quinta-feira, 14 de maio de 2020

PRIMATAS, HOMENS E VÍRUS



RAYMOND DART
Há diversas teorias sobre as mudanças que, através de estágios intermediários, foram causando a transformação de primatas em seres humanos. Alimentada tanto por descobertas arqueológicas (fósseis) como pelo desenvolvimento de estudos sobre o comportamento de animais (símios), uma dessas teorias, confirmada por outras, a do antropólogo australiano Raymond Dart, 1893-1957, tornou bastante aceitável a ideia  de que o homem teria se espalhado pelo mundo a partir da África. 

Em 1924, Dart, com base em suas pesquisas e estudos, deu o nome de australopithecus africanus ao primata que, ao longo dos referidos estágios, fora assumindo a posição ereta. Outra questão levantada por Dart foi a de que essa posição, muito adotada por chipanzés, era a melhor para confrontos, tanto  entre eles como entre os seres que deles descenderam, os do gênero Homo.


STANLEY KUBRICK, 1929-1999
Em 1961, Stanley Kubrick baseou-se em afirmações de Dart, algumas postas em circulação por Robert Ardrey, em seu livro African Genesis (A Personal Investigation into the Animal Origins and Nature of Man), para nos dar uma das mais famosas

cenas do cinema no seu fantástico filme 2.001: Uma Odisseia no Espaço. Nesse livro, Ardrey partindo das afirmações de Dart, punha ao alcance do grande público informações como as de que o homem viera do continente africano e que descendia de ancestrais predadores carnívoros que usavam armas, na origem macacos (chipanzés).  

Estudos referentes ao comportamento dos chipanzés, que se fizeram depois, confirmaram o que Dart estabelecera, o que Ardrey divulgara e o que Kubrick nos mostrou em seu grande filme. Muito utilizada também por Kubrick, em entrevistas, uma frase de Dart: nascemos de macacos que se ergueram (homo erectus), fortemente armados, e não de anjos caídos. 



Em termos cronológicos, registre-se que entre, provavelmente, quatro milhões de anos e cinquenta mil anos atrás tivemos, numa sucessão de estágios, o homo erectus (ereto), a seguir, dentre outros, o homo ergaster (trabalhador), o homo habilis (hábil) e o homo sapiens (sábio), este o nosso ancestral mais direto. Como ser racional, o homo sapiens, depois homo sapiens sapiens, foi adquirindo e desenvolvendo ao longo desses milhares de anos, através de muitos confrontos, faculdades de se comunicar por gestos e por sons, de entender suas relações, o que lhe permitiu perceber, enfim, o que lhe acontecia e o que era capaz de fazer. Tudo isto lhe possibilitou que não só pensasse de modo mais complexo, captando mais informações, como pudesse se haver com ideias de reflexão e de comparação, adquirindo a capacidade de prever e de imaginar. Em termos de um número, quanto ao desenvolvimento mental, lembre-se que a transformação do primata em ser humano significou a  passagem de um cérebro de 10 bilhões de neurônios para um de 30 bilhões de neurônios. 
  
Os acontecimentos que mais de perto afetavam os primatas e seus primeiros descendentes eram, apesar da racionalidade conquistada, acontecimentos decorrentes de suas ações, o que eles produziam
 quando se relacionavam com os outros seres e com o meio ambiente, de onde retiravam a sua subsistência. Ou seja, principalmente as conseqüências de suas lutas por abrigo, segurança, comida e o seu esforço constante quanto à fabricação de instrumentos e utensílios, além, naturalmente, do domínio das artes ligadas ao fogo.


ADÃO 
A palavra homem, hominem (anthropos, em grego), veio para nós do latim e, segundo muitos estudiosos, tem dentro dela o tema humus (terra, chão, barro, limo, cobertura que reveste o solo sem elevação). No antigo hebraico, cunhou-se a palavra Adamah (Adão), para designar esse homem, como animal feito de terra, nome levado à Bíblia pelos escritores judeus. Ao lado direito, escultura de Adão, de Pierre Montreuil, 1200-1266, hoje no Musée de Cluny, Paris  

A família dos hominídeos é uma família de mamíferos que compreende hoje uma só espécie, o homem. A sub-espécie do homo sapiens, designada pelo nome de homo neandertalensis, desapareceu por volta de 30.000 aC., conforme nos informa a ciência. Outros estudiosos, por sua vez, lembre-se, por influência religiosa, admitem que a palavra homem teria dentro dela, do grego, homoios, que quer dizer semelhante, semelhante a Deus, no caso. 

