sábado, 30 de novembro de 2019

DOS PECADOS - A AVAREZA - I

                        
O  FINANCISTA  E  SUA  MULHER
( MARINUS  VAN  REYMERSWALE , C. 1490 - C. 1567 )

Avareza é a qualidade ou a característica de quem é avarento, de quem tem apego excessivo e ignóbil ao dinheiro. Mesquinharia, sovinice. Desejo incontrolável de haveres. Avarento é o obcecado por adquirir e acumular dinheiro e bens. Popularmente, no Brasil, o avarento é também chamado de agarrado, agiota, arrepanhado, avaro, ávido, cainho, forreta, canguinhas, casca, cobiçoso, come-em-vão, mão-de-vaca, mão-de-paca, miserável, munheca-de-samambaia, pão-duro, pica-fumo, unha-de-fome, usurário, morto-de-fome, fominha. 

Na literatura folclórica brasileira e portuguesa, encontramos muitos ditados, anexins, sentenças e adágios sobre a avareza. Eis alguns: 

É melhor levar por engano do que deixar por esquecimento. 
Godero disse que eu goderasse, comesse o dos outros e o meu guardasse.
De grão em grão, a galinha enche o papo.
O olho do dono engorda o porco.
O seguro morreu de velho e o prudente foi ao enterro.
A cavalo dado não se olha o dente.
De grão em grão enche a galinha o serrão.
Quem não tem dinheiro não beija santo.
Bago a bago, enche a galinha o papo.
Orvalho não enche poço.
Do mal guardado, come o gato.
Podre de rico.
Cão e gato comem o mal guardado.
Barriga vazia não dá alegria. .
Come do teu que o meu tem veneno.
Defunto sem ouro, defunto sem choro.
Quem dá o que tem, a pedir vem.
Quem dá aos pobres, empresta a Deus.
Na cama que farás nela te deitarás.
De moeda em moeda se faz uma fortuna.
Bago a bago, enche a galinha o papo.
Do mal guardado, come o gato.
Barriga vazia não dá alegria.
O bocado parece sempre maior em mãos alheias
Amizade de genro, Sol de inverno.
Cada homem estenda a coberta até onde tem a coberta.
Faze-te de morto, deixar-te-á o touro.
Partamos como irmãos: o meu, meu e o teu de ambos.
O que parte e reparte e não fica com a melhor ou é tolo ou não entende da arte.
Ao avaro tanto lhe falta o que tem como o que não tem.
Obra do comum, obra de nenhum.
O dinheiro é um bom servo, mas um péssimo senhor.


Os antigos gregos chamavam a avareza pelo nome de philargyria, etimologicamente amizade à prata, esta no sentido de dinheiro. Possuíam também a palavra pleonexia, com o sentido de ganância, insaciabilidade, cobiça. Esta última palavra como verbo traduzia uma ideia de obter vantagens dolosamente, enganar. Pleonexetes era o guloso, no sentido de alguém que vivia só pensando em dinheiro, procurando oportunidades para ganhá-lo de qualquer maneira, inclusive através do suborno.  Estas palavras pertencem ao universo semântico de philotimia, ambição, ligada à palavra philotimos, amante das honrarias, ambicioso, onde timé (timós) quer dizer honra.


SÃO  PAULO
No cristianismo nascente, São Paulo esclarece que a avareza atua como um grande vício que toma conta dos que não têm Deus no coração. Identifica esse sentimento com a idolatria, que aparece associada a Mammon, uma das formas do Diabo que tutela tal sentimento, sempre cultuado por aqueles que transformam a palavra de Deus numa mercadoria, numa commodity, como dizemos hoje. 

MAMMON  ( COLLIN  DE  PLACY , 1793 - 1887 )
Mammon, antes de aparecer como uma expressão diabólica era uma palavra do antigo hebreu que significava dinheiro e bens materiais. Na forma de uma entidade diabólica antropomorfizada, sempre com um saco de dinheiro nas mãos, como um dos príncipes do Inferno, assume o aspecto de um “comprador” de almas, das quais se apossa subornando sempre os seus donos. No Evangelho de Lucas, encontramos a afirmação de que não é possível servir simultaneamente a Deus e a Mammon.

