segunda-feira, 9 de setembro de 2019

O CÉU E O TEMPO - II

              
OS  QUATRO  ELEMENTOS
O doze é o número que simboliza o universo em toda a sua complexidade interna. Os quatro elementos (fogo, terra, ar e água) pelos três estados de cada um deles (impulso, estabilidade e transformação), as suas fases de evolução, culminação e involução. O doze é o número sagrado de todos os povos, sendo o número do realizado, do ciclo que se fecha involutivamente, mas cujo final deve ser considerado como o ponto de partida para um novo nascimento. 


O  DIA  E  A  NOITE ( M. CHAGALL , 1887 - 1985 )

O dia e a noite receberam, então, a divisão duodecimal, chamando-se hora (divisão de tempo) cada uma das divisões fixadas, segmento de tempo equivalente à vigésima quarta parte do tempo que o planeta leva para fazer um giro em torno si mesmo. Aos poucos, por razões de ordem prática, as distinções foram sendo feitas, hora sideral, hora solar verdadeira, hora solar média, hora astronômica, hora do meridiano de Greenwich. Cada civilização,
MOMENTOS  DO  DIA
contudo, foi estabelecendo os seus critérios, muito semelhantes, aliás. Os gregos antigos, por exemplo, inicialmente, designavam de maneira vaga os diferentes momentos do dia, falando primeiro da alvorada, depois referiam-se ao momento (hora) em que o mercado atingia o seu maior movimento (meio da manhã); o Sol a pino dava o meio-dia e assim por diante. A partir de meados do séc. V aC, os gregos possuíam dois aparelhos para medir o tempo, o quadrante solar ou gnômon, herdado do Oriente, e a clepsidra ou ampulheta de água, que indicava a duração do tempo pelo escoamento de uma certa quantidade de líquido.



OS  TEMPOS  DO  DIA  ( ALFONS MUCHA , 1860 - 1939 ) 

Todavia, por outras razões, como as religiosas, as horas foram recebendo outros nomes. O Cristianismo, desde os seus primeiros séculos, procurou dar ao tempo civil uma divisão eclesiástica, criando as chamadas horas canônicas. Terminando a primeira hora às sete da manhã, às nove horas teríamos a terça; ao meio-dia, a sexta; a noa ou nona às quinze horas; as vésperas às dezoito horas. Já a noite era dividida em quatro vigílias, das dezoito às seis horas do dia seguinte. 


DE "MORANGOS SILVESTRES"
( INGMAR  BERGMAN)
Ao homem primitivo bastava a distinção entre dia e noite, com as suas vinte e quatro horas. No correr dos séculos, porém, novas necessidades, apesar da vida simples. A fração do número doze, a hora, precisava ser também fracionada, pois fatos importantes ocorriam entre uma hora e outra. No início, era só repetir o processo, isto é, dividir a hora por doze (os cinco minutos dos nossos relógios). Mas a divisão mostrou-se insuficiente. Logo se chegou à divisão da hora por sessenta (5 x 12), o minuto, palavra que vem do particípio passado do verbo latino minuere, fazer em pedaços, esmigalhar. E do minuto passamos ao segundo, conforme o processo anterior, assim chamado por ser a segunda divisão sexagesimal. No latim medieval, o minuto era chamado de primus minutus e o segundo, de secundus minutus". E os números se fixaram: entre dois nascimentos do Sol, 24 horas, 1.440 minutos e 86.400 segundos. Por alguns milhares de anos esses números bastaram...

Se o dia é um produto solar, a semana é lunar. O homem sentiu necessidade de estabelecer medidas maiores que aquelas que se interpunham entre dois crepúsculos matutinos. A Lua sempre impressionou demais, tanto quanto o Sol, o homem pré-histórico. Ela não impunha ao ser humano tantos sofrimentos como o Sol. Ela não se afastava como ele, fazendo as longas viagens hibernais, flagelando-o e até matando-o muitas vezes de frio, nem tornava tudo seco como em alguns verões. A Lua participava da vida humana, era companheira e vigia dos que andavam pelas noites, pastores, marinheiros, vigias, viajantes. Assim como governava o movimento das marés, governava as marés internas (a vida emocional) do homem. A Lua, como o ser humano, crescia, tornava-se plena, minguava, desaparecia. Como o ser humano, também estava submetida à lei do devenir, tinha, como o ser humano, o seu período de decrepitude e a sua morte. Mas a morte da Lua era sempre seguida de um renascimento, seu desaparecimento nunca era definitivo. Quem sabe isto também fosse aplicável ao ser humano... Estes ritmos lunares, esta periodicidade sem fim, fazem da Lua a controladora de todos os planos cósmicos submetidos à lei do vir-a-ser cíclico: águas, chuva, vegetação, fertilidade. 