Segundo estudos mais ou menos assentados hoje, o homo erectus apareceu primeiramente no continente africano, lá vivendo um longo período, até 150 mil anos atrás. Alimentava-se de vegetais (folhas, frutos e raízes) e animais, usava o fogo, ferramentas e armas, e foi considerado como o primeiro ser a emigrar de lá para outras regiões do nosso planeta, confirmadas assim as especulações de Dart.



À medida que saiu da África, o homo sapiens caminhou pelo mundo, aprendendo, desde esses tempos tão remotos, que para viver melhor, mais equilibradamente, com o ambiente e com os outros seres, precisava se manter dentro de certos limites para evitar tanto agressões de seus semelhantes ou de animais como aquelas  provenientes do meio ambiente (pestes, secas, inundações etc.), de onde retirava a sua subsistência, reações (agressões) que ele, na maior parte das vezes, provocava por suas descontroladas ações, sob pretextos diversos. 


Como a história do homem nos revela, porém, o ser humano, descendente dos macacos armados a que se refere Dart, a não ser em breves momentos, jamais conseguiu adotar um comportamento que traduzisse ideias de limites, de harmonia e de solidariedade. Ao contrário, para resolver seus problemas, sempre optou por guerras, genocídios, revoluções, crimes, pela avidez por símbolos de poder e depois pelo ouro, pela violência, em que pese (só para ficarmos com o período entre as origens da civilização ocidental aos nossos dias, isto é dos antigos gregos para cá), em que pese, dizia, o palavrório de muitas doutrinas políticas, religiosas e filosóficas, patrocinadas muitas delas por elites do poder político-religioso (depois econômicas), um palavrório no geral hipócrita e enganador, sempre voltado para a exploração da ignorância e da credulidade das massas.  
  
Particular interesse para nós hoje têm os dois tópicos que decorrem do exposto acima: crescimento descontrolado da população em determinadas áreas e pelas agressões humanas ao meio ambiente. Desde os recuados tempos do homo erectus temos notícias de que desequilíbrios populacionais já eram registrados, neles se incluindo ações conflituosas provocadas, principalmente, pela busca de alimentos, de abrigo, de recursos naturais etc. 

É sabido que o aumento populacional e a disponibilidade de recursos sempre se constituíram num sério problema para essas antigas populações. Ao interagirem com o meio ambiente, esses grupos humanos, no decorrer de séculos e séculos, principalmente os mais ativamente predadores e aguerridos, evidentemente, acabaram por produzir sérios desequilíbrios demográficos, danos e catástrofes no mundo natural, como a história do homem nos conta.
Um dos registros mais interessantes de como o homem sempre se incomodou com excessos demográficos foi conservado, por exemplo, pela mitologia grega. Refiro-me à passagem em que se narra como tais excessos incomodavam muito os gregos.  Trata-se de uma pouco conhecida versão mítica, conservada por poetas,
TROIA
sobre a origem da guerra de Troia, no fundo um conflito entre a Europa (gregos micênicos) e a Ásia Menor (troianos). Conta-nos essa versão que Geia, a Grande Mãe-Terra, muito ressentida com a baderna (conflitos, invasões, excessos populacionais, deslocamentos etc.) que as populações gregas e troianas provocavam com os seus descontroles no  Mar Egeu (Mediterrâneo oriental), pediu que Zeus, o Senhor dos deuses e dos homens, pusesse um fim a isso através de uma guerra, por ele arranjada, que a ambos dizimasse.


É preciso lembrar que foi só a partir da segunda metade do nosso século XIX, através de estudos vários, que começaram a ser abandonadas as “explicações” religiosas e as bobagens “científicas” (terra plana etc) sobre a origem do homem e sua evolução. O atual criacionismo, por exemplo, um rebento dessas “explicações”, ainda é defendido por muitas pessoas em muitos países, inclusive em posições técnicas e matéria de ensino, como no Brasil. 

