domingo, 9 de outubro de 2011

AS MAÇÃS DE ATALANTA

O nome Atalanta em grego lembra sofrimento, padecimento. Sua origem é complicada. O que de certo se sabe é que o pai não queria filhos do sexo feminino. Fundador de uma cidade da Arcádia, Esqueneu, assim se chamava ele, nascida uma menina, não teve dúvidas, mandou expô-la, abandoná-la nas montanhas, como era costume nestes casos. Uma ursa, enviada pela deusa Ártemis, a recolheu e a amamentou, sendo a criança depois adotada por uns caçadores que a encontraram.

A menina recolhida pelos pastores cresceu, tornou-se uma jovem bonita, recusando-se a aceitar o matrimônio. Para tanto, consagrou-se a Ártemis, à grande deusa lunar, virgem, sagitariana, divindade das florestas e dos animais selvagens. Ártemis, como se sabe, era uma deusa rebelde, considerada indomável, que punia exemplarmente, inclusive em alguns casos com a morte, os que ousassem incomodá-la ou desrespeitá-la. Essa atitude de Ártemis tornava-a reconhecidamente cruel e mesmo sanguinária, muito parecida com as Grandes-Mães orientais.

Com o título de Agrotera, Ártemis era a deusa dos caçadores, sendo seu território preferido a Arcádia, com muitas florestas e cursos de água. Nessa região ela era adorada sob a forma de uma ursa, declarando-se os habitantes da região como seus descendentes sob esta forma. Nas suas corridas pelas montanhas, Ártemis era acompanha por um grupo de ninfas oréadas, chamadas de “ursinhas”, das quais exigia castidade absoluta.

Orgulhosa e altiva como a deusa que a tutelava, Atalanta, excelente caçadora, era famosa pelo seu temperamento libertário e independente. Rapidíssima, dizia-se que se deslocava quase tão velozmente quanto Hermes e Iris. Era também muito conhecida por gostar de participar de atividades masculinas como caçadas e aventuras bélicas colonialistas, sobressaindo-se nelas mais do que muitos heróis.

JASÃO E O VELOCINO DE OURO

Quanto às aventuras colonialistas, lembre-se que quando Jasão recrutou os heróis que fariam parte da expedição à Cólquida para a conquista do Velocino de Ouro Atalanta apresentou-se como candidata. Embora muitos heróis defendessem a sua participação da expedição, Jasão não a aceitou. Há registros de que a jovem teria participado também de uma outra batalha quando Eetes, rei da Cólquida, enviou tropas para a captura de Jasão e de Medeia. Ferida na refrega, a sobrinha de Circe, com os seus dons de curandeira, a teria socorrido com sucesso.


A CAÇADA DO JAVALI DE CÁLIDON

A maior façanha de Atalanta indiscutivelmente se prende à sua participação na caçada ao javali de Cálidon, cidade da Etólia, às margens do rio Euripo. Reinava no lugar Eneu, sendo Ártemis a sua divindade tutelar. Como seu próprio nome indica, Eneu era “o do vinho” (oinos, vinho). Ao receber de Dioniso mudas de videiras para que a cultura do vinho tivesse início na Grécia, Eneu esqueceu-se de Ártemis, deixando de honrá-la devidamente. Não mais oferecia sacrifícios à deusa. Furiosa, Ártemis enviou um enorme e selvagem javali que começou a devastar todas as plantações da região.

O javali é um animal que aparece nos mitos associado ao fogo principalmente no nível instintivo e no nível espiritual. É por isso tanto consagrado a Ares, deus da guerra, como à primavera e à juventude. Apelidado de o “Cão do Diabo”, é geralmente considerado como um animal demoníaco, aproximado do porco, comilão e lúbrico, lembrando a sua impetuosidade o fogo das paixões. Entre os povos védicos e os celtas, por exemplo, é um símbolo de espiritualidade, sendo, quanto aos primeiros, a forma (avatar) que o deus Vishnu tomou, com o nome de Varaha, para salvar a Terra do demônio Hiranyaksha. Entre os celtas, o javali representa o sacerdote, o druida, nome composto de “dru”, força, e “vid”, sabedoria. 

Consagrado também a Ártemis e a Diana dos romanos, o javali encarna, por exemplo, no mito de Adonis, deus da vegetação. No equinócio de outono, prenúncio do inverno, o javali rasga o ventre do deus, que fará então uma descida aos infernos, a sua desaparição sob o horizonte.

