domingo, 23 de março de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - NETUNO (5)

  
O simbolismo dos oceanos e dos mares liga-se ao das águas primordiais de onde emergiu toda a criação. Em todas as tradições, oceanos e mares desempenharam um papel importante, sempre associados à vida e à morte. Entre os gregos, Homero, Hesíodo, Heródoto e outros, viram o oceano como um imenso rio que circundava a Terra, considerada então como um enorme disco achatado. Em algumas mitologias, o oceano primordial era considerado, mesmo pelas divindades, como um imenso abismo, um lugar temível, indomável, dominado por entidades monstruosas. Um dos melhores exemplos é o de Tiamat entre os mesopotâmicos. 

Essa não era a visão dos gregos, que colocaram os mares sob a tutela do deus Oceano. A massa oceânica dos
gregos tinha seus limites estabelecidos entre a Ásia (não se sabe bem onde) e o extremo da Europa ocidental, muito além dos Jardins das Hespérides. Um rio-serpente, sempre em movimento, jamais “dormindo”. Oceano era filho de Urano e Geia, um titã, portanto, sendo o mais velho deles. Os titãs, como se sabe, eram divindades primordiais que representavam a primeira ideia de organização cósmica entre os gregos. Descreviam os momentos iniciais da criação, o entrechoque das forças elementares que procuravam a sua acomodação, definindo a primeira etapa de um processo em contínua evolução. 


Gigantescos, descomunais, os titãs aparecem como potências fundadoras, imagens de energias e de forças primitivas, cegas no geral, descontroladas, grosseiramente reguladoras. Tais forças, analogicamente, no ser humano representam o conjunto de sua vida instintiva, animal, não reflexiva. Ordenando-se cosmicamente, porém, a confusa matéria primitiva, o homem foi também aos poucos tentando abandonar o seu lado animal, procurando aprender a viver em sociedade, uma tarefa dificílima como a longa história da humanidade vem nos demonstrando. As forças titânicas, mais facilmente controláveis no mundo natural, oferecem, porém, quando nos voltamos para o interior do ser humano, grandes dificuldades para que ele aprenda a discipliná-las, isto é, a se socializar, a conviver harmoniosamente com os seus semelhantes. Rebeldes e irracionais, escapam elas constantemente das várias formas de controle para se subjuga-las, criando ininterruptamente no mundo todo, aqui e acolá, inúmeros bolsões de miséria, de destruição, de sofrimento e morte, ridicularizando e pondo a nu a hipocrisia das tentativas espirituais de contê-las.


TITANOMAQUIA  (CORNELIS VAN HAARLEM)

A palavra titã admite duas etimologias. Uma a liga ao cálcio como sustentáculo (ossos)  do universo material. Esta aproximação faz uma referência à luta (Titanomaquia) que titãs e os futuros olímpicos travaram pelo domínio universal. Vencidos, os titãs, chefiados por Cronos, foram massacrados, triturados, por Zeus e seus irmãos. A outra etimologia diz respeito ao verbo estender, levantar a mão, isto é, refere-se à agressão que Cronos cometeu contra seu pai Urano, castrando-o.

CASTRAÇÃO DE URANO

Os titãs eram seis: Oceano, como se disse, era um imenso rio-serpente que envolvia a Terra; Ceos, avô dos luminares; Crio era o titã relacionado com o frio e o inverno; Hiperion tinha relação com o fogo, a luz dos astros e a visão; Jápeto foi pai de uma família
MNEMÓSINA
importante, destacando-se dois de seus membros: Atlas e Prometeu; Cronos, que destronou seu pai e assumiu o controle do universo, como titular da segunda dinastia divina. As titânidas eram também seis: Febe, que tinha especial relação com a Lua, foi mãe de Leto, avó, portanto, de Ártemis e de Apolo; Mnemósina, personificação da memória, mãe das Musas; Reia, esposa de Cronos, rainha dos titãs; Têmis, personificação das leis imprescritíveis; Tetis, ligada à vida oceânica; Teia, a totalmente divina, unindo-se a Hiperion tornou-se mãe de Helio, Selene e Eos. 

