domingo, 10 de abril de 2011

OS GRANDES CRIMINOSOS*


A proposta religiosa e social na antiguidade grega era a de moderação, de comedimento, segundo os preceitos apolíneos. A mitologia grega nos apresenta muitas ilustrações sobre esse tema. Toda vez que aparecia uma desproporção, um exagero, para mais ou para menos, no desejo, no amor, na beleza, no prazer ou no sofrimento, uma divindade entrava em ação. Limites ultrapassados, os deuses atuavam, obrigando o que se excedeu a voltar de algum modo.
Hybris era o nome dado a essa tendência que o ser humano tinha de ultrapassar os seus limites, pondo em risco a ordem social, que devia ser um reflexo da ordem cósmica. Um duplo crime, portanto. Foi por essa razão que os gregos, personificando Hybris, a colocaram no Hades, no Jardim de Perséfone, como um espectro, dando-lhe como mãe Koros, o Desdém, a Indiferença. Junto de Hybris, acompanhando-a, sempre ameaçadora, “Hamartia”, a Violência, a expressão física da desmedida, com seus asseclas, Bia, a Força Física, e Crato, o Poder, muito requisitados por  Zeus  para  a  sua  guarda  pessoal  e  para     serviços diversos (submeter Prometeu para agrilhoá-lo às montanhas do Cáucaso).
No sentido contrário destas tendências atuava Ananke, uma força sagrada, providencial, que constrangia e obrigava o descomedido a retornar aos limites dos quais nunca deveria ter saído porque seu crime, como se disse, colocava não só em perigo a ordem social como a ordem cósmica. Já, há muito, no oráculo de Delfos, do deus Apolo, estavam gravados no seu pórtico as famosas advertências: “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso”. Estas ideias, herdadas talvez da Índia (lei de causa e efeito, doutrina do karma), saíram da mitologia e, como se sabe, invadiram a filosofia pré-socrática.

A tragédia grega, por outro lado, lembremos, tinha, dentre os seus objetivos fundamentais, o de ilustrar as máximas apolíneas, como proposta pedagógica para o homem grego. Ou seja, fazer com que ele procurasse manter sempre a moderação, observando determinados limites. Se tivermos em mente que a palavra cosmos (kosmos) tem o sentido de universo visível e sua ordem, fica mais fácil entender o adjetivo cosmético, usado para qualificar a pessoa que sabia se posicionar adequadamente no seu contexto social. Rompidos os limites, os deuses puniam. Esta fatalidade poderosa está presente na tragédia grega, onde o trágico aparece precisamente marcado pela impotência das vontades humanas com relação ao destino.


ANANKE

                                                                  NÊMESIS


Ananke era chamada também de Necessidade ao se  valer  da  ação  de  muitas  divindades  como Nêmesis,
as Erínias, as Moiras, as Harpias e outras mais, que atuavam para fazer com que os limites rompidos fossem repostos. 
Estas divindades, a serviço da Ananke, controlavam tanto as ações humanas como os eventos do mundo, tudo para que a justa medida fosse observada. “Sofrer para compreender” é uma das boas frases sofocleanas nesse sentido.   O constrangimento da Ananke era exercido sobre os desejos e as ações humanas por um encadeamento inevitável de princípios e consequências, de causas e efeitos, muitas vezes confundidos como Fatalidade. Vez ou outra, porém, segundo critérios insondáveis, os deuses podiam estender a sua proteção a alguns mortais, mudando este quadro, estas relações de causa e efeito. A pergunta (nunca respondida satisfatoriamente) então se impõe: fatalismo ou liberdade? Será que sem nossa iniciativa o que nos acontece teria ocorrido? Poetas como Píndaro, na Pítica, sempre procuraram nos dizer alguma coisa sobre tudo isto.