O animal enviado por Ártemis era monstruoso. Os caçadores o temiam. Inúmeros heróis se dirigiram ao reino de Eneu para tentar dar fim ao animal. O primeiro que se dispôs a matá-lo foi o herói Meléagro, filho de Eneu e de Alteia, irmã de Leda. Reunindo vários companheiros, Meléagro ficou surpreso quando Atalanta apareceu. Os heróis por ele reunidos não queriam a participação da jovem. Meléagro, porém, ficara fascinado por ela e os convenceu a aceitá-la no grupo. Durante a caçada, dois centauros, Reco e Hileu, tentaram violentar Atalanta. Ela os matou a flechadas sem apelação.

A caçada durou vários dias. Afinal, encurralado, a primeira flecha que o atingiu foi disparada por Atalanta. A segunda, que precipitou a morte do animal, foi de Meléagro. Ártemis, contudo, ainda enraivecida, suscitou entre os participantes da caçada, uma grande desavença. Meléagro e seus dois tios queriam que a jovem recebesse a pele do animal, sempre muito disputada como valioso troféu em caçadas como a de que haviam participado. Os Curetes, representantes de um povo da Etólia, participantes também, afirmando que o sucesso da caçada dependeu mais deles, que descobriram a pista do animal, reivindicavam o precioso troféu.

O jovem príncipe enalteceu publicamente o feito de Atalanta, apaixonado que estava por ela. Propôs, sem mais discussões, que o cobiçado prêmio fosse entregue a Atalanta. A confusão se instalou entre os membros da família real, os participantes da caçada e o príncipe. Meléagro, num acesso de fúria, matou seus tios, irmãos de Alteia, sua mãe. Esta, então, também furiosa, atirou ao fogo uma acha de lenha que estava "ligada" à sobrevivência do jovem.

MOIRAS

Quando Meléagro nasceu, as Moiras haviam advertido a mãe que a sorte do menino estava ligada a uma determinada acha de lenha que ardia no fogo da casa. Se a acha se consumisse inteiramente a criança morreria. A mãe a retirou então do fogo e a guardou zelosamente. Alteia decretara a morte de seu filho ao lançá-la ao fogo num ímpeto de fúria. Meléagro, “aquele que só pensa em caçar”, segundo uma etimologia discutível, morreu enquanto cortava o javali em pedaços.

Atalanta se afastou de todos, recusando-se a estabelecer quaisquer contactos. Segundo constava, um oráculo predissera que se a jovem se casasse poderia ser transformada num animal; outros afirmavam que ela não se casaria devido ao voto de castidade que fizera à deusa Ártemis. Muitos, contudo, pretendiam se casar com ela, procurando-a insistentemente.

A essa altura, Esqueneu, fundador de cidades junto de pântanos onde há juncos, conforme seu nome sugere, procurou se reconciliar com a filha. Esqueneu ainda não se refizera de um recente drama familiar. Seu único filho, Clímeno, apaixonado pela própria filha, Harpálice, depois de ter com ela um filho, matou-a e se suicidou em seguida.


ATALANTA E HIPÔMENES

De comum acordo, Atalanta e o pai, para afastar os insistentes pretendentes, propuseram que a jovem se casaria com aquele que a vencesse numa corrida, o que ela, de antemão, reconhecia como impossível de acontecer. Se o pretendente fosse vencido por ela, morreria. Muitos, por isso, já haviam desistido e outros sido vencidos e mortos.

Eis que num determinado dia apareceu Hipômenes, que, astutamente, inspirado pela deusa Afrodite (esq.), distraiu Atalanta, conseguindo vencê-la. A vida liberta de Atalanta chegara ao fim. Diz a história que antes de ser vencida Atalanta era uma mulher totalmente esquiva; depois da vitória de Hipômenes, ela se mostrou tão apaixonada que procurava se unir sexualmente ao marido nos lugares mais inconvenientes.

CIBELE

Num desses lugares, um templo da Grande-Mãe Cibele, ela se entregou com tal furor aos seus transportes amorosos que se esqueceu completamente do respeito que deveria observar num lugar tão sagrado. Da união dos dois, nasceu Partenopeu, que integraria a expedição dos Sete contra Tebas e que participaria da instituição dos Jogos Nemeus. Logo em seguida, por terem os amantes se esquecido de glorificar Afrodite, foram transformados em leões, atrelados, junto com outros, a um carro que a conduzia.

