sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - NETUNO 2 (EGITO)


     

Se as elaborações mitológicas diferem às vezes bastante, num ponto elas costumam coincidir: todas ou quase todas partem da ideia de que a criação do universo é sempre precedida por uma massa caótica informe, intemporal, ilimitada, obscura e fria; uma espécie de protomatéria, uma massa pastosa, quase líquida, no seio da qual se aninha potencialmente uma possibilidade existencial. Esta possibilidade, conforme as descrições, se manifesta por algo que aflora à sua superfície, uma flor de lótus, uma rã, uma serpente, um montículo de terra etc., como ponto de partida para toda a criação subsequente.

                             
 Outra característica cosmogônica comum é a de que essa massa líquida está em permanente movimento de fluxo e refluxo e é, enquanto duração, cíclica, isto é, alterna-se como o dia e a noite, como a sucessão das estações. Assim, tudo tem um começo, uma duração e um fim, este sempre um recomeço.

É do seio dessa massa líquida que a criação procede. A massa caótica contém dentro de si um potencial criador. Uma vez criados os corpos e as formas, sempre presente a ameaça de um retorno à indiferenciação, de uma volta ao caos. Entre os antigos egípcios, o desenvolvimento da criação se dá pela atividade de um demiurgo que também emerge da matéria caótica. A ele caberá engendrar os seres divinos e outras formas.

O uno se biparte, se torna três, nove, se multiplica, surge o plural e com ele se chega aos milhões, número que entre os egípcios indicava o infinitamente grande. Ao mesmo tempo, o demiurgo e os deuses criados vão se empenhar numa luta incessante para evitar o retorno do que foi criado ao caos, algo assim como uma inundação ou outra manifestação catastrófica que engolirá inexoravelmente tudo o que foi criado de tempos em tempos. 

APOPHIS
 Esta ameaça de retorno ao caos tem como símbolo mais visível uma enorme serpente que vive no seio da massa líquida informe. Conforme certas histórias, esta enorme serpente se acha enrodilhada sobre si mesma, mordendo a própria cauda, lembrando um movimento de eterno retorno. Esta serpente, entre os egípcios, tem o nome de Apophis e, a cada noite, ela tenta impedir o avanço da barca solar em direção da alba, tentando impedir o ciclo do tempo. Para os egípcios, no mundo que antecede a criação não existiam as noções de espaço e de tempo. Esta imensidão não tem fronteiras nem consistência, tudo é móvel. Temos assim um espaço líquido envolvido pelas trevas; não podemos falar do dia ou da noite, inexistentes então.  

As principais cosmogonias egípcias que descrevem as origens do mundo são as Heliópolis, de Hermópolis e de Mênfis. Em grandes templos como os de Edfu e de Esna também encontramos visões cosmogônicas dos tempos originais e da criação, nas quais as divindades atuavam. É sobre este mundo primordial, instável, ameaçado constantemente de implosão, que se torna necessário atuar, tentar dominá-lo e mesmo preservá-lo de algum modo por ritos precisos, organizando-o socialmente como uma pirâmide, na qual o faraó, colocado no seu vértice, desempenha o papel de principal sacerdote mediador entre os humanos e os deuses. 

As diferentes cosmogonias egípcias têm em comum, como origem da criação, um oceano primordial, uma imensidão de matéria líquida e trevosa, a que dão o nome de Num, dentro da qual existe um demiurgo que, despertando, porá a criação em movimento. Este oceano primordial representa a origem do universo, mas também o fim dos tempos, ao qual tudo o que foi criado retornará um dia. 

Este criador não depende de nada ou de ninguém para se
ATUM
manifestar. Ele se chama Atum; é único e não tem um
lugar definido onde possa ser encontrado; é onipresente. A criação se mostra pelo aparecimento de uma ponta de terra, encoberta por um papiro, sobre a massa líquida. A partir dessa manifestação, a criação vai se fazendo por etapas. Sendo solitário, Atum (literalmente, “o que é totalidade”, “ser completo” ou “o que é e o que não é”) dá origem a dois princípios, um feminino (Tefnet) e outro masculino (Shu). Estes princípios vão criar Nut (Céu) e Geb (Terra), com os quais começa a criação “normal”, reprodutiva, sexuada. 

Num é o caos ou o oceano primordial no qual estão presentes, antes da criação, os germes de todas as coisas e de todos os seres. Embora às vezes seja descrito como uma divindade, Num sempre foi considerado por algumas tradições mais como uma criação intelectual (como o Brahman dos hindus), não tendo templos nem adoradores. É representado algumas vezes por um ser antropomorfizado, mergulhado até a cintura na água do que parece ser um lago, com os braços levantados, nos quais sustenta os deuses que criou.