                                         JOGOS PÍTICOS

As odes triunfais de Píndaro, reunidas sob o título de Píticas, constituem-se numa boa fonte para o estudo de como certos seres humanos, bafejados pelo divino, parecem ter escapado do determinismo anankeano. Pítico, como se sabe, tem relação com a pítia, sacerdotisa do santuário de Delfos, que revelava em transe as sentenças oraculares de Apolo, e também com os jogos (agones), competições que se realizavam nessa cidade, de quatro em quatro anos.Para Píndaro, sem o favorecimento divino, o ser humano não era nada, um perdido no mundo, um ser aphretor, athemistos e anestios, sem descendência, sem lei e sem lar. Eram dos deuses concessões como kydos (glória), time (honra pessoal), kleos (renome) e olbios (fortuna), todas se colocando na esfera do numinoso. “Numen” é gesto de cabeça que traduz assentimento. Numinoso quer dizer influenciado pelo alto, proteção advinda do poder divino. Na Odisseia, por exemplo, Homero nos descreve o olbios de Alcinoo, rei dos feácios, como riqueza, bem-estar, felicidade, algo concedido pelos deuses e desfrutado, que está tanto na posse como na sabedoria do possuidor.


Píndaro nos deixa claro que a vitória sempre era dada pela divindade:
                          
A vitória não depende dos homens./Somente a divindade outorga sucessos./ Ora eleva este ao céu, ora sua mão rebaixa aquele./ Saibas encontrar teu caminho, observando a moderação./ Seres efêmeros! que é cada um de nós?/ Que não é cada um de nós?/ O homem é o sonho de uma sombra!/ Mas quando os deuses pousam/ sobre ele um raio de sua luz/ então vivo fulgor o envolve/ e adoça-lhe a existência.


                                                                                                    HERÁCLITO

Não há nada de social ou jurídico quanto à intervenção dos deuses para que o homem possa conter a sua hybris. Toda questão se resume na necessidade de que os limites sejam respeitados. A frase é de Heráclito: O Sol não sairá dos seus limites; se o fizer, as Erínias, servidoras da Justiça, o desmascararão.

Aqueles que se entregam à hybris, como diz o mito, vão para o Tártaro, a última região do Hades, lugar jamais alcançado pela luz. Ficarão lá para sempre, presos às cadeiras do esquecimento, ou sujeitos a penas eternas. Nenhuma mudança, nenhuma transformação, coagulatio e mortificatio sem fim. Tortura, degradação e sofrimentos que nunca levarão a nenhum crescimento, nenhuma esperança de ressurreição. Uma punição constantemente renovada e sempre a mesma (apocatástase).

Sísifo (de sophos, sábio, inteligente) é considerado na mitologia grega como o mais astucioso dos mortais. Sua falta de escrúpulos era proporcional à sua prodigiosa inteligência. Descendente de Deucalião (sobrevivente do dilúvio), era filho de Éolo, deus dos ventos, atribuindo-se a ele a fundação da cidade de Corinto. Uniu-se por casamento a Mérope, uma das Plêiades, a menos importante, pois suas outras seis irmãs se ligaram sempre a divindades. Dois descendentes de Sísifo têm destaque no mito, Glauco e Belerofonte.


                                           GLAUCO

O primeiro é filho de Sísifo; teve uma vida complicada. Numa das versões que temos sobre ele, registra-se que bebeu água de uma fonte que conferia a imortalidade. Ninguém, porém, acreditou na história. Para confirmá-la, Glauco atirou-se ao mar, sendo transformado pelos deuses numa divindade marinha, obrigada a percorrer os oceanos da terra ininterruptamente até o final dos tempos. O marinheiro que o visse morreria no ato.

O nome Glauco deriva do grego glaukos, brilhante, entre o azul e o verde. Era-lhe dado também o nome de Pontios, quando aparecia associado a cavalos, símbolos das ondas e imagens de irrupções súbitas inconscientes que rompem uma inércia enganadora.

Belerefonte é um filho de Poseidon, mas seu pai putativo é Glauco, sendo, pois, neto de Sísifo. Foi o herói que, cavalgando o Pégaso, matou a Quimera, terrível monstro. Lutou contra as amazonas, massacrando-as, e venceu os descendentes do deus Ares na Lícia. Cheio de hybris, devido às suas façanhas, tentou escalar o Olimpo. Morreu fulminado por Zeus.

