devidamente “honrados” ou causar malefícios quando não “cultuados”. 

HERMES
Para que estas ideias fiquem mais claras, recorramos, por exemplo, à deusa Hécate, que vivia junto ao palácio de Hades. Para isto é preciso lembrar que na mitologia grega, as encruzilhadas são governadas por duas divindades, Hermes e Hécate. O nome do deus vem de herma, grego, pilastra, monte de pedras, uma imagem itifálica, lugar onde os viajantes paravam e o homenageavam. Hermes é o deus dos caminhos, protetor dos que neles se aventuravam.  As pedras lançadas pelos viajantes formavam o hermaion, uma forma (um montículo de pedras) de invocar a proteção do deus para que ali se fizessem descobertas felizes, se tomasse o caminho certo, se obtivesse o lucro inesperado. Hermes representava e representa hoje, de modo objetivo, todas as informações que podemos obter, provenientes não só dos quatro cantos do horizonte, dos quatro pontos cardeais, mas, também, de todos os níveis da existência. Os nomes gregos da encruzilhada, syndromos ou anfiodos,  nos remetem às ideias aqui expostas.


HÉCATE
O poder sobre as encruzilhadas era dividido por Hermes com a deusa Hécate (a que fere de longe, à distância), deusa lunar e ctônica. Ela tanto proporcionava prosperidade, favorecia a navegação, trazia a vitória nas batalhas, abundância nas colheitas e nas redes, eloquência nas assembleias, como podia, como divindade dos espectros noturnos, dos fantasmas, das aparições alarmantes, do inferno do psiquismo humano, destruir e matar aquele que ficasse parado nas encruzilhadas sem nada decidir. Ela aparecia nas encruzilhadas quando da Lua nova. Hécate simbolizava as três fases visíveis da Lua, ligadas aos três momentos da evolução vital, crescente, cheia e minguante, conceitos válidos a qualquer tempo. Era representada nas encruzilhadas por uma figura feminina de três faces, era a deusa trívia, deusa da magia, dos encantamentos, dos filtros amorosos. Na noite em que subia à Terra (vivia no Hades) postava-se nas encruzilhadas, lugar de sortilégios, de encantamentos, sempre acompanhada de animais que simbolizavam a fertilidade, lobas, cadelas, mulas, etc. Era homenageada com oferendas de alimentos, principalmente os de cor avermelhada. Será a deusa pródiga de favores para aqueles que a homenageassem mudando o seu destino, tomando novos rumos. 

AFRODITE
A encruzilhada era ainda entre os antigos gregos um lugar de muitos perigos onde Afrodite costumava também aparecer, na sua forma trívia, a Afrodite dos amores passageiros, triviais, lúbricos, amores impuros, vulgares. Por isso, na encruzilhada, em muitas tradições, encontramos símbolos que significam, conforme o caso, um desejo de esconjuração, de sacrifício expiatório, de exorcismo, de afastamento, enfim, das energias e presenças maléficas. Oratórios, imagens de santos, de entidades protetoras, ex-votos, flores, círios e velas que jamais deixavam de brilhar. Neste sentido, a encruzilhada era um lugar em que se podia encontrar também a luz, um lugar de renascimento, onde visitado por bons gênios e as fadas protetoras que muito auxiliariam na tomada da decisão mais acertada.  
  
Em Hécate, a grande deusa lunar, sintetizam-se os três aspectos da nossa vida psíquica, o infernal, o telúrico e o celeste. Cultuada e reverenciada nas encruzilhadas, ela indica para nós que as decisões humanas não se inscrevem só no plano horizontal, nas quatro direções dos pontos cardeais, as direções que recebemos quando entramos na vida, mas, acima de tudo, revela-nos a deusa que cabe a nós, pelas escolhas que fizermos, acrescentar às quatro direções mencionadas mais duas, que estão no plano vertical, a da elevação ou a da descida.  
  
Os exemplos acima nos confirmam que os deuses de um modo geral, principalmente os gregos e os romanos, como se verá, são ambíguos ao atuar como símbolos de qualidades idealizadas pelo ser humano. Zeus, por exemplo, ao mesmo tempo que pode assumir a função de fonte inspiradora de uma vida espiritual, pode, com certa facilidade, dar demonstrações explícitas de um detestável autocratismo. 