Dos seis filhos e seis filhas que Urano e Geia tiveram, Oceano era o mais pacato deles, sendo muito conciliador, como nos conta
OCEANO
Sófocles, jamais se indispondo com as divindades “superiores” (Zeus). Às vezes, era representado por uma enorme figura humana, barbada, com garras de caranguejo no lugar das mãos e chifres na cabeça. Oceano, para os antigos gregos, era a imagem do mar Mediterrâneo e do oceano Atlântico, as duas massas líquidas por eles conhecidas, além do Mar Negro (Ponto Euxino). 


Quando da Titanomaquia, Oceano, tal como aconteceu com
OCEANO  ( FONTANA DI TREVI, ROMA)
Prometeu e Têmis, não se juntou aos seus irmãos na luta contra os futuros olímpicos. Oceano também, segundo muitas versões, não se alinhou com o irmão Cronos quando este enfrentou o pai, Urano, e o destronou.  Consta ainda da crônica de Oceano que ele procurou ajudar Zeus quando este resolveu salvar os seus irmãos que haviam sido engolidos por Cronos. Foi Metis, uma de suas filhas, que forneceu a Zeus, seu amante, segundo consta também, a droga que fez Cronos devolver todos os seus filhos que havia engolido.


OCEANO E TÉTIS
   
Unindo-se a Tétis, sua irmã, personificação da capacidade geradora das águas oceânicas, tornou-se Oceano pai de milhares de rios e de igual número de ninfas, chamadas de Oceânidas. Dos rios, seus filhos, destaque para Nilo, Alfeu, Erídano, Aqueloo, Nesso, Ródio, Pneu, Ládon e Escamandro, tendo  todos participado de inúmeras histórias.

HIPOCAMPO  (MOSAICO  ANTIGO)
   
Na mitologia grega, Oceano é primeira divindade tutelar do elemento líquido, sendo considerado o pai de todos os seres. Há registros de que as divindades jamais deixaram de homenageá-lo por isso. Oceano e Tétis cuidaram de Hera, então muito jovem, quando da Titanomaquia. Tétis encarna a grande capacidade geradora das águas oceânicas. É mãe não só dos rios e das oceânidas como de muitos outros personagens míticos. Lembremos que as águas oceânicas, em todas as mitologias, representam a origem da vida. Nas cosmogonias egípcias, por exemplo, a água era a essência do poder passivo feminino, sendo a
HIPOCAMPO
umidade a mais fecunda das qualidades primitivas, base da criação. Tétis é palavra que em grego traduz ideias de matriz, ama, nutriz. É realmente a grande divindade feminina da água como matéria-prima que entra na composição de todos os corpos. Seu carro, velocíssimo, é uma concha maravilhosa, de uma brancura de marfim nacarado, puxado por cavalos-marinhos (hipocampos).  Ela percorre o seu reino em companhia de delfins, de tritões com as suas trombetas e de oceânidas coroadas de flores.


OCEÂNIDAS  (GUSTAVE DORÉ)

Dentre as mais importantes oceânidas, menção especial para Electra, que, casada com Taumas, foi mãe de Íris, das Harpias e das Greias; era uma das amigas de Kóre, quando a jovem filha de Deméter foi raptada por Hades.  Dóris era mulher de Nereu e mãe das nereidas. Dentre as filhas de Dóris, destaque para Tétis, mãe de Aquiles; Clímene, casada com Jápeto, foi mãe de Prometeu, Epimeteu, Atlas e de Menécio; Calírroe, unida a Crisaor, filho de Poseidon, foi mãe de Gerião e de Équidna; Dione foi amante de Tântalo; Perseis, unindo-se a Hélio, foi mãe de Eestes, Perses, Circe e Pasífae; Metis, a que seria mãe de Palas Athena e não foi; e Eurínome, a que administrava com seu esposo Ofion o cume nebuloso do Olimpo; unindo-se a Zeus, foi mãe das Cárites.