Sísifo tomou conhecimento de que o maior dos larápios, Autólico, filho do deus Hermes, havia roubado animais do seu rebanho. Indo visitá-lo, logo reconheceu os seus animais, recuperando-os. Sua visita coincidiu com o casamento de Anticleia, filha de Autólico, com o herói Laerte. Antes que este consumasse a sua união com a jovem, Autólico fez com que Sísifo se relacionasse sexualmente com ela, pois desejava um neto do “mais solerte dos mortais”, como dizia Homero. Assim aconteceu, nascendo Ulisses, grande herói da Odisseia.
A história da prisão de Sísifo no Tártaro tem início quando nosso herói teve a oportunidade ter visto Zeus, o Senhor do Olimpo, raptar Egina, a filha do deus-rio Asopo. Graças a informações negociadas que recebeu de Sísifo, Asopo conseguiu localizá-la. Como pagamento (fala-se em recompensa) ao informante (protótipo do chamado “insider” moderno), Asopo fez brotar na acrópole da cidade uma fonte que se tornaria muito famosa, a que se deu o nome de Pirene, ficando assim garantido para sempre o abastecimento da Acrocorinto. Muito célebre, Corinto era a cidade do amor, das festas e da alegria, da deusa Afrodite, onde viviam num famoso templo as suas hierodulas, as prostitutas sagradas, sacerdotisas da deusa. A título de curiosidade, lembremos que São Paulo, nos anos 50 dC, na sua Epístola aos Coríntios, estigmatizou a impudicícia da cidade.

Zeus, que tudo sabe, mandou que Thanatos, o deus da morte, fosse buscar o indiscreto Sísifo. Avisado das intenções do Senhor do Olimpo, Sísifo ordenou a Mérope, sua mulher, que não lhe fossem prestadas as honras fúnebres. Chegando ao Inferno sem que as referidas formalidades tivessem sido cumpridas, foi levado à presença de Hades e lhe contou o motivo de tamanho sacrilégio. Atribuiu a culpa à mulher; suplicante e choroso, pediu-lhe insistentemente para voltar ao mundo dos vivos, a fim de não só punir a impiedade da mulher como obrigá-la a cumprir devidamente os ritos de praxe.
Hades concordou. Uma vez em Corinto, Sísifo nunca mais se preocupou em cumprir o que prometera. Passados uns tempos, Hades pediu a intervenção de Zeus. Thanatos foi então buscá-lo de novo, arrastando-o para o mundo ctônico impiedosamente, indo o atrevido rei do Corinto diretamente, sem julgamento algum, para o Tártaro. Foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sempre com a esperança de um dia empurrá-la para a outra vertente, para se ver livre do tormento. Todavia, a cada dia, mal chegado ao cume, exausto, quase desfalecido, cheio de dores terríveis pelo corpo, não conseguia dar o último impulso. A pedra, escapando-lhe das mãos, rolava montanha abaixo. No dia seguinte, tudo recomeçava e se repetia.

Na língua inglesa, nos meios cultos, com base na história de Sísifo, aparece às vezes o adjetivo sisyphean (não dicionarizado) na expressão sisyphean labor para descrever um trabalho interminável, nenhum progresso obtendo o seu executante, a não ser cansaço e frustração.


Em 1942, Albert Camus publicou um ensaio filosófico Le Mythe de Sisyphe, que tem como subtítulo Essai sur l'absurde. A obra se abre com uma interrogação sobre o suicídio, que o autor recusa, em nome de uma ética da verdade. Prossegue, dizendo-nos que a vida é realmente um absurdo, um nonsense que precisamos aceitar, e que a nossa única saída será a de encontrar a felicidade em meio ao próprio absurdo. Sisypho, para Camus, é o grande símbolo condição humana.