ZEUS

O arquétipo de Zeus sempre aparece associado, figuradamente, àquilo que é abundante, exuberante, exagerado, aquilo que na área médica chamam de pletórico, de pletora, que significa aumento do volume do sangue no organismo, algo que cause inturgescência vascular. Nos tipos menos avisados, menos conscientes, o arquétipo costuma levar a exageros físicos, àquilo que popularmente designamos pela expressão dar o passo maior que a perna, isto é, quando falamos de alguém que está tentando fazer tudo ao mesmo tempo, que está tentando fazer algo que vai além das suas condições ou que está assumindo muito mais responsabilidades do que realmente deveria.

Palas Athena, sempre reverenciada como deusa do elã evolutivo, aquela que garantia a equidade das leis, guia de heróis, pode, de um momento para outro, dar inexplicavelmente demonstrações de um comportamento altamente competitivo, manipulador, falso e irritadiço. Como deusa virgem, teoricamente infensa às pressões afetivas e emocionais, inimiga jurada de possessos como Ares, deus da guerra, seu irmão, inexplicável, por exemplo,  o seu comportamento ao participar com tanto afã da disputa pelo pomo de ouro que Éris lançou no salão em que se realizava a festa de casamento de Peleu e de Thetis. 


O  POMO  DE  OURO  ( JACOB  JORDANS, 1633 )  

É na mitologia greco-romana, mais do que em qualquer outra, que encontramos, principalmente com relação aos seus deuses, tantos aspectos negativos coexistindo com tantos aspectos positivos. Pode-se mesmo afirmar que esta “anormalidade” está sempre presente no “normal” comportamento dos deuses greco-romanos, ainda que o discurso religioso oficial para o grande público nada disto mencione. Embora imortais (athanatoi), imputrescíveis e isentos de preocupações e de cuidados, o que se constata na realidade é que muitos são irascíveis, trapaceiros, sexualmente desregrados, misturam-se promiscuamente com os mortais, são obscenos, cruéis e doentios. Será que podemos considerar o nosso comportamento como uma imitação do deles? Fomos feitos à imagem dos deuses ou eles foram idealizados por nós segundo o que somos?  O que fica claro disso tudo é que os gregos e romanos faziam seus deuses participar do Bem e do Mal simultaneamente, ao contrário da pregação das religiões patriarcais (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) que adotaram para lidar com o divino ideias “positivas”, monoteístas e transcendentalistas, fixando o Mal só na esfera do humano.


Os padrões de comportamento tipificados pelos deuses, entre os grego e os romanos incluíam patologias diversas, muitas delas “imitadas” pelos humanos. As nossas doenças e enfermidades, ainda hoje, têm “modelos” divinos, admitida, é claro, a prioridade arquetípica deles. Eis abaixo alguns exemplos das patologias físicas e mentais que podiam produzir   os deuses de que falamos, inclusive da farmacopeia (pharmakopoeia) e das referências à química que patrocinavam ao atuarem como curadores. 



DIONISO

Dioniso e as terapias do psiquismo  – Deus da energia vital, tanto a do mundo vegetal como a do mundo animal, energia que se renova sempre, Dioniso é a metamorfose, a transformação. É particularmente ligado à linfa vital do mundo vegetal, a seiva que no inverno se recolhe e que depois, no período estival, flui livremente para produzir frutos doces como o figo e a romã e suculentos como a uva, a melancia ou o melão.  Na sua permanente ação, Dioniso é a divindade que melhor representa o eterno fluir da energia vital que não pode ser contida ou represada. É, como tal, como se disse, o deus das metamorfoses e das transformações, o destruidor das formas que não sabem se renovar. É ele quem liberta o homem dos seus condicionamentos e atavismos pessoais para recolocá-lo, numa dimensão espiritual, em contacto com a energia universal.    

Recebeu Dioniso por essa razão o apelido de Lysios, o que liberta. No nome Lysios está embutido o radical grego lys, equivalente a lit, significando ambos separar, desfazer, dissolver, como os encontramos, por exemplo, em palavras como análise e ansiolítico, que querem dizer, respectivamente, separar em partes e afastar da ansiedade. Como Lysios, aliás, não é outra a função do deus nos Mistérios de Elêusis,  libertar os mystai (iniciados) do eu velho para fazê-los ter acesso a um outro, novo, que os faça participar espiritualmente da vida numa dimensão superior. 