O SOL E A LUA
( GIORGIO DE CHIRICO , 1888 - 1978 )


ÉTER LUTA COM LEÃO
Não foi por acaso que os antigos gregos, depois da castração de Urano, quando Céu e Terra se separaram, consideraram a Lua como o mais importante marco divisório celeste. Acima da Lua, entre ela e Urano, o Céu, ficava o Éter (do verbo grego aíthein, queimar, arder, brilhar), camada superior do cosmos, o chamado céu dos deuses, de luz puríssima. Abaixo da Lua ficava o ar e tudo o que estava submetido à mudança, à transformação. Na Teogonia, poema de Hesíodo, Éter é filho de Nix, a Noite, e irmão de Hemera, o Dia.


CONCILIO DE NICEIA II
( ÍCONE )
Ao contar os dias entre cada fase lunar, para obter uma medida de tempo superior ao dia, chegou-se ao número sete, número que rege o tempo e o espaço, recebendo esse período o nome de septimana (sete manhãs). Com maior ou menor aproximação, todos os povos da antiguidade chegaram a esse número, egípcios, caldeus, persas, etc. A legalização da semana para o Ocidente acorreu somente no concílio de Niceia, em 325 de nossa era. 

As fases da Lua, no hemisfério norte, de um modo geral, nas várias tradições que as destacaram, sempre apareceram entendidas da seguinte maneira: a nova representando a infância. A Lua crescente foi usada para simbolizar a juventude, a adolescência, lembrando uma abertura indiscriminada para as coisas do mundo, correspondendo, por isso, ao tipo humano extrovertido. Já a Lua cheia foi relacionada com a maturidade enquanto a decrescente, o hemisfério à esquerda do astro iluminado,  simbolizou sempre o declínio da vida, representando tipo introvertido, voltado para a vida interior, para o sono, para o inconsciente coletivo. Esta última fase decrescente é chamada pelos alquimistas de Lua balsâmica já que, encerrando-se com ela um ciclo vital, o homem tende a se elevar espiritualmente assim como o incenso (bálsamo) dos sacrifícios buscam os céus.  Com relação à chamada Lua negra, período de alguns dias de invisibilidade lunar, ela sempre foi considerada como símbolo do inacessível, aparecendo associada a Lilith, “deusa do desejo absoluto” e/ou a Hécate, deusa infernal, atuando ela traiçoeiramente na profundeza da interioridade dos homens, simbolizando as forças psíquicas impossíveis de serem controladas pelo consciente. 

A tradição colocou os dias da semana sob a proteção dos astros. Ao maior, o Sol, a própria manifestação da divindade, coube o primeiro dia, o domingo, o dies solis ou dies dominicus, dia do Senhor no Cristianismo. À Lua coube o segundo dia; à Marte, o senhor da guerra, fiador dos destinos de Roma, coube o terceiro; Mercúrio, deus do comércio e do progresso, recebeu a tutela do quarto dia; o quinto dia, a de Júpiter; a Vênus e Saturno couberam, respectivamente, o sexto e o sétimo dias. Roma levou esta tradição a todos os pontos do mundo que foi conquistando. 

O mês, como a semana, vem da Lua. Os nossos ancestrais observaram que entre uma Lua nova e outra havia uma certa regularidade, transcorria um número  certo de dias. A rigor, o período era de 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 2 segundos. Dispensada a precisão, ficamos com o número redondo, alongado o
ASTRÔNOMOS  DA  BABILÔNIA 
período para trinta dias. O primeiro calendário (calendas, o primeiro dia do mês romano, dia em que as contas deveriam ser pagas; livro de contas) usado pelo homem é mesopotâmico, um calendário lunar, igualmente adotado por todas as culturas, inclusive pelos indígenas brasileiros, que mediam o tempo pela sucessão das lunações (lunação é tanto o período entre duas luas novas como a sucessão das fases lunares nesse período). 

Do mês lunar passamos ao ano (annus, círculo), período de doze lunações de trinta dias cada uma, ou o tempo médio entre uma primavera e outra. Estudos posteriores, entretanto, revelaram que um cálculo mais exato para o ano seria feito pelo ciclo solar, a passagem do Sol duas vezes seguidas por uma estrela fixa. Comparadas as duas maneiras de calcular o ano, chegou-se à conclusão que, pelas lunações, havia uma duração, para menos, de onze dias. Os antigos sacerdotes-astrônomos da Babilônia se decidiram pelo entendimento de que o Sol era melhor que a Lua para dividir certos períodos de tempo. A Lua era feminina, sofria "atrasos"...