Outro grande criminoso que se encontra no Tártaro é Tântalo (etimologicamente, o que suporta), filho de Zeus e de Plutó, uma titânida. Rei da Frígia, riquíssimo, amado pelos deuses, chegou a participar dos banquetes divinos. Unindo-se a Dione, uma atlântida, foi pai de filhos ilustres, Pélops e Níobe. Dele descendem os tantálidas, Atreu, Agamemnon e Menalau, figuras importantes do mito. Um de seus primeiros crimes foi o roubo de um animal, um cão que guardava um templo do Senhor do Olimpo na ilha de Creta. Depois, dando mostra do que viria mais tarde, raptou Ganimedes, príncipe troiano, futuro “amor” de Zeus.
Seu grande crime, porém, foi o de trair a confiança dos imortais, ao revelar os seus segredos aos mortais e ao roubar ambrósia da mesa divina quando participou de um banquete a fim de oferecer a amigos o precioso néctar, alardadeando uma familiaridade inadmissível com as divindades olímpicas. O arremate desta série criminosa ocorreu quando, num banquete que ofereceu aos deuses, para testar a onisciência deles, serviu-lhes o próprio filho, Pélops, como apetitoso manjar. Os deuses, evidentemente, logo perceberam o lhes estava sendo servido, com exceção de Deméter, a essa altura muito perturbada, devido ao rapto de Kore, sua amada filha. 

A deusa dos cereais, sem o notar, abocanhou uma espádua do jovem. Interferindo, os demais convivas divinos a alertaram. O festim terminou ali. Zeus manifestou a sua fúria. Os favores que prestara a Tântalo se transformaram em punições atrozes. Zeus ordenou que os pedaços do corpo de Pélops fossem recolhidos, levados para uma panela e cozidos de novo. Cloto, uma das Moiras, foi convocada; recolheu tudo da panela e costurou todos os pedaços.
O jovem Pélops, então, por ação divina, teve o seu corpo inteiramente reconstituído, voltando à vida e Tântalo foi lançado para sempre no Tártaro, condenado a sofrer eternamente fome e sede. Homero, Ovídio e Virgílio sempre o representaram vitimado por esse horrível suplício. Devorado por uma sede abrasadora, mergulhado até a altura do peito num lago, toda vez que se inclina para sorver água ela lhe escapa. O mesmo acontece com os saborosos frutos das árvores que tenta alcançar para saciar a sua fome. Ao estender as mãos, os galhos se afastam, ficando fora de seu alcance.

O suplício de Tântalo pode ser visto como uma eterna frustração. Exaltação e queda são os termos muito utilizados para explicar a desdita do favorito dos deuses. Perdendo a noção de até onde poderia ir, Tântalo invadiu a esfera do divino, tentando se igualar ou mesmo superar os deuses. Desejos atendidos e insatisfação são idéias que nos vêm diante dessa história. Quanto mais os deuses lhe davam, mais Tântalo queria.
Tântalo foi parar nos dicionários. Tantalizar alguém é tanto prometer e não cumprir como sofrer por coisas de impossível consecução ou obtenção. O maldito descendente de Zeus, juntamente com a sua filha, a orgulhosa e infeliz Níobe, fazem hoje também parte das tabelas da química. O tântalo é muito usado na construção de aviões, aços, filamentos de lâmpadas incandescentes, instrumentos cirúrgicos e dentários. A justificativa que os cientistas encontraram para dar o nome de Tântalo ao elemento químico de número atômico 73 foi o de que ele tem um comportamento não reativo; ou seja, está entre inúmeros reagentes e não é afetado por eles. O nióbio é um metal branco, muito raro, também usado em ligas, e que aparece na natureza sempre ligado ao pai, isto é, ao tântalo.