CHARLES DARWIN
Para entender melhor o tema que abordamos, dentre muitos nomes a destacar, quatro devem ser retidos. Quanto à origem das espécies e sua transformação, o principal nome a registrar é o de Charles Darwin (1809-1882). Claude Bernard (1813-1878) nos deu as bases da fisiologia moderna. Louis Pasteur (1822-1895) nos
LOUIS  PASTEUR
revelou a existência dos micróbios e dos vírus, o que permitiu que se fixassem os princípios da vacinoterapia e da soroterapia. Gregor Mandel (1822-1884) criou a Genética, falando-nos da hereditariedade e do que representavam as partículas que receberam o nome de genes, bases, no ser humano, de caracteres transmissíveis.


CLAUDE  BERNARD
A estes quatro nomes temos que juntar outro, sempre lembrado, principalmente por governos de tendências fascistas, que defenderam posições estapafúrdias quanto ao que está acima. Para que nossas opiniões se fixem melhor, importante citá-lo, pois seu nome vem sendo muito lembrado. Falamos de Thomas Malthus (1766-1834). Com seu Ensaio Geral sobre a População, deixou para nós ideias,

postas em prática, até hoje, como se disse, por muitos governos de tendências fascistas, ideias de que entre os dispositivos mais eficazes para controle demográfico temos, como recurso, as pestes, a fome e as guerras, sempre “ótimos” meios para acabar com excessos demográficos. A estes dispositivos se acrescentariam, dentre outros meios, a castidade antes do casamento e/ou o seu retardamento, a adoção de métodos contraceptivos, composição familiar de acordo com as possibilidades financeiras dos casais etc. 


Se as intervenções malthusianas acima apontadas podem ser estabelecidas por políticas públicas e combatidas, já a outra face do problema nos parece mais dramática. Refiro-me às reações do mundo natural aos descontroles causados pelo próprio homem, sobretudo àqueles que são “vendidos” ao grande público como progresso, conquistas materiais etc. Um exemplo do que citamos aqui é o da deletéria presença de plásticos (plastikos em grego quer dizer flexível), cuja matéria prima é o petróleo, no mundo todo hoje. Não foi preciso muito tempo para se constatar que as vantagens que os plásticos podiam proporcionar eram muito poucas diante dos males por eles causados ao mundo natural e à saúde humana. Sabemos hoje que, pelo continuado uso do plástico pelos seres humanos (quase um século), em todo o mundo, conforme vários estudos de organismos internacionais o comprovam, micro-partículas desse produto já vêm há muito atingindo o intestino, o fígado, a corrente sanguínea e o sistema linfático do ser humano. 

Quanto às reações do mundo natural, a Mãe-Terra dos antigos gregos, não podemos esquecer que a natureza nos faz pagar caríssimo pelas agressões que lhe são feitas. Já se disse que “ela não esquece nem perdoa”, que cedo ou tarde ela revida, tanto levando-nos a guerras, revoluções, à miséria e muito mais, como espalhando violentas doenças contagiosas por agentes que cria, como a que temos hoje nestes tempos de coronavírus.

Estas reações do mundo natural, diante das nefastas e desastrosas intervenções do homem, são, no geral, incubadas às vezes ao longo de muito tempo,  provenientes de inúmeras e continuadas agressões que a ele são feitas. Herdamos da antiga medicina grega os nomes para designar essas reações. Chamamos de epidemia, do grego, epi, sobre, e demos, povo, do verbo epidemein, propagar-se entre o povo, quando temos o caso de uma doença contagiosa que contamina muita gente. Quando a doença se fixa de modo permanente num grupo humano ou numa área, no interior de um país, por exemplo, os gregos a chamavam de endemia (endo, no interior, dentro) e de pandemia (pan, tudo, todos) quando a reação abrangia todos os grupos humanos, se universalizando, como é o caso da doença que hoje está espalhada no mundo todo desde o final de 2.019.

Conforme o seu agente propagador, estas reações da natureza podem ser classificadas como virais, infecciosas ou parasitárias, segundo os “agentes” que ela usa para fazer com que o homem aprenda a não sair de determinados limites. Num sentido mais amplo, vírus é um germe patogênico que não tem condições de
COVID 19
viver muito tempo fora de um organismo, considerado por isso como um parasita de células. Como amplamente divulgado, a pandemia em que hoje estamos mergulhados se deve ao coronavírus (Covid 19), que causa problemas semelhantes aos de uma gripe, agravados seriamente por dificuldades respiratórias agudas que podem levar rapidamente à morte. A principal forma de contágio desse vírus se dá, como sabemos, por contacto com pessoas infectadas que o transmitem  geralmente por partículas de saliva (perdigotos), lançadas por tosse e espirros    


