sábado, 8 de março de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - A LUA (6)


    A associação da lebre à Lua se dá através de inúmeros traços que
ambas têm comum. Muitas histórias folclóricas, mitos, lendas e contos apontam para estas analogias. Uma primeira relação pode ser estabelecida através da renovação perpétua da vida, pelo simbolismo das águas fecundantes e da vegetação. A lebre é um animal extremamente fecundo, prolífico. Há sempre a cercá-la ideias de exuberância, de abundância,   de   multiplicação  e   também   de   desperdício,   de descontrole e de incontinência como as que temos quando pensamos na água. É neste sentido também que a grande disposição da lebre para o acasalamento faz dela um símbolo da luxúria. O cristianismo se apoderou deste traço para colocar uma lebre deitada aos pés da Virgem Maria a fim de simbolizar o controle da “tentação da carne”.

VIRGEM MARIA (MURILLO)

A lebre é um animal assustadiço, frágil, fugidio, razão pela qual, segundo as lendas, dorme de olhos abertos. O mesmo se pode dizer das pessoas lunares, sempre alerta, em guarda, observando tudo, defensivas, à espera de um ataque real ou imaginado, invariavelmente mais imaginado que real. O comportamento vigilante da lebre é tipicamente lunar, dizem-nos os contos folclóricos. A lebre gosta de dormir de dia e sair à noite, pois, como a Lua, aparece e desaparece em silêncio e eficazmente.

A lenda acima referida, a de que as lebres dormem de olhos abertos, foi submetida à análise por muitos médicos medievais, que, como atestado em muitas tradições, os levou a proibir o consumo exagerado de carne desse animal e do coelho, pois poderia provocar insônia. Por seu comportamento tímido, a lebre, no simbolismo da Idade  Média,
HÉCATE
representava a covardia (ignavia). É dentro desse universo que em muitas tradições nós  a encontramos  transformada num animal-tabu. Na tradição judaica, no Deuteronômio e no Levítico, o animal é considerado impuro. A feitiçaria também se apropriou da lebre, dando a ela como companheiros, no bestiário lunar, animais prolíficos como ela. No mito grego, vamos encontrá-los com a deusa Hécate nas encruzilhadas, nas noites de Lua nova.


Uma relação curiosa entre a lebre, a Lua e Mercúrio pode ser estabelecida, para fins astrológicos, quando constatamos que em muitas tradições, como as de algumas tribos indígenas do norte das Américas ela, a lebre, representa os heróis culturais desses povos. A explicação para o fato está na grande capacidade que a lebre
TRICHEUR (GEORGES DE LA TOUR)
demonstra para escapar de situações perigosas, de animais bem maiores que a atacam. Extremamente hábil, veloz e inteligente, a lebre, na maioria das vezes, consegue escapar deles. Essa esperteza a aproxima astrologicamente do Mercúrio-Hermes que, como se sabe, é a divindade que tutela o comportamento do  trickster, termo inglês que se adotou para designar uma forma mercuriana de viver. O trickster (tricheur, em francês) é aquele que por meio de artifícios fraudulentos, por esperteza, por estratagemas, por subterfúgios, criando ilusões, apresentando o falso como verdadeiro, consegue não só levar vantagens como se safar sempre de situações perigosas. A psicologia (Jung) nos diz que o trickster é um personagem no qual os apetites físicos dominam sua conduta, sendo no geral cruel, cínico e insensível.


A mitologia dos povos do norte da Europa, os escandinavos, compreende principalmente as crenças oriundas da própria península escandinava e da Islândia. Um ramo deste tronco é a mitologia germânica. Elas diferem em detalhes; conhecida a primeira, se conhecerá o caráter da segunda. 



EDDA

A mitologia escandinava está registrada numa obra chamada Edda, de origem islandesa, ao que parece do séc. XII, descoberta no séc. XVII, de autoria de Semudo Sigfusson, uma recompilação de
SNORRI STURLUSSON - SÉC. XIII
antiquíssimos poemas cosmogônicos mitológicos e históricos. Estes poemas eram divulgados oralmente, de castelo em em castelo e em feiras na Idade Média por poetas chamados escaldos, bardos, trovadores. Outro  importante texto, do séc. XIII, de autoria de Snorri Sturluson, que reapareceu no séc. XVII, também divulgado oralmente na sua origem, que continha comentários sobre a primeira obra, mais antiga, permitiu um melhor entendimento sobre ela.