Não podemos esquecer que Tântalo serviu também de inspiração para uma invenção muito usada por amantes do vinho. Tântalo é o nome que se dá a um pequeno armário aberto onde ficam expostos decantadores cheios da preciosa bebida. Aparentemente à mercê de qualquer um naquela pequena vitrine, os recipientes com o vinho ficam, no entanto, travados por um mecanismo invisível. Só quem tiver a chave do armário poderá ter acesso a eles. Um suplício vê-los e não ter acesso a eles.
Um aspecto da associação de Tântalo com decantadores talvez tenha passado desapercebido pelos que criaram o referido armário. Decantar é palavra que vem do latim medieval, do mundo dos alquimistas (canthus em latim é bico de cântaro) e quer dizer separar por gravidade, deixar depositar. A palavra tomou o sentido de purificar, de tornar mais claro. Daí decantar idéias, dar-se um tempo de reflexão a fim de se ter uma visão mais clara, meditar, tempo que o infeliz filho de Éolo terá até o final dos tempos para refletir sobre os seus crimes.  Ao contrário dos inúmeros filhos de Zeus, no geral ligados ao mundo heroico, os de Poseidon são sempre gigantescos, descontrolados, imensos, a própria imagem da “hybris”. É o caso de Oto (demônio noturno, íncubo) e de Efialtes (o que assalta, pesadelo), filhos do deus dos oceanos e de Ifimedia, sua nora. Casada com Aloeu, filho de Poseidon, a moça devotava grande amor ao sogro (entrava nua diariamente no mar). Acabaram se unindo, nascendo os dois gigantes.

Aos nove anos, diz o mito, já alcançavam mais de vinte metros de altura. Quando adultos, descomunais, resolveram desafiar os imortais, escalando o Olimpo. Atacaram os deuses, tentando inverter a ordem cósmica, tranformando terras e mar. Cansado da prepotência dos dois irmãos, Zeus os fulminou. No Tártaro, foram amarrados com serpentes a uma coluna; ao lado deles, uma coruja, com pios agudíssimos, dia e noite, os impede de dormir.
Os gigantes, lembre-se, são seres que se caracterizam pela enormidade de seu tamanho e pela sua indigência mental e espiritual. São a imagem da desmedida, neles predominando a vida instintiva. Há vários tipos deles. Uns, por exemplo, são filhos de Géia e de Urano: os Hecatônquiros (Coto, Briaréu e Giges), monstros de cem braços, e os Cíclopes (Brontes, Estérope e Arges), gigantes de um só olho. Géia, quando sobre ela caiu o sangue proveniente da castração de Urano por Cronos, gerou também, sozinha, muitos gigantes (etimologicamente, os filhos da Terra). Outros são filhos de Poseidon, todos monstruosos, destrambelhados, como, além dos que aqui discutimos, Polifemo (cíclope siciliano), o gigante Crisaor, os colossais salteadores Cércion e Ciron, o antropófago Lamo, rei dos lestrigões, e Orion, o belíssimo e maldito caçador. Poderíamos ainda incluir na galeria gigantesca alguns titãs, filhos de Urano e de Géia, que formaram a primeira dinastia divina, e alguns de seus descendentes, como, por exemplo, o gigante Atlas, que foi condenado a sustentar eternamente a abóbada celeste sobre os seus ombros.Muitos dos gigantes nasceram com um pavoroso aspecto dracôntico, sempre colossais e com força praticamente invencível. Quando Zeus dividiu o poder com os seus irmãos, Poseidon e Hades, depois de ter vencido os titãs (Titanomaquia), Geia, a Grande-Mãe, irritada porque os vencidos haviam sido lançados no Tártaro pelos olímpicos, os senhores da nova ordem, instigou os gigantes para que os atacassem, inciando-se uma batalha (Gigantomaquia) tão cheia de perigos quanto a anterior.

Quando todos os gigantes, atendida a convocação de Geia, apareceram nos campos Flegreos (região vulcânica da Itália meridional, perto de Nápoles) as estrelas do céu empalideceram, Hélio retrocedeu, a Grande Ursa se fundiu com o mar, o próprio Zeus ficou aterrorizado ao vê-los e pediu socorro a todos os deuses. Estige, filha do deus Oceano, depois rio infernal, foi a primeira a acudir o Senhor do Olimpo, acompanhada de seus filhos, Nike (Vitória), Crato (Poder), Bia (Força) e Dzelos (Emulação). Agradecido por sua diligência, Zeus dispôs no ato que daquele momento em diante se tornassem inquebrantáveis os juramentos divinos feitos em nome da oceânida, o chamado privilégio do “horkos”.