Diante do que o nosso conhecimento vem fixando e por tudo o que desde os remotos tempos de sua história o homem veio acumulando, no sentido de lidar com tais desastres, ganha cada vez mais força a ideia (jamais posta realmente em prática, porém) da necessidade de que, ele, o homem, para viver melhor, isto é, para conviver bem, se desenvolver e procriar harmoniosa e solidariamente, deveria se esforçar para manter um desejável equilíbrio com o meio natural e com os outros seres que o habitam. Quando o ser humano esquece, se descuida ou age criminosamente (o mais comum) com relação a essas obrigações as consequências de suas ações tomam um caráter catastrófico, como hoje.

Fica claro para qualquer pessoa medianamente informada que epidemias e guerras não acontecem por acaso. São produzidas, isto sim, por desequilíbrios introduzidos pelo homem na sua convivência com outros homens e no mundo natural. Nada de considerar esses desastres fruto do acaso, castigos de Deus ou falar que as epidemias ou pandemias são “predadoras gratuitas do progresso humano”, fruto do acaso. Elas aparecem entre nós para que aprendamos, no geral com muito sofrimento, muito sacrifício, a questionar e a corrigir ações humanas, mostrando-nos que não podemos tudo, ou seja, questionar todo um conjunto de sistemas políticos, econômicos e sociais desonestos e corruptos que, a título de trazer o progresso, as vêm gerando  e patrocinando continuamente.

AMAZÔNIA

A eliminação das florestas e da camada de ozônio que envolve a Terra é, como estamos cansados de saber, um crime ambiental que vem sendo cometido diariamente no mundo todo. Por trás dele temos ideias de conquistas materiais, de enriquecimento, de progresso, mas, que no fundo, não passam de omissões governamentais, de irresponsabilidades criminosas, de lucro imoral e criminoso, de avidez desenfreada etc. As intervenções humanas responsáveis por tais fatos criminosos estão provocando no mundo natural, como todos sabemos, o aquecimento do nosso planeta. Já está provado, para não falar de outras possíveis causas destruidoras, que esses acontecimentos podem provocar inclusive o fim da nossa biodiversidade.


DHARMA
O melhor entendimento, acredito, quanto ao que estamos vivendo hoje, com relação  à pandemia que nos atinge em cheio, vem de uma constatação muito simples, a de que ações geram efeitos. O que melhor explica o que estamos vivendo hoje são os conceitos de karma e dharma dos antigos hindus. Etimologicamente, karma, na língua sânscrita, quer dizer ação e, na prática, também aquilo que decorre da ação, do que é feito. É a consequência que não pode ser separada da ação. Quando agimos ou deixamos de agir, quando falamos no nosso celular, dirigimos automóveis, vemos TV, comemos, compramos coisas, jogamos fora o nosso lixo, estamos nos envolvendo com o que os hindus chamam  de karma. Ao agir deste ou daquele modo estamos assumindo o resultado de nossas ações. Se nos alimentamos mal, as consequências deste procedimento estão implícitas neste ato. Se vivemos em ambientes muito poluídos, envenenados, nos arriscamos a ter graves problemas de saúde que poderão inclusive nos levar à morte. 


Karma é, ainda, num sentido amplo, a soma total dos nossos atos.  Tanto aquilo que nos vem do passado e que, embora não o saibamos, interfere na nossa vida atual e com aquilo que estamos fazendo hoje, que afetará também o nosso futuro. Cada semente, cada pensamento, uma palavra, o silêncio, qualquer causa produz um efeito. Isto é o karma. Karma é, portanto, a lei da causação. Sempre que há uma causa um efeito é produzido. Se consideramos a semente como causa, o efeito será a planta, o fruto. Colhemos o que plantamos. 

Não há um efeito, uma conseqüência, no universo sem uma causa que o tenha provocado, antecedido. Quando não conseguimos entender a relação entre o efeito e a sua causa, usamos muito o conceito de acaso para camuflar a nossa ignorância ou a nossa má-fé. À medida, porém, que o conhecimento humano vai aumentando e noções de interdependência (no universo tudo se relaciona com tudo) se confirmam cada vez mais, a argumentação de que as coisas nos acontecem por acaso não pode prevalecer. Nestes tempos de coronavírus, por exemplo, evidentemente, só pessoas muito ignorantes e/ou de má-fé, deixam de ver a relação entre ações humanas, maneiras de se viver, e a epidemia que hoje nos aflige. Nada, pois, de acaso ou de castigo divino. Em qualquer circunstância, o homem é sempre o responsável pelo que lhe acontece, segundo aliás, a própria ideia do que seja o karma nos esclarece, conforme colocaremos mais adiante.  
  