Nos primeiros tempos do cristianismo, intimamente ligada à avareza apareceu a prática da simonia, a compra ou venda a preços temporais, de coisas espirituais, com a finalidade da obtenção de enriquecimento daqueles que a praticavam. A figura central da simonia é Simão, o Mago, mencionado no Novo Testamento (Actos VIII), que enfeitiçava o povo de Samaria como um rival de Cristo, tentando convencê-los de que possuía poderes divinos. Simão havia inclusive, para tornar ainda mais eficaz o seu discurso, tentado comprar dos apóstolos Pedro e João o poder de fazer baixar o Espírito Santo com a imposição das mãos.

SIMÃO
O que se conhece realmente sobre este  caso é que Simão dizia ter aprendido a arte de fazer milagres com Dositheus, que se auto-proclamava como o Messias. Simão fora aluno de Dositheus, obtendo dele muitas informações sobre ocultismo, tornando-se um erudito no campo da taumaturgia. Repelido pelos apóstolos, Simão começou a peregrinar, declarando-se com uma manifestação divina na forma de um Esplendor de Deus. Era acompanhado nas suas peregrinações por uma escrava grega de nome Helena, por ele considerada simplesmente como um reflexo seu. 

Alguns historiadores nos informam que, chegando a Roma, Simão se apresentou ao imperador Nero, que acabou por ordenar a sua decapitação. Milagrosamente, afirmam, a cabeça de Simão voltou a se fixar em seu corpo, restaurando-se a sua integridade física. Desde então Simão foi nomeado por Nero como feiticeiro-mor da corte real. Lendas diversas nos contam que o apóstolo Pedro, muito preocupado com a disseminação das ideias de Simão em Roma, para lá se dirigiu a fim de enfrentá-lo. Ao tomar conhecimento desse fato, Nero, para seu divertimento, convocou os dois, Simão e Pedro, à sua presença para que iniciassem uma disputa taumatúrgica, vencida por Pedro, vindo Simão a falecer em consequência da sua derrota. 

O que ficou dessa história de Simão, o Mago, é que, embora ele tenha morrido, a seita por ele criada em Roma, assumida por seus discípulos, continuou funcionando, com a promessa de imortalidade do corpo e da alma para os seus adeptos. Sabe-se mais que até meados do século XIX na França e nos USA ainda eram encontrados pequenos grupos que seguiam abertamente os ensinamentos de Simão de Samaria nos referidos países. 


SANTO  TOMÁS
(G. DA FABRIANO, 1370-1427)
Santo Tomás de Aquino, ao discorrer sobre a avareza, avaritia, em latim, aproxima-a de aviditas, avidez, desejo ardente, e da palavra grega philargyria, amor à prata, esta no sentido de dinheiro. Ampliando o sentido da avidez, liga-a a uma desordenada cobiça de bens. Santo Agostinho fala dela tanto como um sentimento que leva alguém a desejar mais que o devido (avareza geral) como a desejar, amar, o dinheiro (avareza específica).Em qualquer hipótese, sempre considerada um desordenado afã de ter qualquer coisa qualquer, a avareza se opõe à generosidade (liberalitas).

Os primeiros padres da Igreja davam à avareza sete filhas: a traição, a fraude, a mentira, o perjúrio, a inquietude, a violência e a dureza do coração. Pelo excesso de apego que provoca, a avareza endurece o coração, opondo-se à misericórdia. Misericórdia é compaixão, piedade, palavra que vem do latim, miser, miserável, e cors, cordis, coração, ou seja, coração movido pela compaixão despertada pela visão da miséria.

MEU !
O avarento é um ser profundamente inquieto, vive na preocupação e no cuidado com relação ao que tem, sempre inquieto. Ele costuma, em muitos casos, recorrer tanto à violência como à mentira, quando não ao perjúrio, para obter o que deseja, este último acompanhado, via de regra, de traição (enganar amigos, por exemplo) e fraude. 

Um dos grandes exemplos bíblicos do que temos aqui é o de Judas Iscariotes, que fazia parte do grupo dos sicários (sica, em latim, é pequeno punhal), que, com os zelotes (zelosos), lutavam pela independência de Israel do jugo romano, que os considerava como bandidos, assaltantes. Iscariotes passou à história como o homem do punhal, o mentiroso, o falso, que atacou Cristo traiçoeiramente, no acaso, por trinta moedas de prata. É por essa razão que na
LUCAS  ( VITRAL )
Ultima Ceia, pintada por Leonardo da Vinci, Judas Iscariotes aparece associado ao signo de Touro, relacionado sempre com dinheiro. O mesmo se diga com relação a Lucas, outro relacionado com o signo astrológico de Touro, que fala muito sobre a avareza no seu evangelho. Citando Cristo, Lucas nos diz: acautelai-vos e guardai-vos da avareza porque a vida de qualquer (pessoa) não consiste na abundância do que possui. 