PROMONTÓRIO SAGRAD - MONTE ATHOS, HOJE
Nessa batalha, distinguiram-se, dentre os gigantes, Athos (este, depois, transformado na montanha sagrada da religião grega ortodoxa), Efialtes e os Centimanos (Hecatônquiros). Para atingir o Olimpo, eles removeram várias montanhas, empilhando-as, e do seu cume começaram a lançar petardos contra a mansão olímpica, rochas, troncos de árvore inflamados, lavas incandescentes de vulcões etc. Os deuses fugiram apavorados e tomando a forma de diversos animais, conforme conta o mito, ficaram escondidos por longo tempo no Egito.

Ao que parece, Ares foi o primeiro a reagir, dando uma estocada mortal no gigante Peloro. Athena conseguiu atacar o gigante Pallas, petrificando-o com a cabeça da Medusa do seu escudo. Um oráculo havia previsto que os gigantes só seriam vencidos se pudessem contar com a colaboração de um mortal privilegiado, um heros-theos. Aconselhado por Athena, Zeus mandou chamar Hércules, que com as suas certeiras flechas conseguiu matar alguns gigantes.

HÉRCULES

No meio do fragor da batalha, muitos acontecimentos paralelos. O gigante Porfírio tentou violentar a deusa Hera, então uma adolescente, mas foi morto por Hércules e por Zeus. Um dos mais terríveis inimigos dos olímpicos foi Efialtes, que teve o seu olho esquerdo vazado por uma flecha de Apolo e seu olho direito por uma de Hércules. Athena conseguiu deter Encélado, lançando-o no Etna.

A maior parte dos gigantes sucumbiu pelas flechas ou pela clava de Hércules e devido aos raios lançados por Zeus, apesar da ação enérgica de outros deuses que participaram do combate. O fator decisivo da vitória dos olímpicos (até hoje não explicado convenientemente), que afastou decisivamente o perigo dos gigantes, pondo em fuga os remanescentes, foram, para muitos que narraram a Gigantomaquia, certos ruídos ensurdecedores produzidos pelo relinchar de um asno, animal sagrado de Dioniso, e pela trompa de Tritão, divindade marinha, filho de Poseidon. Vencidos assim, os gigantes foram enviados para o Tártaro. Do sangue deles, derramado sobre a terra, nasceu uma perversa raça humana, que Zeus aniquilou quando do dilúvio de Deucalião.
O episódio da Gigantomaquia tem um aspecto digno de destaque: os gigantes só poderiam ser vencidos pela ação conjunta de humanos e deuses. Historicamente, antes que o homem se civilizasse e que pudesse gozar dos benefícios da cultura, só os seres como os gigantes, que possuíssem grande vigor físico, sobreviveriam no mundo natural ainda não constituído totalmente como cosmos. Do ponto de vista das representações da vida subconsciente, gigantes e dragões estão intimamente ligados como imagens de estados mal diferenciados entre a bestialidade terrestre e o ser humano. A evolução da vida em direção do humano e deste em direção ao espiritual é, sem dúvida, um combate gigantesco. Os gigantes nada mais são, assim, do que símbolos das forças que no interior do homem se manifestam como tendências regressivas, prendendo-o à terra. Eles impedem o impulso evolutivo.

 Não é por outra razão que, quando golpeados, se tocam a terra, recuperam as suas forças. Alquimicamente, são os gigantes “filhos” da terra e da água, elementos passivos. Para vencê-los, temos que fazer como Hércules na sua luta contra a Hidra de Lerna (8º trabalho). Só a venceu quando a retirou do pântano (água e terra), elevando-a no ar e expondo-a à luz (elementos ativos, ar e fogo). Danaides, as filhas de Dânao, o Aquático, rei da Líbia, também há muito estão no Tártaro. Oriundas do Egito, instalaram-se em Argos, sendo pedidas em casamento por seus primos. O pai delas, Dânao, que estava rompido com o irmão, fingiu concordar com o casamento, oferecendo um grande banquete para celebrar o acontecimento. A cada filha, no entanto, ele deu um punhal, arrancando delas a solene promessa de que na primeira noite em que estivessem a sós com os maridos, seus primos, no sagrado tálamo, elas os matariam, cortando-lhes as cabeças.