Com a vitória dos olímpicos, o universo foi dividido por Zeus em
POSEIDON
três partes. O mundo subterrâneo coube a Hades, também chamado de Plutão. Os oceanos e os mares, o elemento líquido em geral, ficou sob a tutela de Poseidon. Os céus ficaram com Zeus, que assumiu também a supervisão do universo como um todo. A Terra foi destinada à triste raça humana, os descendentes de Deucalião e Pirra.


Poseidon é nome grego que lembra mestre, senhor. Além do controle do elemento líquido, Poseidon assumiu também indiretamente o poder sobre tudo o que dele dependesse, a navegação nos mares, a fertilidade do solo, o crescimento dos grãos, dos vinhedos, da vegetação em geral, das fontes, dos lagos e dos rios, da agricultura. Em tempos muitos remotos, antes da divisão do universo decorrente da vitória dos olímpicos, Poseidon era conhecido como uma espécie de esposo de Geia e senhor das águas subterrâneas, o que sempre preocupou o seu irmão Hades.

Com a decisão imposta por Zeus, os poderes de Poseidon foram redefinidos, deixando ele de ter tutela sobre as águas subterrâneas e
DEMÉTER
de ter a sua ligação “matrimonial” com Geia se fixado na direção de Deméter, deusa dos grãos, das plantações e das colheitas. Foi por causa deste novo papel assumido que Poseidon adotou como símbolo o cavalo, um símbolo muito compatível com o seu poder na medida em que a corrida das ondas do mar lembram bastante o tropel de cavalos, com as suas crinas agitadas ao vento (as espumas das ondas).



Uma história que faz parte da crônica das
ARION
duas divindades acima mencionadas nos conta que Deméter, em visita à Terra, à procura de sua filha Kóre, raptada por Hades, para escapar à sanha erótica do deus, tomou a forma de uma égua. Poseidon, imediatamente, assumiu o aspecto de um potente garanhão, conseguindo emprenhá-la de modo a torná-la mãe de Arion, um cavalo de crinas azuis e espantosamente veloz. 


Esta história é uma das muitas que encontramos nos mitos gregos para ilustrar fatos e acontecimentos sociais. A relação entre Poseidon, na forma de um cavalo, com Deméter, na forma de uma égua, é evidentemente ilustração de um fato importante de um período da história grega, talvez entre o neolítico e o arcaico, em que a agricultura, então se desenvolvendo, ganhou novo impulso com a utilização do cavalo. Sob o ponto de vista astrológico, o que temos aqui é uma clara ilustração do eixo zodiacal Virgem (Deméter)-Peixes (Netuno).

É muito conhecida a passagem mítica que nos dá a conhecer como Poseidon “inventou” o cavalo. Tudo começou quando a população
de Atenas (quando?) resolveu instituir um símbolo que melhor representasse a cidade. Duas divindades se apresentaram em atendimento a uma convocação feita, Palas Athena e Poseidon. Comprometeram-se ambas a “inventar” alguma coisa que, no entender dos habitantes da cidade, lhes fosse mais útil. Palas Athena “criou” a oliveira. Poseidon “criou”, sob o nome de Hippios, o cavalo. O povo de Atenas optou pela “invenção” de Palas Athena, tornando-a sua padroeira.