Indo um pouco mais fundo no que estamos a expor, o ser humano, segundo os antigos mestres hindus, tem uma natureza tríplice. Ele é Iccha (sensação, modo de sentir), Gnana (conhecimento) e Kriya (querer, vontade). Estes três elementos, sempre entrelaçados, modelam o karma (ações e efeitos, consequências). Pelos sentidos, tomamos conhecimento das coisas do mundo, de tudo o que nele acontece, de pessoas, de objetos, de automóveis, de roupas, de filosofias de vida, de religiões, de alimentos... Tudo isto, captado através dos nossos sentidos, vai nos afetar de várias maneiras, causando-nos, resumidamente, desejos, promessa de lucros, prazer, vantagens ou aversões, em variados graus, ou indiferença. De um modo geral, os estímulos que nos agradam, mesmo que nos façam mal, nos levam a aproximarmo-nos deles. Outros, que nos causam dor, desprazer, sobretudo no nível físico, nós os rejeitamos. Em consequência, queremos isto ou aquilo. No geral, tendemos a fugir do que nos causa mal e a aproximarmo-nos, segundo julgamos, do que nos fará algum bem. Ou, então, uma outra possibilidade: permanecemos indiferentes, o estímulo nada provocando em nós, o que é muitíssimo difícil hoje. A maior parte da comunicação coletiva, para não dizer a sua totalidade, tem, como sabemos, por finalidade maior, a transformação de todo ser humano (animais também), de todo indivíduo-cidadão, num consumidor. 

Esse movimento que ativa os seres vivos em função de estímulos externos é chamado de tropismo (tropos, em grego, é direção). Se o ser vai em direção do estímulo, temos o chamado tropismo positivo. Se ele se afasta, temos o tropismo negativo. Mobilizados os nossos sentidos, estimulados, passamos a interpretar o resultado de um acontecimento que vai gerar o que chamamos de desejo. Por exemplo: o objeto que vi me impressionou favoravelmente, possuí-lo me fará algum bem, julgo. Mas ele é muito caro, pondero. Valerá a pena gastar tanto para obtê-lo? Avalio, tento decidir, angustiando-me até muitas vezes. Alguns objetos do mundo podem nos causar uma impressão tão forte que não tê-los é entrar em grande sofrimento, mesmo que muitas vezes não saibamos bem se esse objeto realmente nos traria algo de bom. Para escapar desta situação dolorosa, de penúria, de carência, empenhamo-nos, procurando um meio de consegui-lo. 

Por trás da ação que me leva a buscar um objeto, alguma coisa, a me aproximar de uma ideia, de uma pessoa, há sempre um desejo. Carente, penso na maneira de obtê-lo, de me relacionar com tal pessoa, ajo então tendo em vista esse fim. Esses três elementos, desejo, pensamento e ação, sempre estão juntos, ligados ao karma. O desejo, no fundo, é o produtor do karma, isto é, da ação. O karma produz os seus frutos, gerando prazer ou dor. Muito prazer? Dou-me por satisfeito? Um pouco? Decepciono-me?

ISAAC  NEWTON
A lei do karma, como lei da causalidade moral, é, no Ocidente, lembremos, também aceita por alguns grupos filosófico-religiosos, adaptada da formulação dos hindus, mas sem o alcance e a importância que eles lhe dão (deram?). A ciência ocidental, recordemos, chegou a ela através de um dos princípios formulados por Isaac Newton (a toda ação corresponde uma reação igual e contrária), entre os sécs. XVII e XVIII, mas considerando-a sempre, somente, sob o ponto de vista científico e não sob o ponto de vista moral. 

Assim como semeamos, assim colheremos, é, pois, a lei. Se praticamos uma má ação, sofreremos sempre, cedo ou tarde, de algum modo, por causa dela. Se praticamos uma boa ação, qualquer que seja o nome que lhe dermos, sentiremos um certo bem-estar, paz interior ou, vá lá!, alguma felicidade.  Não há poder algum no universo que consiga impedir que ações gerem consequências, cedo ou tarde. A lei do karma é inexorável.