Assim aconteceu. Por tão monstruoso crime, as Danaides foram condenadas a ir para o Tártaro e obrigadas a encher com água tonéis sem fundo, eternamente. Esta passagem mítica tem uma variante: a de que elas foram condenadas a transportar água em peneiras. Os gregos chamaram o crime das Danaides de genocídio, extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, de um grupo étnico ou religioso.
Platão interpreta esta história como uma entrega, por parte dos criminosos, às suas paixões, que jamais se satisfazem. Os órficos interpretaram o castigo das Danaides como a punição àqueles que, por não usarem a água convenientemente, ficam obrigados a transportá-la para sempre, mas inutilmente, como seu elemento purificador.

No Orfismo, quando depois da morte do corpo físico a alma iniciava a sua jornada em direção do Hades, em busca do “seio de Perséfone”, dois caminhos se apresentavam. O da direita era o dos justos, o da esquerda era o dos maus. Os justos, sedentos, bebiam a água da fonte da Memória, que ficava junto de um cipreste branco, símbolo paradisíaco da imortalidade, e sua água significava a lembrança da bem-aventurança.
Os maus, desviados para a esquerda, bebiam a água do rio Lethe, a fim de esquecer a existência terrena. Para escapar da reencarnação, os órficos evitavam a água desse rio. Se assim acontecesse, a rainha do Hades, os recebia, dizendo-lhe:”Ó feliz e bem-aventurado! Era homem e te tornaste um deus.”

Platão, na República e no Fedon, fala daqueles que mergulhados no lodaçal imundo hão de receber o suplício apropriado à sua degradação moral: esgotar-se-ão em inúteis esforços para encher barrís sem fundo ou para carregar água numa peneira. Aristófanes, através de Hércules, personagem de As Rãs, nos fala de alguns crimes que levam ao Tártaro: falta do dever de hospitalidade, violência contra os pais (parricidas e matricidas), perjúrio, sacrilégio etc. A todos esperando está Eurínomo, o monstruoso abutre infernal, devorador das carnes dos cadáveres inumados. É de se mencionar ainda Ésquilo, que numa tetralogia, As Egípcias, As Suplicantes, As Danaides e Amimone (drama satírico) se aproveitou do tema das infelizes filhas de Dânao.
Ixion, filho do deus Ares e de Perimele, era rei dos lápitas, um povo da Tessália. Para obter a mão de Dia, filha de Dioneu, prometeu ao pai que o cumularia de presentes, especialmente uns cavalos maravilhosos. Realizado o casamento, Dioneu foi reclamar do genro os presentes prometidos. Ixion, num acesso de raiva, sem nenhuma testemunha, matou-o, lançando o corpo num poço profundo cheio de carvões em brasa. Hipocritamente, passou a cultuar a memória do sogro em cerimônias que Dia realizava.

Historicamente, os lápitas eram selvagens e violentos, criadores de cavalos, guerreiros e mercenários. Viviam nos maciços montanhosos do norte da Grécia. Úmida e fria no inverno, muito quente no verão, a Tessália se integrou ao mito pelas histórias de muitos personagens, do deus-rio Peneu, da ninfa Filira, de Lápites (filho de Apolo), deCeneu, de Mopso e de outros, alguns inclusive participantes da expedição dos argonautas.
Descoberta, porém, não só a morte do sogro, mas muitos outros crimes por ele cometidos, Ixion, apesar da sua elevada posição, foi afastado do trono e expulso do seu reino, tornando-se um ser errante, por todos amaldoçoado, ninguém se dispondo a se aproximar dele.