     
Este acontecimento tem, entretanto, outra versão, mais “mítica”, digamos, do tempo do rei Cecrops, o fundador e primeiro rei mítico de Atenas. Esse rei era um ser híbrido, sendo humano da cintura
CECROPS
para cima e tendo a forma de uma serpente na parte inferior de seu corpo. Foi durante o reinado desse rei que os deuses escolheram as cidades em que seriam honrados. Essa decisão ocasionou alguns problemas, pois aconteceu de mais de uma divindade escolher a mesma cidade, o que gerou vários conflitos. Na disputa pela tutela de Atenas, Poseidon, uma divindade “pouco simpática”, foi preterido. Demonstrando a sua força, ele invadiu a região, que então se chamava Cecrópia  e, fincando o seu tridente, fez brotar da terra, uma fonte, um mar disseram outros (Atenas ficava longe do litoral). Palas Athena, meio temerosa, veio em socorro de Cecrops e, para demonstrar que podia oferecer à cidade algo valioso, plantou uma oliveira, vegetal até então desconhecido. As oliveiras reproduziram-se quase que instantaneamente. Poseidon, tomado de grande raiva, inundou toda a região, embora tivesse recebido como compensação a ilha-continente Atlântida.  

Embora não participasse ativamente da vida olímpica, Poseidon sempre foi um dos doze grandes. Heródoto deixou-nos informações sobre o deus, tendo levantado a hipótese de  que ele era um “importado”, como todos, aliás. Isto é, para o historiador o modelo Poseidon teria vindo do norte da África, mais exatamente da Líbia. O que parece mais correto é considerá-lo como uma divindade pelágica de um povo que viveu na Grécia e no Egeu, antes da chegada dos aqueus. Esta divindade seria mais antiga que o próprio Zeus. Suas atribuições eram então muito maiores do que aquelas que lhe foram fixadas no panteão grego. 

Várias hipóteses foram levantadas sobre a origem do nome Poseidon. Falou-se que viria de potos, bebida, ou de potamos, rio. O mais correto, porém, seria aproximar o nome do radical pot, que quer dizer ser o mestre, como está acima. Em grego, temos, por exemplo, despotes e, em latim, potens. Também não é impossível que o primitivo Poseidon tenha sido uma divindade celeste, como parece indicar o seu principal atributo, o tridente, símbolo do raio. 



Suplantado por Zeus, Poseidon continuou a exercer de algum modo o seu poder sobre o elemento terra, como o demonstram as suas lutas e conflitos com outras divindades que disputaram a supremacia sobre diversas regiões da Grécia. Tudo isto parece confirmado pelos seus muitos epítetos. Como está em Homero, um deles é enosichthon, aquele que abala a terra. Poseidon é, com efeito, a divindade dos maremotos (tsunamis). É por esta razão que muitas vezes é chamado de Zeus Enalios (Zeus Marinho), estendendo-se seu poder das águas dos mares e dos oceanos até a terra, que invade furiosamente, como o fez por exemplo com o noroeste de Creta, provocando um maremoto que destruiu essa parte da ilha.

 
Deus nacional dos jônicos do Peloponeso, que o levaram para a Ásia quando emigraram, Poseidon era particularmente venerado em Esparta, onde era chamado de genethlios, o gerador, o criador. Seu culto, porém, estendia-se por toda a Grécia, sendo honrado especialmente nas cidades do litoral ou próximas do mar, como Corinto, Rodes e outras, chegando mesmo a suplantar as divindades locais. 

Dentre os animais que o simbolizavam, o cavalo e o touro eram muito importantes, na medida em que representavam, o primeiro, o jorro impetuoso das fontes e, o outro, a sua poderosa ação fecundante. Uma das festas mais significativas dedicadas ao deus chamava-se exatamente Taureia, na qual se imolavam touros negros. Eram também celebradas em homenagem a Poseidon corridas de cavalo, muito apreciadas na Tessália, região onde o deus havia feito nascer o animal. 

Artisticamente,  entre  os  antigos  gregos,  a   imagem   oficial    de
Poseidon sempre se assemelhou muito a de Zeus. De pé, é sempre majestoso, o busto nu, apoiado no tridente. O que difere de Zeus, e muito, é a expressão do seu rosto, que nada tem da serenidade do irmão. Há sempre uma tensão no rosto de Poseidon, sua expressão é ansiosa, sua cabeleira é revolta e sua barba muito espessa. 