A vitória de Hipômenes foi tramada por Afrodite, como dissemos. A deusa do amor entregou ao pretendente três maçãs de ouro, provenientes do seu santuário de Chipre. Quem as visse ficaria inteiramente tomado pelo desejo de possuí-las. Iniciada a corrida, Hipômenes, sempre que pressentindo que iria ser alcançado e morto, lançava as maçãs para que Atalanta parasse para apanhá-las ou, pelo menos, se distraísse. A tática funcionou; a jovem, ainda que muito rápida, perdeu alguns momentos para apanhar os frutos maravilhosos de Afrodite, o que possibilitou a vitória do pretendente.

A história de Atalanta põe em oposição os cultos de Afrodite e de Ártemis na Grécia mítica. A primeira é a deusa da beleza e de todas as formas de sedução. Seu culto tem origem asiática, lembrando muito os de Ishtar e de Astarte; penetrou no mundo grego através de comerciantes e marinheiros que vinham da Ásia Menor. Afrodite simboliza o amor colocado sob a perspectiva da reciprocidade, no qual entram o prazer dos sentidos e o desejo de fruição. Não mais o amor sob sua forma puramente animal, como pulsão fundamental do ser, na proposta de Eros. Afrodite é a divindade que sublima o amor selvagem, integrando-o numa vida verdadeiramente humana. A deusa governa o prazer do amor e da beleza, a sexualidade e a sensualidade, impelindo as mulheres a assumirem funções criativas e procriativas. É, como arquétipo, o mais desenvolvido na experiência sensorial ou sensual.

Já a deusa Ártemis personifica o espírito feminino independente, levando a mulher a procurar seus próprios objetivos existenciais em áreas de sua própria escolha. Era uma deusa virgem, não tocada pelos estímulos que lhe vinham do exterior. É íntegra, autocentrada, fechada em si mesma. É o modelo seguido pela mulher que quer cuidar de si mesma, de espírito independente, a mulher que procura se sentir completa sem um parceiro masculino. Isto a leva, por exemplo, a escolhas profissionais que tenham como característica principal a liberdade, a independência, atitude que muitas vezes pode levá-la também a experiências homossexuais, onde podem entrar muitas “ursinhas”. Seu sentido de valor se baseia na atividade que desempenha e não no fato de estar unida a alguém. O preço a ser pago por tudo isto, porém, é muito elevado. Daí as ciladas e as vinganças de Afrodite...

MORTE DE HIPÓLITO

Os cultos de Afrodite e de Ártemis sempre se chocaram. A primeira, como descrito em várias histórias, punia todos aqueles que pecassem contra o amor. Chegava até a explosões de ódio e a maldições. Vingava-se das ofensas ao seu poder, fazendo do ato amoroso uma arma. Uma de suas grandes vítimas foi, por exemplo, Hipólito, filho de Teseu, que desprezava o seu culto, por ter se dedicado ao de Ártemis, fazendo votos de castidade. Por isso, foi terrivelmente castigado pela deusa. Doutra feita, Afrodite puniu severamente as mulheres da ilha de Lemnos porque se haviam negado a cultuá-la. Castigou-as, impregnando-as com um odor tão insuportável que foram todas abandonadas pelos maridos. Afrodite lida com sentimentos, com a vida afetiva, desde uma simples tendência, uma inclinação, às paixões e às obsessões, deixando-nos claro o quanto o “logos”, a razão, é impotente diante dela. Daí o horror que Afrodite representava para todas as demais deusas do panteão grego. 

Hera, a esposa oficial, a detestava. Deméter, a maternidade como único papel feminino, não a suportava. 

Uma deusa que representasse a sensualidade e os prazeres da carne era sempre um perigo. Quanto a Deméter, por exemplo, proibiam-se nos seus cultos, com exceção da papoula, todas as demais flores, que eram de Afrodite.

Grandes "inimigas” de Afrodite, nesse sentido, foram principalmente as três deusas virgens da mitologia grega, Héstia, Palas Athena e Ártemis, da qual já falamos. Héstia era a deusa da lareira, a divindade do interior do lar, sacrifício permanente, imagem da mulher que coloca a sua vida no impessoal, tudo para os outros, nada para si mesma. Palas Athena, guia de heróis, simboliza a força, a vontade orientada pela razão, inimiga de tudo que é irracional, o que nem sempre acontece. Daí, talvez, o fracasso que foi a vida de muitos heróis gregos, se os consideramos só sob a proposta da deusa das acrópoles.