Abandonado por todos, Ixion simulou estar arrependido, pondo-se a fazer sacrifícios às Eumênides, as Benfeitoras. Zeus que tudo via lá das alturas, apiedou-se de seu neto, chamando-o para o Olimpo. Mal instalado na mansão dos deuses, atacado por grande hybris, ousou ele cometer um crime muito maior do que todos os que cometera na sua vida terrena. Tentou violentar a deusa Hera, esposa imperial de Zeus, seu protetor.
Cientificado do fato por Hera, Zeus confeccionou com nuvens um simulacro de sua esposa, em tudo idêntico a ela, que recebeu o nome de Nephele (Nuvem). Ixion caiu no engodo, unindo-se sexualmente a este simulacro. Dessa união nasceram os centauros, seres híbridos, humanos na parte superior e cavalos na parte inferior de seu corpo.
Para castigar Ixion, Zeus lhe deu ambrósia, tornando-o imortal, e depois mandou amarrá-lo com serpentes a uma roda incandescente, a girar constantemente, lançando-o no Tártaro. Fixado nesse suplício até o final dos tempos, Ixion grita sem cessar: Honrai vosso benfeitor pelo tributo da gratidão.

Os centauros são considerados símbolos da força bruta e das pulsões instintivas que se apoderam do homem, anulando o lado humano de sua personalidade, que não consegue dominar este lado animal. Concupiscentes, lúbricos, bestiais, comedores de carne crua, bastando um copo de vinho para embriagá-los, são a imagem da trracionalidade do ser humano.

Ao mito de Ixion não podemos deixar de acrescentar a história de seu filho Piritoo, um ser também vitimado pelas paixões como o pai, cujas aventuras fazem parte da crônica do grande herói Teseu. Impressionado pelo filho de Egeu e por suas façanhas, Piritoo passou a acompanhá-lo como uma espécie de escravo. Uma das maiores aventuras desta dupla foi a tentativa (fracassada) de rapto de Perséfone, a rainha do Inferno.
Salmoneu (etimologicamente, o que transborda), oriundo da Tessália, filho de Éolo, deus dos ventos, emigrando para a Élida, fundou a cidade de Salmona. Muito orgulhoso e descomedido, julgou que poderia se tornar um deus na terra. Uma espécie de Zeus. Mandou construir diante de seu palácio uma pista de bronze e num carro com rodas de ferro que arrastavam correntes desfilava por ela, pretendendo produzir ruídos como os trovões e chispas de fogo como os relâmpagos e raios, armas de Zeus, que lhes foram dadas pelos Cíclopes. Apesar de nada popular entre seus súditos, que o achavam ridículo, queria ser conhecido por dois epítetos de Zeus, Brontaios (Trovejante) e Astrapaios (Relampejante).



ZEUS ASTRAPAIOS


Não demorou muito para que a paciência de Zeus se esgotasse. Irritado com a idiotice do espetáculo (aliás muito repetido hoje com motocicletas e automóveis), o Senhor do Olimpo o fulminou e o enviou para o Tártaro, onde se encontra até hoje, obrigado a ouvir trovões e a ter que suportar em seu corpo descargas elétricas equivalentes a raios.Dentre as figuras mais sinistras que estão aprisionadas no Tártaro temos Títio (forte, grosso). Filho espúrio de Zeus, de um de seus inúmeros amores itinerantes (Elara), foi escondido, por ordem do pai, no interior da Terra para que sua ciumenta mulher não o descobrisse. Hera, contudo, o descobriu, a essa altura uma figura gigantesca, dracôntica .Inspirou-lhe Hera uma violenta paixão por um dos grandes amores de Zeus, Leto ou Latona, a mãe dos gêmeos Ártemis e Apolo.




Quando estava prestes a violentá-la Zeus o lançou no Tártaro. Seu suplício: ter o seu fígado devorado por duas serpentes, na fase da Lua nova. Na fase crescente, as serpentes lhe dão um descanso, reconstituindo-se o órgão. Vergílio nos conta a história de Títio na Eneida, substituindo, porém, as serpentes por um cruel abutre que lhe rói as entranhas, não permitindo descanso às fibras que sempre renascem.











                        *Ciclos de Mitologia - "Lita Projetos Culturais"