Como já disse, Poseidon era filho de Cronos e de Reia, um crônida, portanto, como o eram seus irmãos, Zeus e Hades, e suas irmãs, Hera, Deméter e Héstia, esta a mais velha. Quando Zeus abriu combate contra os Titãs e os Gigantes, Poseidon se colocou a seu lado e matou o gigante Polybotes, lançando contra ele fragmentos de rochas retiradas da ilha de Cos. Depois da vitória,  recebeu, além da tutela dos oceanos e dos mares, a supremacia com relação à umidade e, como tal, passou a influenciar bastante o mundo vegetal, as plantações, em especial, mantendo relações muito próximas com a área tutelada por sua irmã Deméter.

Igual a Zeus, por ascendência e em dignidade, não aceitava passivamente a supremacia universal do irmão. Irritava-se muito, chegando mesmo a conspirar contra ele, num complô organizado por Hera e Palas Athena. Fracassando o golpe, Poseidon teve que amargar um exílio terrestre, indo servir por um ano o orgulhoso Laomedonte, tendo construído para ele os muros de Troia. 

Laomedonte foi um dos primeiros reis de Troia, tendo assumido, por sucessão, o trono de Ilo. Foi pai de Podarces, depois chamado Príamo. Na construção das muralhas de Troia, Poseidon dividiu o trabalho com Apolo, ambos ajudados pelo mortal Éaco. Terminada a grande e cansativa tarefa, o rei se recusou a lhes pagar o salário devido e ainda os ameaçou fisicamente. Apolo puniu a cidade, enviando-lhe uma terrível peste. Poseidon ordenou, como era seu costume, que um pavoroso monstro marinho surgisse das águas e matasse os rebanhos e os homens que trabalhavam nos campos, perto do litoral.

O império de Poseidon era imenso. Além dos oceanos e mares,
GIGANTOMAQUIA   (PERGAMON)
tinha sob sua dependência os rios, lagos, lagoas e a própria terra, pois era ele que a sustentava sobre as suas águas, podendo causar-lhe sérios abalos, conforme a sua vontade. Ele já demonstrara do que era capaz quando, na Gigantomaquia: fendeu a terra com o seu tridente e fez com que os gigantes rolassem pelo abismo que criou em direção do mar. Lá, usou-os para formar as primeiras ilhas e se autopromoveu como sua divindade tutelar.




Astrologicamente, como sabemos, as ilhas, são de natureza netuniana; afastadas da agitação das cidades do mundo continental, sempre simbolizaram um ideal maravilhoso, de realização de aspirações superiores, de desejos inacessíveis, lugares espetaculares, como a Atlântida, um paraíso perdido. Este tema do paraíso perdido é, sem dúvida netuniano sob o ponto de vista astrológico e cada ser humano o carrega nostalgicamente no seu inconsciente. É nesta perspectiva que podemos nos referir também, por exemplo, às ilhas maravilhosas dos “imortais” taoistas que as atingiam voando. Tais ilhas eram uma metáfora netuniana do centro da sua personalidade psíquica, constituída pela consciência e pelo oceano infinito da alma (inconsciente) no qual ela flutuava.  


Por sua posição, afastadas da agitação terrestre, as ilhas são
CALYPSO  (ANATOLE CALMELS)
um 
convite ao exílio e ao afastamento do mundo, um lugar de retiro, de paz, de felicidade. Por isso, em muitas mitologias as ilhas são a imagem de cosmos perfeitos e completos, representando um valor sagrado concentrado. Dois importantes personagens da Odisseia de Homero vivem em ilhas, Calypso e Circe. A primeira era filha de Atlas e de Pleione, uma oceânida; vivia na ilha de Ogígia, um lugar paradisíaco no qual procurou reter Ulisses,
CIRCE E ULISSES
oferecendo-lhe a imortalidade. Circe, a maga, residia também numa ilha, Eeia,e, como sabemos, tentou também fazer com que o herói não voltasse para a sua Ítaca (outra ilha) e para os braços de sua mulher, Penélope. As ilhas míticas são geralmente habitadas por mulheres temíveis, dotadas de grande poder, muito sedutoras,"cruéis cantoras" e invariavelmente peritas na arte de tecer. 