 Embora  não  encontremos  referências  lunares  explícitas  na mitologia escandinava, podemos perceber na
sua cosmogonia fortes traços que apontam para o astro noturno, através de símbolos que a ele sempre foram relacionados. Refiro-me, por exemplo, à vaca, considerado um valor positivo com relação ao touro, cujo status simbólico é ambivalente. Com efeito, a vaca sempre representou a força maternal e nutritiva da Terra, sendo seus chifres vistos como imagens do mundo lunar. 

SURTUR

Na cosmogonia escandinava havia a princípio duas regiões, a do fogo e da luz, chamada Muspilheim, na qual reinava  um ser absoluto e eterno, Alfadir, e a região das trevas, domínio de Surtur, o Negro, chamada Nifflheim. Entre ambas se estendia o caos (Ginnungagap). As faíscas que se desprendiam da primeira região acabaram por fecundar os frios vapores dos gelados rios da
AUDUMBLA
segunda, provocando o nascimento de Imir, pai da raça dos gigantes. Mal nascido, Imir teve fome. Um raio da região luminosa fundiu o gelo dos rios tenebrosos, sendo formada a vaca Audumbla, de cujas tetas emanaram quatro fontes de leite, saciando-se assim a fome do gigante. Satisfeito, Imir dormiu e do suor de suas mãos nasceu um par de gigantes, um do sexo masculino e outro do sexo feminino. 



YMIR


De um dos pés de Ymir, surgiu um monstro de seis cabeças.
A vaca sustentadora desta raça de gigantes nascida do gelo lambeu
ODIN
então a neve. Apareceu primeiro uma cabeleira, depois um crânio e
um corpo. Era o deus Bure, fortíssimo e de formosas proporções, que, por sua vez, gerou sozinho uma outra divindade, Bor. Unindo-se a uma giganta, Bor tornou-se pai de três outras divindades, Odin, Vili e Ve, deuses destinados a criar e a se assenhorear do universo.

O primeiro na hierarquia divina é o poderoso Odin, criador e conservador do universo, terrível deus da guerra. Sua companheira é Freya, personificação da Terra, mãe da fecundidade e de todos os seres. No panteão escandinavo, que se define a partir desse casal divino, não encontramos uma divindade que represente a Lua. Das características lunares apenas duas podem ser notadas em divindades femininas e mesmo assim não muito claramente. Sif, uma das esposas do deus Thor, filho de Odin, deus tempestuoso, tem, por exemplo, alguma relação com a fertilidade dos campos. A outra é a deusa Gefione, protetora das virgens.

Os celtas da Gália (gauleses) praticavam, na origem, uma espécie de animismo que não comportava representações figuradas. Por outro lado, nunca tiveram uma religião nacional. As manifestações religiosas eram tribais, as divindades eram tópicas, ligadas a um lugar determinado, ou regionais. Outra dificuldade para o estudo das práticas religiosas desses povos é que elas tiveram inicialmente, por séculos, um caráter oral. 


FESTA DA LUA

Politeístas como todos os primitivos, os celtas continentais divinizaram principalmente as águas, os picos das montanhas e alguns animais. Quanto às primeiras, os cultos se fixaram sobretudo nos rios e nas fontes. Deva, Diva, Devona (divina) era um nome comum aplicado aos rios gauleses. Borvo, Bormo ou Bormanus (Fervente, deus das fontes termais) eram os apelidos mais comuns.


EPONA

Uma das divindades mais características desse mundo é a deusa Epona, que apresenta alguns traços lunares. Ela aparece sempre ao lado de um cavalo, muitas vezes montada; envolve-lhe o corpo uma espécie de véu; na cabeça, ostenta um diadema. Seus atributos são o chifre da abundância, uma patera e frutos. Tem muito a ver com a abundância agrícola. Mas antes de tudo Epona é uma divindade das águas, que lembra a fonte de Hipocrene (fonte do cavalo) entre os gregos. 