As coisas não acontecem no universo por acaso, acidentalmente, de um modo desordenado. Quando não conseguimos perceber a relação entre a causa e o efeito falamos de acaso, dizemos que as coisas acontecem por acaso. O fato é que no universo as coisas se sucedem, umas depois das outras, numa ordem regular, nada de acaso ou caos. Há uma certa e definida conexão entre o que estamos fazendo agora e o que nos acontecerá no futuro. As
VEDAS
pessoas não entendem isto porque vivem, segundo os meus amigos hindus, num estado de avidya (ignorância, literalmente cegueira). Vid quer dizer ver, conhecer; o a é aqui negativo, privativo. O nome dos livros sagrados dos hindus, os Vedas, vem desse verbo. Toda ação produz, assim, um efeito. Esta ação nos dá uma recompensa, um fruto, que vai afetar o nosso caráter. Deixa uma impressão na nossa mente, que nos incitará a repetir ou não o ato.  


Se depositamos uma semente de maçã no solo e a cobrimos com um pouco de terra, depois de algum tempo ali brotará alguma coisa, virão flores e frutos depois. Uma semente de manga gerará mangueiras e assim por diante. Plantando trigo, colheremos trigo; plantando centeio, centeio, e assim por diante. Se plantamos a semente de uma má ação, colheremos dor e sofrimento. A semente de uma ação virtuosa gerará uma colheita de prazer. A lei do Karma nos diz então que semeadura e colheita são inseparáveis.

As nossas ações do passado são responsáveis pelo que somos hoje. Nossas ações de hoje estão modelando o nosso futuro. Nada caótico, pois. Nada acontece por acaso. Não só más ações, mas maus pensamentos também gerarão sofrimento, dificuldades, criando-nos situações de vida insatisfatórias, desfavoráveis, descontentamento, aflição, depressão, desespero.

Se agimos sempre do mesmo modo, colhemos um hábito. Se ficamos presos a um hábito, colhemos um caráter. Hábitos repetidos determinam um destino. O destino é produto nosso, nós o construímos. Quebrando essa cadeia, podemos alterar o nosso
JEAN -PAUL  SARTRE, 1905 - 1980.
destino. Corolário: nós não temos a liberdade de determinar o resultado das nossas ações. Temos, sim, a liberdade de determinar o curso das nossas ações. Encontrado num texto hindu: O problema está sempre na ação, não nos frutos. A propósito, compare-se tudo o que aqui se expõe com as teses existencialistas, especialmente com as de Sartre. 


Além disso, fica claro que o que somos hoje é o resultado do que pensamos e fizemos no passado. O que viermos a ser no futuro será o resultado do que pensamos e fazemos hoje. Colhemos o que semeamos. Tudo o que recai sobre nós de bom ou de mau é consequência de ações que praticamos. A lógica da lei do karma é implacável. Sempre seremos punidos ou recompensados, mesmo que não nos lembremos. 

À obrigação que temos de assumir a responsabilidade pelo resultado de nossas ações a doutrina que aqui expomos dá o nome de Dharma, palavra que etimologicamente lembra sustentar, suportar, manter, ás vezes com muita dor e sofrimento. Nesse sentido é que este conceito se entrelaça também com o de Karma. Ação, efeitos, conseqüências e responsabilidade. Num sentido mais amplo, dharma é o dever do ponto de vista ético, moral e legal, a justiça, a lei.

O Dharma tem a ver com a função social de cada indivíduo, como ele participa do todo, ao desempenhar os seus papéis. Dessa participação decorrem conceitos de hierarquia, especialização, obrigação, mérito, boa vontade, comportamento, costume. Entendido como virtude, o dharma é o que cada um de nós põe no que faz, perfeição no exercício de seu papel, de sua função. 

A  RODA  DO  DHARMA


No Ocidente essas ideias nos repugnam. Hierarquia social para nós é poder, direitos, prerrogativas, status, dinheiro. O Dharma propõe uma hierarquia de deveres. O arrivismo social, praga ocidental, não existe (existia) na Índia. Impossível a um homem querer enriquecer ou querer se distinguir de qualquer maneira, desertar de sua família, de seus companheiros de juventude, para entrar num meio social diferente. Ele é solidário ao grupo no qual nasceu, dele não pode sair, jamais elevar-se sozinho.