O caso de Atalanta enquadra-se no que acabamos de narrar. A estratégia montada por Afrodite para submeter a orgulhosa jovem patenteia, de modo indiscutível, o grande poder da deusa do amor, que a todos submete, por bem ou por mal. Ninguém escapa impunemente do jogo das polaridades. Hipômenes, "aquele que possui o vigor de um cavalo" venceu Atalanta. Já a maçã admite várias leituras. Por sua forma arredondada, pela sua cor, avermelhada, a maçã nesta história é símbolo de desejos terrestres e, comendo-se-a, da satisfação destes desejos. Opõe-se a maçã, nesta perspectiva, à espiritualidade. Como tal, lembra desejos, vida material. Atalanta fechara-se na unipolaridade, sempre um pecado contra a Afrodite. A deusa a obrigou a entender que a vida é desejo e dualidade, troca. Dois é o número sobre o qual repousa toda a dialética universal, todo o movimento, todo o progresso. O dois exprime tanto um antagonismo como uma reciprocidade, tanto o ódio quanto o amor, simultaneamente uma oposição ou uma complementaridade. Lembremos que uma sentença oracular dizia que se Atalanta se unisse ao masculino ela se transformaria num animal 

Ao dar as maçãs a Hipômedes, Afrodite lhe garantiu a vitória e disse que, com relação às duas primeiras que ele deixasse cair durante a corrida, Atalanta aprenderia logo a pensar no tempo que passa e na formação de uma união, apesar de tudo sempre mais agradável do que a solidão das florestas. Quanto à terceira maçã, ele e Atalanta compreenderiam tudo depois...

Quanto ao infeliz Meléagro, consta que as mulheres de Cálidon passaram desde a sua morte a celebrá-lo, pranteando-o. Choraram tanto, diz o mito, que acabaram se transformando numas aves que passaram a ser chamadas de “meleágrides”, muito parecidas com galinhas pintalgadas, as galinhas d´angola, segundo etimologia atribuída, aliás, ao nome do apaixonado por Atalanta. 


No séc. XVI, um alquimista, Michel Maier (1568-1622), que viveu na corte de Rodolfo II, na corte de Praga, autor de várias obras, deu-nos, em 1618, um texto chamado “Atalanta Fugiens”, ilustrado com muitas gravuras de Mathieu Merian, sobre o simbolismo alquímico. Maier associa Atalanta ao espírito mercurial, sempre fugidio.




O mercúrio, alquimicamente, é um princípio passivo, úmido, e, como tal, ligado à “solutio”, isto é, à indiferenciação. Vagabundo, errante, sempre perambulando de um lado para outro, dispersivo, é o mercúrio um símbolo da “materia prima” que deve ser trabalhada, considerada pela alquimia taoísta como “yin”.



FIXAR O ESPÍRITO MERCURIAL...

Fixar o mercúrio, é comprometer a nossa incessante atividade mental na dinâmica da vida, com o nosso processo de individuação, que se realiza sempre diante do mundo e no diálogo com os outros. Alquimicamente, isto significa coagular a nossa mente constantemente, a serviço do nosso eu, mesmo sabendo que esta coagulação conquistada será logo perdida. Este processo não tem fim. É a famosa expressão “solve et coagula”, dos alquimistas. Este é o sentido geral da chamada Opus alquímica. Viver implica tanto a conquista de uma forma como a sua perda. Inspirar, expirar; anabolismo, catabolismo...

Afrodite é a grande divindade da “coagulatio” como criadora de formas, promovendo uniões que devem se realizar tanto exteriormente como interiormente. Seu agente, no mito, é Hipômenes, “aquele que é forte como um cavalo”. A sua união com Atalanta é, entretanto, uma “coagulatio” inferior, realizada apenas sexualmente, comandada que foi tão só pela via instintiva. Foi por esta razão que outra grande divindade do feminino, Cibele, transformou os dois amantes em leões, atrelando-os ao seu carro.

Cibele (etimologicamente, gruta) é uma deusa oriental, senhora das montanhas, das grutas e da vegetação, que governa as forças vitais, simbolizadas pelos leões atrelados ao seu carro. O leão, sob o seu aspecto noturno, como é o caso na história de Atalanta, representa a libido, o arrebatamento, a força do instinto liberada, tudo aquilo que no nosso cotidiano devemos aprender a dominar, na qualidade de “domadores”, pela força da nossa inteligência superior.