AS  ESTAÇÕES  DO  ANO ( ALFONS  MUCHA , 1860 - 1939 )

Foram os egípcios os primeiros a medir o ano com razoável exatidão, fixando-o em 365 dias. Mesmo assim ficaram de fora alguns números, mais exatamente 5 horas, 48 minutos e 46,7 segundos. O povo e os verdadeiramente sábios nunca ligaram muito para este detalhe. Contudo, no correr dos séculos, a entrada das estações começou a não corresponder ao calendário, pois havia
SOSÍGENES  DE  ALEXANDRIA
um atraso de um quarto de dia, de seis horas a cada ano. Os romanos, práticos como sempre, fizeram o acerto. Quem o determinou foi Júlio Cesar; chamou à Roma o astrônomo Sosígenes de Alexandria que, com uma equipe de especialistas, corrigiu os cálculos. Os gregos (Aristarco e Hiparco), saliente-se, já haviam feito as contas antes e apontado os erros. Só no ano de 1900, contudo, os números chegariam a uma aceitável exatidão.

Para a sua atividade voltada para a vida material, cultural e espiritual, o homem foi criando outros anos. Ano anomalístico, ano bissexto, ano civil, ano climatérico ou ano decretório, ano comercial, ano fiscal, ano galáctico, ano sabático, etc... Dos anos passamos aos decênios ou décadas, aos quartéis, aos séculos e aos milênios.

HENRI  BERGSON
Na história das religiões, um dos capítulos mais interessantes é aquele em que distinções são estabelecidas entre o tempo profano e o tempo sagrado, o tempo mágico-religioso. Evidentemente, esta distinção decorre da maneira pela qual o tempo é experimentado. O tempo profano, identificado como duração, só encontraria na Filosofia sua discussão definitiva na obra do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Para o filósofo, a "duração real" (expressão dele) é realidade feita de experiência. Diz Bergson: A pura duração é a forma que toma a sucessão de nossos estados de consciência quando nosso eu se deixa viver, quando ele se abstém de estabelecer uma separação entre o estado presente e os estados anteriores. Prosseguindo, afirma que durar é mudar, pois um eu que não muda não dura. Mais adiante: Não haverá senão o presente, não o prolongamento do passado no momento atual, nada de evolução, nada de duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o  vir-a-ser e que dele se intumesce ao avançar. O tempo, para Bergson, é algo que se sente a partir de "dentro". É por este
NORBERT  ELIAS
caminho que seguem pensadores modernos como Norbert Elias (1897-1990), um dos grandes estudiosos do tema. Diz Elias que o tempo não existe em si, que não é um dado objetivo como queria Newton, nem uma estrutura a priori do espírito como queria Kant. O tempo é, antes de tudo, para ele, um símbolo social, resultado de um longo processo de aprendizagem, acabando por se tornar a consciência que dele tem homem uma segunda natureza.

A esta altura, como que abrindo um parêntese no nosso tema, é interessante lembrar, sob o ponto de vista filosófico, algumas intervenções modernas sobre o tempo. Uma delas nos leva para a questão do tempo como medida da duração. Tempo e duração não são a mesma coisa. Uma coisa é o tempo como intervalo objetivo, medido por relógios; outra é o tempo vivido como duração. A duração, desde Bergson, é uma noção que se opõe naturalmente à do tempo objetivo. A duração é a experiência viva, concreta, do tempo. O tempo medido, o chamado tempo matemático, é abstrato. Já a duração é uma “realidade” subjetiva, psicológica. Ou seja, uma hora na cadeira de um dentista é muito diferente de uma hora passada numa reunião, a conversar com “amigos do coração”. Ou, ainda: uma hora pode ser “longa” ou “curta”, apesar de, objetivamente, uma hora ser sempre uma hora, sessenta minutos, quer a vivamos aborrecida ou alegremente. 

Ainda dentro deste desvio momentâneo do nosso tema, será também oportuno mencionar a noção de temporalidade que os filósofos da Fenomenologia e do Existencialismo chamaram de “consciência do tempo”. Esta noção decorre das características da atividade em que nos empenhamos, quer estejamos trabalhando, enfrentando as oito horas regulamentares de nossa jornada de trabalho, quer estejamos a participar de alguma atividade esportiva, assistindo a um filme ou metidos numa assembleia sindical para
EDMUND  HUSSERL
discussão de problemas salariais etc. A noção de temporalidade (característica do que é temporal) poderá não ser a mesma para um mesmo intervalo de tempo considerado. Esta noção, desenvolvida principalmente por Husserl, se aproxima da de duração, acima exposta. A noção de duração, ao que nos parece, é “sentida” mais passivamente. Já a noção proposta por Husserl se liga principalmente a uma atividade humana, exigindo, segundo nosso entendimento, um nível de consciência superior.  