MISTÉRIOS   DE   ELÊUSIS

Psicanalítica e terapeuticamente, os Mistérios de Elêusis podem ser vistos como uma proposta de descida à vida subconsciente a fim de serem destruídos antigos e insatisfatórios modos de ser e libertadas potencialidades lá aprisionadas. É no simbolismo da semente que desce ao interior da terra, para morrer e renascer como vegetal e frutificar, que devemos procurar certas afinidades que levam o ser humano ao autoconhecimento segundo a experiência eleusina. Morrer para renascer. Era Dioniso o guia das procissões noturnas que no outono iam em direção do santuário de Deméter, em  Elêusis (etimologicamente, chegar e encontrar), para participas dos seus Mistérios. 

É muito rica a simbologia deste mito se sabemos que a mãe de Dioniso chamava-se Sêmele, nome que lembra semente, uma personificação da Terra. Não é por acaso também que o processo iniciático dos que buscavam Elêusis começava com uma preparação (iniciação) que começava no equinócio da primavera, início do impulso vital na natureza, e que terminava no equinócio
KERAMIKÓS
de outono, com a sua queda. No fundo, uma preparação para a morte, a morte do eu velho e o seu despertar para uma nova forma de existência. Não era por acaso que o início da jornada para Elêusis tinha como ponto de partida o Keramikós, o cemitério de Atenas. A palavra cemitério (koimeterion), lembre-se, é de origem grega, significando, etimologicamente, lugar onde se dorme.  


Estas mesmas ideias nós as encontramos na Alquimia, como as temos, por exemplo, no Mutus Liber, uma coleção de gravuras publicadas na Europa em 1677, em forma de livro, que nos oferecem uma síntese da Opus alquímica. O título traduzido nos dá Livro Mudo, uma clara indicação de que o iniciado, o desperto, não precisa falar, bastando-lhe apenas viver. O título Mutus Liber faz também referência ao apelido de Dioniso entre os latinos, Liber (Lysios, em grego), como a divindade que liberta o homem das suas interdições, das suas limitações e sobretudo das suas repressões inconscientes, para pô-lo em contacto, sempre renovadamente, com a exuberância da vida e com os outros homens.  

Como deus da renovação sazonal, Dioniso sempre apareceu, por analogia, ligado à ruptura das inibições, das repressões e dos recalques Tudo que signifique bloqueio, contenção, prisão a uma forma, tem em Dioniso um inimigo natural. Neste sentido é que ele se opõe a Apolo, o deus da aristocracia grega, que, no período clássico da história do país, fixada nos seus privilégios, prerrogativas e preconceitos, “esquecera” de mudar. 


MYSTAI  ( CERÂMICA  GREGA )
Com Dioniso, o rompimento de limites é sempre perturbador, violento, tal como aconteceu com a derrocada de Atenas no séc. IV aC. Uma das expressões mais inquietantes do culto dionisíaco é a cerimônia religiosa coletiva, de caráter orgiástico, à qual se dava, em Elêusis, o nome de orgyon que tinha a finalidade de levar os mystai (iniciados) ao ekstasis (êxtase), palavra que lembra transporte, estar fora, deslocamento, esvaziamento interior, segunda fase da cerimônia, a fim de lhes dar acesso à terceira, ao entusiasmo (enthousiasmós), literalmente deus em nós, quando Dioniso os “penetrava”, estado que dava início ao nascimento de um novo eu.  

Os antigos gregos tinham no seu vocabulário muitas palavras ligadas à orgia, palavras que nos oferecem uma boa ideia do quanto os primeiros cristãos (São Paulo, especialmente) devem ter se assustado com elas. O verbo orgao, por exemplo, quer dizer, dentre outras coisas, agitação interior, sentimentos violentos e apaixonados, enquanto orgydzo significa pôr em cólera e orgyasmos aponta para a celebração de mistérios, fase em que o mystes (iniciado), tendo consumido muito kikeon (bebida enteógena à base de vinho e drogas) e dançado bastante, como orgyastes (orgiasta), recebia simbolicamente a divindade, isto é, adquiria um novo eu. Do universo semântico da palavra orgia entre os gregos fazia parte também orgas, que tanto queria dizer cheio de seiva como terra fértil porque consagrada às deusas que pontificavam com Dioniso nos Mistérios de Elêusis, Deméter e Perséfone. 