Trazendo o assunto mais para perto de nós, eis um trecho de um grande romance da literatura universal, Eugénie Grandet, no qual o pecado da avareza aparece com destaque, escrito pelo taurino Honoré de Balzac (1799-1850): 

EUGÉNIE GRANDET,
DE H. DE BALZAC
M. Grandet nunca comprava carne nem pão. Seus arrendatários lhe traziam toda semana uma provisão suficiente de capões, frangos, ovos, manteiga e trigo. Ele possuía um moinho cujo locatário devia, além de pagar o aluguel, pegar uma certa quantidade de trigo e lhe trazer o farelo e a farinha. A grande Nanon, sua única empregada, fazia ela mesma, todos os sábados, o pão da casa. M. Grandet havia combinado com os hortelões, seus locatários, para que eles lhe fornecessem legumes. Quanto às frutas, ele apanhava uma tal quantidade que mandava vender uma grande parte no mercado. Sua lenha para o aquecimento era cortada nas sebes ou apanhada nos velhos arbustos da beira de seus campos, e seus arrendatários a levavam para ele, já toda cortada, arrumavam-na por delicadeza no depósito e recebiam seus agradecimentos. Suas únicas despesas sabidas eram o pão bento, a roupa de sua mulher, a de sua filha e o pagamento de suas cadeiras na igreja; a luz, o ordenado da grande Nanon, o conserto de suas panelas; o pagamento dos impostos, os consertos de seus prédios e as despesas que tinha com seus negócios. Possuía muitos bosques, recentemente comprados, guardados pelo guarda de um vizinho, a quem prometia algum pagamento. Só depois desta aquisição, ele passou a comer caça.


MOLIÈRE
De Jean-Baptiste Poquelin, apelidado Molière (1622-1673), um dos maiores gênios do teatro de todos os tempos, aqui vai um trecho de O Avarento (L´Avare) uma de suas grandes comédias:

Harpagão (vindo a gritar desde o quintal até entrar em cena, com as feições desconcertadas, e no auge do terror):


HARPAGÃO

Ladrões! Ladrões! Assassinos! Bandidos!
Querem-me assassinar. Mataram-me. Acabei.
Justiça, Deus do céu! Oh, vocês da ronda! Oh, guardas!
Estou perdido e morto. Cortaram-me a garganta,
Roubaram-me o sangue, os dez mil cruzados.
Quem seria? Quem foi? Onde se esconde?
Que fazer para encontrá-lo? Aonde ir? Aonde não ir?
Não está lá? Nem aqui? Quem é? Pare!
Devolva-me meu dinheiro! Malandro!...
Ah! Sou eu. Estou perturbado e ignoro onde estou, quem sou, o que faço.
Que pena! Meu pobre dinheiro, meu pobre dinheiro, meu amigo, privaram-me de ti!
E, desde que te roubaram, perdi meu apoio, meu consolo, minha alegria;
Tudo acabou para mim, e não tenho mais o que fazer no mundo!
Sem ti é impossível viver.
Pronto, não posso mais, morro, estou enterrado!
Não há ninguém que queira me ressuscitar 
Devolvendo-me meu querido dinheiro, ou delatando quem o pegou?
Ah! O que dizem? Não é ninguém.
É preciso, seja quem for, que o desmascarem com muito cuidado;
E escolheram justamente o momento em que falava a meu filho traidor.
Vamos. Quero buscar justiça e torturar todos desta casa:
Servos, empregados, filho, filha, e também eu. 
Quanta gente reunida!
Não lanço olhares a ninguém sem desconfiar, e achando que é o ladrão
Ei! Do que estão falando aí? Do ladrão?
Que barulho é este? Será que meu ladrão está aí?
Por favor, se souberem algo de meu ladrão, suplico que me digam.
Será que ele está escondido entre vocês?
Todos me olham e põem-se a rir.
Vocês verão que eles participaram com certeza do roubo.
Vamos, depressa, comissários, guardas, arqueiros, juízes, carrascos!
Quero enforcar todo o mundo;
E, se não encontrar meu dinheiro, me enforcarei depois!