Voltando ao nosso tema, é claro que as noções de tempo para as sociedades arcaicas e modernas diferem. O tempo profano, historicamente, precede e se segue ao tempo sagrado. O sagrado é um tempo de celebrações, um tempo mítico, que é vivido diferentemente do profano. Uma de suas principais características é que ele leva à repetição de atos de modo a atualizar arquétipos míticos, como, por exemplo, certas hierofanias lunares, comemoradas periodicamente. Neste sentido, o tempo sagrado é supra ou trans-histórico. O tempo sagrado propõe uma nova dimensão à vida humana. O significado metafísico-religioso das festas da Primavera é um exemplo. Temos nelas a ideia de renovação da vida, não apenas um fenômeno natural, mensurável, datável. Além disso, a periodicidade do tempo sagrado quer dizer a possibilidade de uma volta permanente ao ato ritual, de modo a inscrevê-lo num eterno presente, o que implica sempre uma diacronia e uma sincronia. Três grandes características no tempo sagrado, pois: periodicidade, repetição e eterno presente, ou seja, a duração transformada em eternidade. A cada ano, uma nova cosmogonia e, num outro plano, a ela semelhante, uma nova proposta para o nosso processo de individuação, seu equivalente. 



FESTA DA PRIMAVERA (SIR  LAWRENCE ALMA-TADEMA, 1936-1912)

O tempo sempre se constituiu numa das categorias fundamentais da psicologia do homem e num item fundamental da cultura humana. Lembremos que Buda recomendava a seus discípulos que nunca se ativessem ao tempo e ao espaço, já que a proposta básica do seu ensinamento era a da permanência num eterno presente, através da extinção completa das paixões. Foi pela observação dos astros (tempo profano) que o homem procurou inicialmente "controlar" o tempo, organizando-o para viver melhor. Ao considerar mais atentamente o movimento dos astros, percebeu que tal movimento implicava uma concepção cíclica do tempo que voltava continuamente, um eterno retorno. Esse tempo cíclico que decorria da trajetória uniforme de elementos móveis, os astros, era a própria imagem da eternidade, invariável, mas sempre idêntica a si mesma. Um tempo diferente daquele que o homem usava nas experiências da sua vida cotidiana, tempo este que "decorria" entre as duas margens, o nascimento e a morte. Na expressão de Aristóteles: O tempo é a expressão numérica do movimento.


O  ENIGMA  DAS  HORAS (G. DE CHIRICO,1888-1978)

O tempo mágico-religioso, sagrado, sempre se revela através de ações rituais, procedimentos, um conjunto de cerimônias e de regras praticadas e observadas por grupos ou seitas com o objetivo de assegurar o controle das forças naturais em ação ou orientar uma força oculta no sentido de uma ação determinada. Um dos grandes elementos do tempo sagrado é, sem dúvida, a memória. A ação ritual é uma espécie de recuo no tempo e uma atualização do passado, indo, pois, esta ação, na direção contrária da temporalidade existencial. Ao se inserir no tempo sagrado, o homem recorda e, ao mesmo, continua na sua projeção em direção do futuro, não parando de fluir. Este enfoque permite-nos considerar que as ações rituais (tempo sagrado), as festividades que se celebram, têm o objetivo de evitar que o passado, naquilo em que ele é mais importante, desapareça. Ao mesmo tempo, quem sabe, uma tentativa de escapar do futuro, vivendo num eterno presente. Assim o fazendo, o homem se liga a um tempo primordial, o tempo das origens, prolongado, justificando-se os possíveis excessos e descontroles cometidos nas festividades. 

As ações rituais em tais ocasiões permitem a transgressão, controlando-a de certa maneira. Exemplo particularmente ilustrativo deste fenômeno são as festas do deus Dioniso, que deram origem ao teatro ou a sua participação nos Mistérios de Elêusis. A finalidade destas festas, de forte caráter transgressivo, trazendo muitas vezes propostas de subversão social e/ou sexual, não era tanto a oposição ao presente, mas, sim, a sua regeneração pela inoculação, no presente, do tempo mítico primordial. As ações rituais com seus excessos acabam funcionando como uma espécie de phármakon contra o esquecimento e a morte. 