DEMÉTER   E   PERSÉFONE


SÉQUITO   DE   DIONISO
O séquito de Dioniso era barulhento. Dele faziam parte muitas mulheres, marginalizadas socialmente, chamadas mênades (de mainomenos, louco, alucinado, um dos apelidos do deus) ou bacantes (Baco é um dos nomes de Dioniso, nome grego). A histeria sempre apareceu ligada a Dioniso por causa de suas sacerdotisas. Hysterikos, etimologicamente, é aquilo que concerne à matriz, ao útero. O termo histeria já aparecia em Hipócrates, como instabilidade emocional, um movimento irregular que partia do útero (àquele tempo, só as mulheres eram histéricas) em direção do cérebro. Desde a Antiguidade até o início do século XX, certos distúrbios de comportamento (excessiva emotividade, convulsões, gritos, exaltação etc.) foram considerados como exclusivamente femininos e, como tal, devidos a reações patológicas do útero.

Esse tipo de comportamento encontra a sua melhor expressão na antiga Grécia nas mênades, chamadas também de bacantes divinas, as possuídas pelo deus, suas adoradoras,  das quais se apoderava a chamada loucura sagrada. O verbo grego que dá origem à palavra mênade, maínesthai, quer dizer ser tomado por um ardor louco, delirar. Daí, a excitação, o furor, a mania, palavra que hoje está na “nossa” psicomania depressiva. Coroadas de hera, símbolo do deus, roupas transparentes, levando um tirso nas mãos, tocando tamborins, entregavam-se a danças frenéticas. Representavam elas nessas cerimônias o espírito orgiástico da natureza, chegando algumas ao delírio, à autoflagelação e mesmo à morte. 



Rabelais, o fantástico autor de Pantagruel, sécs. XV/XVI, comparou as histéricas de seu tempo às mênades dionisíacas. Nos tempos modernos, o filósofo alemão Nietzsche voltou-se para a questão dionisíaca (As Origens da Tragédia), sendo a sua vida uma ilustração do fenômeno da possessão de alguém por um poder arquetípico (Dioniso). Possessão semelhante ocorre, por exemplo, na novela Morte em Veneza, de

Thomas Mann (1911), com o personagem Gustav Aschenbach. Luchino Visconti fará uma das maiores obras-primas do cinema, valendo-se dessa novela de Thomas Mann. Nesse filme, talvez um dos mais dionisíacos já feitos até hoje, Visconti, sem nos mostrar explicitamente o menadismo, apresenta-nos, de forma inigualável, a história de uma crise e de um conflito no qual as forças do irracional, da doença e da autodestruição acabam por se impor à tranquila e segura, mas enganosa, vida do grande músico.




Quem deu o apelido de mainomenos, o possesso, a Dioniso foi Homero. A simples presença do deus bastava para que as suas sacerdotisas chegassem ao transe, ao frenesi. Esse transe era chamado de demência divina, um comportamento do qual faziam parte a marginalização social, a vida errante e o nomadismo. Lembre-se que na Índia igual comportamento ainda é notado hoje nas sacerdotisas do deus Shiva e em práticas tântricas.


SHIVA

O frenesi, para os antigos gregos, era produzido por descontroles num lugar-sede das paixões, no interior do peito, o phrenes, junto do thymos, este, também segundo Homero, um lugar onde ocorrem intervenções misteriosas produzidas  por um daimon (assaltos do inconsciente), que desencadeava uma alteração repentina no comportamento das pessoas.  Um exemplo do que aqui se diz é Aquiles, o maior dos guerreiros da mitologia grega. Bravo e destemido como nenhum outro, ao lado de uma incomensurável ferocidade nos campos de batalha, era capaz, por outro lado, de demonstrar uma sensibilidade terna, chorosa e soluçante, feminina. Quanto isto acontecia, era inteiramente tomado pelo que lhe ditavam o phrenes e o thymos. Um ser carregado de pathos (sofrimento), um frenético dominado pelas paixões, segundo os estoicos.

A medicina de nossos dias considera a histeria um transtorno somatoforme, um distúrbio polissintomático no qual se constata a presença de vários sintomas físicos, não explicados, porém, pela condição física de quem os apresenta, sintomas que podem, contudo, apontar para doenças.