Todavia, se nos aproximarmos mais do Egito pré-histórico teremos que admitir que a noção de Num não é simplesmente o resultado de especulações abstratas, mas a lembrança desse recuado período que alcança o paleolítico durante o qual os seus habitantes podiam dos terraços desérticos contemplar o Nilo monstruoso e indisciplinado que cavava o seu leito no território africano. Ademais, cada inundação fazia o vale retornar à sua forma original, a de um mar imenso; para que as cidades se mantivessem quando dessas inundações, era preciso  que ás águas fossem desviadas, contidas de alguma forma, que diques e lagoas artificiais fossem construídos. O Num primordial, salientemos, não é o autor da criação. Ele desempenha no processo cosmogônico um papel passivo, feminino, onde se manifestarão as primeiras forças divinas. 

MNEVIS
 Atum, o demiurgo, conforme a cosmogonia heliopolitana, foi logo identificado como Ra, divindade solar, sendo o touro Mnevis o seu animal sagrado. A doutrina heliopolitana ensinava que, antes da criação, vivia no Num um espírito ainda indefinido, que carregava consigo a soma de todas as existências, de nome Atum. Mais tarde, este espírito manifestou-se como Atum-Ra, dando ele origem a todos os deuses, os  humanos e todos os demais seres.

 
ATUM-RA
Atum é considerado como o grande ancestral do gênero humano; é representado sempre por uma figura humana que ostenta a coroa dos faraós, o pschent. Deus solitário, diz-se que ele tirou de si mesmo, sem o concurso do princípio feminino, o primeiro par divino. Somente mais tarde ele teria se unido a Jusa ou Nebet Hotep, tornando-se pai dos gêmeos Shu e Tefenet.

As divindades descendentes do primeiro Demiurgo vinham defendendo o país tanto interna como externamente, apesar das ameaças às fronteiras do sul do país. As coisas pioraram quando Seth e Horus entraram em luta, o que só 
SET E OSIRIS
trouxera divisão e esgotamento. O primeiro era irmão gêmeo de Osiris, a quem assassinara, e, como tal, tido do primeiro. As preocupações aumentaram quando um novo perigo apareceu ao norte do país. Ninguém havia ouvido falar dele, nem se sabia de onde vinha. De certo, só a informação de que ele não fazia parte das assembleias divinas; nenhum templo, nenhuma estátua lhe haviam sido consagrados. 


Muitos diziam que essa ameaça vinha de lugares distantes, além do
KHEPRI
país onde Khepri (escaravelho, uma das formas de Atum, como o Sol matinal; “aquele que veio à existência por si mesmo”) se levantava, habitados por povos inimigos. Outros afirmavam que ele viera da Ásia para atacar o delta do rio Nilo. Outros ainda diziam que ele provinha das águas salgadas, indomáveis, nas quais as águas do rio se perdiam, onde Ísis errara por muito tempo à procura do corpo do seu querido esposo Osíris.

  
O que se sabia é que os deuses da Enéada (grupo dos nove principais deuses de Heliópolis) não gostavam das águas oceânicas, essas imensas extensões aquáticas assoladas constantemente por ventos e tempestades. Era difícil chegar a elas; para atingi-las tinha-se que atravessar a zona instável e pantanosa do delta. Aquelas águas vinham de terras ignotas onde se veneravam divindades desconhecidas. Ao mesmo tempo que dificilmente transponível para os que quisessem chegar ao grande oceano, o delta do Nilo, com os seus pântanos, era, entretanto, uma proteção natural contra os ataques externos. 

Eis que num determinado momento uma força até então desconhecida, um deus diziam alguns, começou a aterrorizar os
YAM E SEUS ASSECLAS
pescadores que se aventuravam no alto-mar. Engolindo barcos, homens, casas, rebanhos e plantações criados ou instalados em algumas ilhotas do delta, o terror logo tomou conta das populações costeiras. A coisa piorou quando se propalou uma notícia de que a tripulação de uma embarcação nunca vista havia raptado algumas jovens diante de atônitos camponeses.

Os rumores se multiplicavam, os temores aumentavam. Histórias
HAPI
narravam que um monstro surgido das profundezas marinhas, em companhia de crocodilos e de hipopótamos,vinha, à noite, errar pelo delta, à procura vítimas. Diante desses acontecimentos, Hapi, o deus do rio Nilo, alertou a assembleia dos deuses. Indecisos, eles recomendaram aos sacerdotes que solicitassem aos crentes a multiplicação das oferendas e das procissões religiosas. Tropas militares foram deslocadas para a região do delta do Nilo.