Estas festas se realizam assim num tempo sagrado, uma espécie de parênteses no cotidiano, possibilitando que o homem restaure o seu passado sem deixar de caminhar em direção do seu futuro. Daí, a ausência do sentimento de culpa, pois nessas festas repetem-se ritualmente comportamentos e atos primordiais de deuses e heróis, mas, nem por isso, a repetição fará daqueles que no processo se envolvem deuses ou heróis. Sem abandonar a sua condição presente, o homem reencontrará, apenas momentaneamente, as energias dos tempo originais. 


PESSACH ( MARC CHAGALL, 1887-1985 )
Como exemplo do que acima está lembremos as Saturnálias romanas, que se realizavam no solstício de Inverno, na Roma antiga, com a finalidade de restaurar, por uma semana, a idade áurea, em que o deus reinou. Já entre os judeus, o exemplo do Pessach mostra como um ritual sacrificial arcaico e sazonal se transformou numa instituição perpétua, ao tomar por base um fato histórico, a saída dos judeus do Egito. Outro exemplo, ligado ao Pessach, pode ser encontrado na festa dos ázimos, que se seguia à noite pascal, no mês das espigas. Era uma festa de natureza agrícola, que durava sete dias. O pão será comido sem fermento para que todos continuassem a se lembrar do período em que saíram do Egito. Se alguém comesse pão fermentado nesse período, a punição era clara, conforme está no Êxodo: quer se trate de estrangeiro, quer se trate de natural do país, expulsão da comunidade de Israel. Era o "pão da aflição", que trazia para o presente, a cada festa, a lembrança  da saída apressada do Egito.

O Cristianismo, numa outra ilustração, propõe que o homem pratique o modelo divino através da imitatio dei, a imitação de Jesus Cristo, uma repetição dos principais atos de sua vida. É o tempo litúrgico (função em serviço público, depois procedimentos religiosos), que permitirá tanto a lembrança da vida de Cristo (nascimento, epifania, ensinamento, paixão, morte, ressurreição e ascensão) como uma antecipação do que virá. O acontecimento divino é "distribuído" no tempo profano. O Natal, lembremos, é celebrado como o nascimento de um tempo novo, tendo sido fixada a data de sua comemoração no solstício de Inverno, ao contrário de tradições orientais e mediterrâneas que, com muito maior propriedade e lógica, festejavam o início  do tempo novo no equinócio da Primavera. Assim, o tempo litúrgico atualiza acontecimentos do passado, sendo ele considerado não só como lembrança (mneme) mas também como ação (imitatio dei), já que por esses dois aspectos o fiel introduz na sua existência o modelo divino.

Na Roma antiga, lembre-se, um dos deuses mais homenageados era Saturno, o deus da famosa idade de ouro, um antigo estado paradisíaco, mítico, que os romanos tinham vivido em tempos remotíssimos. As festas inicialmente duravam um dia, chegando mais tarde a durar uma semana, de 17 a 23 de dezembro. Nessas festas, celebrava-se um período de abundância, de paz, de liberdade, de fraternidade. Com essas festas, os romanos procuravam também obter as graças do deus para a atividade agrícola. Nessas festas, a cidade parava. Os poderes públicos deixavam de funcionar, o senado, os tribunais, ninguém trabalhava. Os condenados à morte podiam em alguns casos escapar, sendo soltos, penas eram comutadas. Os jogos de azar, proibidos, eram liberados. Nesses dias, criava-se algo parecido com um paraíso de natureza terrestre, material, esqueciam-se momentaneamente os sofrimentos.Escravos e senhores trocavam de papéis. Os escravos eram servidos pelos patrões, estes até muito insultados por aqueles, que lhes lembravam as suas torpezas e vícios. A semana era de orgias, quebravam-se resistências e a hierarquia.


MITRA
O Cristianismo, como religião vencedora em Roma, aproveitou o período das Saturnais ou Saturnálias para nele celebrar o Natal, fixando num de seus dias a data de nascimento de Cristo. Os romanos também celebravam à mesma época uma festa que haviam importado da antiga Pérsia em honra do deus Mitra, à qual deram o nome de Sol Invictus. Esta festa era celebrada no dia 25 de dezembro, dia em que se celebrava o solstício de inverno, o renascimento do Sol (Sol Natalis). Este culto foi introduzido em Roma, alguns séculos antes de Cristo, passando depois às regiões dominadas pelos romanos, em todo o baixo Mediterrâneo.