ARTIOS E ARTIO

Quanto aos animais, os mais ligados aos cultos eram o cavalo, o corvo, o touro, o urso e o javali. Sagrados, estes animais emprestaram seu nomes a muitas cidades. Lugdunum (Lyon), por exemplo, tem a ver com o corvo (lugus, em latim). Os helvécios veneravam especialmente uma divindade de nome Artio (ursa), parecida com a Ártemis grega. Um animal que teve o seu culto muito espalhado nesse mundo foi o touro, um símbolo da força e do poder gerador lunar.

GÁLIA ROMANA

Quando os romanos começaram a invadir (guerras de conquista) a Europa central, a mitologia romana passou a influenciar bastante as representações que os celtas faziam de suas divindades. É nesse período, chamado de galo-romano, que ocorre a antropomorfização das divindades celtas. Muitos deuses romanos emprestarão seus corpos às divindades celtas. Diana, a deusa lunar dos romanos, não encontrou, porém, lugar para se acomodar no panteão celta.

Quando falamos dos cultos solares entre os antigos chineses (Sol nº 6), anotamos que faziam parte deles apenas duas cerimônias anuais. Já quanto à Lua, os cultos também não eram muito numerosos, mas, ao que parece, eram bem mais importantes, inclusive se fazendo a ela, o que não acontecia com o Sol, um número bem maior de sacrifícios. Uma das cerimônias celebradas em homenagem ao astro lunar era uma das três grandes festas anuais dos chineses. Essa festa acontecia no equinócio de outono, no dia quinze do oitavo mês, numa Lua cheia, e se destinava sobretudo às
AMARANTO
mulheres e às crianças. Havia distribuição de frutas, as crianças ganhavam de seus pais uma estatueta, um pequeno coelho branco ou um guerreiro armado com focinho de lebre. Nessa noite, distribuíam-se bolos açucarados e eram estendidas, nas casas, enfeitadas com galhos de amaranto vermelho, flâmulas nas quais se representava o palácio da Lua, no qual vivia a Lebre, animal que fabricava a droga da imortalidade. Os homens não participavam dessa festa, pois a lebre era popularmente um símbolo dos invertidos, sua entidade tutelar. 


Entre os chineses, a Lua era ainda habitada por uma deusa, Hang-Chang, mulher de Yi, o Excelente Arqueiro, personagem
YI OU O EXCELENTE ARQUEIRO
mitológico que abateu, dos dez existentes, nove sóis que um dia se atreveram invadir o céu e ameaçar a terra de incendiá-la. O Excelente Arqueiro havia obtido como recompensa dos deuses a droga da imortalidade. Sua mulher, aproveitando-se de sua ausência, consumiu um pouco dela. Colérico, Yi resolveu puni-la; ela então fugiu para a Lua, pedindo que a Grande Lebre a protegesse . Esta intercedeu e fez com que Yi renunciasse à sua intenção de puni-la. Esta é a história que explica porque na Lua vive uma  mulher, muito citada em poemas e histórias, a bela Hang-Chang.   


HANG-CHANG

Os cultos lunares ao longo dos séculos sofreram no Japão muitas mudanças. Os textos mais antigos nos dizem que a Lua nasceu do olho direito de Izanagi. Seu nome japonês, Tsuki (Lua) e Yomi (contar), indicam claramente que ela era usada para a contagem dos meses. Divindade masculina, em antigas antologias poéticas é
SANTUÁRIO DE ISE
costume juntar ao seu nome a palavra Otoko (homem) para destacar este caráter masculino. Nos santuários desta divindade, principalmente em Ise e Kadono, se encontram espelhos (shintai) do deus, através dos quais ele se manifesta. Ofereciam-se a cada ano ao deus da Lua cavalos, que eram guardados em estrebarias contíguas aos templos. A imagem chinesa
PASTA DE ARROZ
da lebre preparando na Lua a droga da imortalidade passou ao Japão com algumas modificações: os japoneses fazem a lebre amassar
arroz numa espécie de almofariz para transformá-lo em pasta. Isto se deve a um jogo de palavras: fazer a pasta de arroz para preparar doces se diz Mochi-zuki, o mesmo nome da Lua cheia, ainda que seus ideogramas sejam completamente diferentes.