O que se descobriu é que as ameaças vinham de um soturno personagem de nome Yam, que se declarou uma divindade marinha, e que se pôs a atacar os deuses. Tal aconteceu quando uma embarcação religiosa descia o Nilo com uma estátua do deus Hapi. Quando a embarcação se aproximava da embocadura do rio, serpenteando entre os papiros, uma onda enorme a atingiu, Logo, tudo parecia ter voltado ao normal, mas nenhum sinal da embarcação e de sua tripulação foi encontrado. 

O deus Hapi exigiu que lhe fosse feito um sacrifício, um touro, no caso. Mas nada disto impediu que Yam continuasse atacando e fazendo vítimas, cada vez mais insaciável. Dia após dia, ele exigia cada vez mais. Os deuses acreditavam que ele acabaria se cansando, se tornando menos ávido, e que acabaria voltando para o seu distante reino oceânico. 

Tal não aconteceu, porém. Yam, para demonstrar a sua determinação, enviou uma tropa de vagas marinhas conquistar as terras do delta. Sob o formidável ataque, elas logo desapareceram, o gado se afogou, os pássaros voaram, os que puderam fugir se afastaram apavorados, as semeaduras apodreceram, os celeiros foram invadidos, tudo sossobrou.

NUT
 A Terra, na pessoa de Geb, pai de Osíris e esposo de Nut, deusa do céu, dirigiu-se então à deusa das colheitas, Renenutet, pedindo-lhe a ajuda. Esta declarou a sua impotência diante do fato e sugeriu a Geb que para apaziguar a fome de Yam fossem-lhe oferecidos feixes de trigo em grande quantidade, rejeitados, porém,pelo deus.
LÁPIS- LAZÚLI
A Enéada, depois de discutir longamente o assunto, resolveu reunir um grande tesouro em ouro, prata, lápis-lazúli e outras pedras preciosas. Levados numa embarcação até o delta, os presentes foram entregues ao deus pelo faraó, prosternado diante dele.


Yam exigiu então que fosse construído um templo em sua homenagem, tão grandioso quanto o de Ra, em Heliópolis. O faraó hesitou: não desejava considerar um deus estrangeiro igual aos da Enéada. Ao mesmo tempo, os deuses irritavam-se, ofendidos, ao ver o faraó fazer constantes oferendas a um deus estrangeiro. 

Como seu santuário não era levantado, Yam foi tomado por grande
PTAH
furor. Foi enviada então, sob o comando do faraó, uma delegação para negociações. Os argumentos apresentados não satisfizeram Yam, que exigiu um tesouro dez vezes maior. A Enéada conseguiu juntá-lo, resolvendo que ele fosse levado ao deus por Astarte, a belíssima e irascível filha do deus Ptah, o deus que fora capaz de retirar a Terra do Num.


RENENUTET
Notando o sofrimento dos homens, os lamentos de Geb, a impotência de Renenutet e o temor dos deuses, Astarte foi tomada de grande receio diante do que lhe era solicitado. Orgulhosa, porém, ela resolveu atender ao pedido dos deuses; banhou-se, vestiu-se maravilhosamente, perfumou-se, cobriu-se de joias, e com um grupo de carregadores desceu o Nilo numa grande embarcação, levando o tesouro para Yam.

Ao vê-la, Yam desistiu do tesouro e mandou um recado para os deuses da Enéada: que eles lhe entregassem a própria Astarte e nada mais ele exigiria para deixar todos em paz. Assim foi decidido, e Astarte com um grande dote voltou a se apresentar a Yam para se tornar sua esposa. A paz voltou ao universo e os deuses da Enéada retomaram as suas atividades habituais.

Eis, porém, que o humor instável e colérico de Yam voltou a se manifestar. A submissão de Astarte e as riquezas que lhe foram dadas não bastavam. Ele enviou a esposa com o pedido de mais tributos, com a ameaça de destruir não só delta, mas as montanhas também. O risco de um retorno ao caos era iminente. Os deuses, então, recomendaram a Astarte que não voltasse ao esposo.

ASTARTE
 Não tendo outro recurso, a Enéada, com muita relutância, viu-se constrangida a solicitar que Seth, o Terrível, deus dos desertos,
SETH
enfrentasse Yam, pois era o único capaz de com o seu sopro quente combatê-lo. Como monstruoso que era, seria muito fácil para Seth lutar contra os monstros do caos gerados por Yam. O confronto aconteceu e só a muito custo Seth conseguiu vencer Yam. O preço pago pela Enéada e pelo sacrifício de vidas humanas foi elevado, mas acabou valendo a pena. Apesar das doenças e da desertificação, a vitória foi obtida. E foi assim que a Enéada, agradecida, empurrou para os braços de Seth a maravilhosa Astarte, cujo temperamento muito se ajustava ao dele. E foi assim também que Yam, o deus do oceano, não voltou a perturbar a paz das terras egípcias sobre as quais velava a Enéada.