  
Em todas as tradições, como pudemos ver, a Lua sempre foi considerada como uma espécie de Mãe do Mundo. Impregnada dos princípios fecundantes do Sol, que ela semeia, foram atribuídos a ela por isso os poderes geracionais, essencialmente os mesmos nas várias culturas. O crescimento da Lua durante os catorze primeiros dias de cada mês foi analogicamente associado ao desenvolvimento dos seres vivos. Daí, o costume de se semear vegetais nesse período e de se fazer a colheita no minguante. Esta influência se estendeu aos empreendimentos humanos, sempre mais favorecidos no crescente lunar. 

O orvalho, como se sabe, é mais abundante nas noites claras. Ele é 
a condensação do vapor de água da atmosfera que se deposita em gotículas sobre superfícies horizontais e resfriadas (terra, telhados, folhagens) pela manhã e à noite. Metaforicamente, podemos dizer, por isso, como muitos poetas o fizeram, que palavras funcionam como o orvalho (“suas palavras foram como o orvalho para mim”), são um lenitivo, um refrigério, trazendo alívio, livrando das opressões. 

Segundo Plínio, o Velho, o orvalho era o “suor do céu”, a “saliva dos astros”. Na mitologia grega, Drosos, o Orvalho, era filha de
CELENE
Zeus e de Selene. O orvalho, segundo antigas crenças, dava às ervas os seus sucos benéficos e, por essa razão, também se associava a divindades que favoreciam a vida afetiva, Astarte, Afrodite e Dioniso, que personificavam, à sua maneira, o orvalho fecundante do céu.


Os povos mais dedicados à atividade agrícola concluíram que a umidade procedia do astro lunar, naturalmente frio e úmido. Isto explica porque nas regiões secas e quentes o culto da Lua sempre suplantou os cultos solares. Em razão do seu crescimento e
CYBELE
de seu curso rápido a Lua, em todas as tradições, simboliza a fertilidade, decorrendo desse fato o grande culto às Grandes Mães, sempre protetoras da vegetação. Por essa razão também é que os deuses e deusas lunares encontram um lugar de destaque nas sociedades de vocação agrícola.  


Outro traço comum importante da Lua, notável no mundo todo, é que ela é um símbolo da renovação em virtude do seu reaparecimento periódico. Por não ter luz própria, é símbolo da dependência e do conhecimento indireto, pois reflete a luz do Sol. Sua luz atenuada é intermediária entre o esplendor solar e a obscuridade, entre a consciência e o mundo inconsciente da noite. Por esse razão encarna a anima, o princípio feminino, passivo, os erros cometidos antes da chegada da luz do consciente, solar. 

ANIMA  (PENÉLOPE) - ANIMUS  (ULISSES) - MARC CHAGALL

Na caracterologia, a Lua rege os temperamentos linfáticos, digestivos, cuja tendência maior é a de permanecer em estados embrionários, protegidos, temperamentos fortemente marcados pelo instinto de conservação, pela prudência, pelo amor à calma,
pelo repouso, pela vida simples, familiar. Por isso, a Lua num mapa astrológico é símbolo da alma e sua posição revela formas de reação, de receptividade e de capacidade de adaptação às exigências da vida quotidiana. Dominando a Lua, na constelação dos astros de um nascimento, temos o destaque para a predominância da vida infantil, arcaica, vegetativa e animal no psiquismo do ser humano (infantilismo psíquico). 

Quanto às fases, a Lua nova, em várias tradições, é símbolo da infância. A Lua crescente, da juventude, da adolescência, da receptividade universal e indiferenciada que atrai tudo, das pulsões não conscientizadas, correspondendo à extroversão. A Lua cheia aponta para a maturidade, para a gestação, para o ato de dar à luz.

                                               A Lua minguante simboliza o declínio
GEORGES MELIÈS
da vida e representa os tipos introvertidos, orientados para a vida interior, para o sono, para o pressentimento, para a fantasia, para o inconsciente coletivo. É esta última fase que os alquimistas chamam de Lua balsâmica porque é o fim de um ciclo vital, onde a experiência espiritual do homem deve se elevar como o incenso (bálsamo), lembrando os sacrifícios que devem ser feitos em nome do reino do espírito.