Destaque especial quanto às ilhas é o que merece a Atlântida, acima mencionada. Segundo Platão,  no  Crítias,  quando  os deuses
dividiram o mundo, Poseidon recebeu a Atlântida, país dos atlantes, imensa ilha-continente situada a oeste das colunas de Hércules. O deus foi aí viver em companhia de uma jovem, Clito, que lhe deu dez filhos. O mais velho chamava-se Atlas e dividiu o território em dez estados, ficando com o central, onde se localizava a maior elevação da ilha. Os demais territórios, governados pelos outros irmãos, prestavam vassalagem a Atlas. Aí eram exploradas muitas riquezas naturais, cobre, ferro ouro, prata etc. Cidades foram fundadas, palácios construídos, estradas abertas, muralhas, portos. 

Nove mil anos antes de Platão, os atlantes tentaram dominar a África e a Ásia, mas foram repelidos pelos atenienses e seus aliados. Por seu imenso orgulho e pela degradação moral em que viviam, os atlantes receberam punições dos deuses, sendo a ilha inteiramente engolida pelas águas oceânicas. Só uns poucos habitantes escaparam para contar a história. A catástrofe do dilúvio, presente em todas as tradições, seria uma lembrança do que aconteceu com a Ilha. 

 O mito desenvolvido por Platão provém de uma lenda egípcia recolhida pelo sábio Solon numa de suas viagens ao país dos faraós.
A Atlântida, como utopia, onde encontramos ideias sobre teorias políticas, já era, efetivamente, tema caro aos egípcios, fazendo depois parte das Leis de Solon. É neste sentido que podemos entender obras que mais tarde foram escritas sobre a ilha como a Nova Atlantis (1627), inacabada, de autoria de Francis Bacon. 

No texto de Bacon aparece a república de Bensalem que outra não é senão a Atlântida, a cidade ideal das ciências onde tudo funciona de maneira organizada e harmoniosa. Retomado no Renascimento, graças ao descobrimento da América, o mito da Atlântida foi novamente posto em circulação. No séc. XIX, a atlantomania perde seu interesse científico para se tornar um dos temas de eleição de movimentos esotéricos. Histórias sobre os atlântidas são encontradas na Índia e entre os povos antigos das Américas e revelam que a cultura dos povos europeus e americanos foi muito influenciada pelo tema, que seria, sendo a ilha para esses povos uma espécie de paraíso antediluviano. Ainda segundo essas histórias, o Egito teria sido uma colônia atlântida e a invenção do alfabeto fonético pelos fenícios teria sido também de inspiração dos sábios da ilha. Os povos árias e semíticos descenderiam dos atlântidas, assim como todas as raças chamadas táuricas (era de Touro), da Ásia Menor.

Quem  muito  se  interessou  pela  Atlântida  foram  os  teosofistas,
entre os sécs. XIX e XX. Para eles, os atlântidas desenvolveram uma avançada civilização, cuja característica principal era o domínio de uma tecnologia mágica, baseada numa energia psíquica chamada “vril”. Com essa energia eles teriam construído, segundo os teosofistas, barcos voadores e criado novas espécies de animais e plantas, além de transmutar os elementos. Os teosofistas nos dizem que a capital da Atlântida tinha o nome de ‘Cidade dos Portais de Ouro”, muito semelhante à descrita por Platão. É preciso ressaltar que as
HELENA BLAVATSKI
informações por eles transmitidas foram obtidas a partir de visões e comunicações de espíritos, tudo conforme pode ser verificado na obra de escritores teosóficos como Helena Blavatski, Annie Besant, C.W. Leadbeater e outros. Essas informações por eles veiculadas sempre foram refutadas pela ciência oficial.


A Atlântida foi um tema que sempre atraiu muitos curiosos. Depois de Bacon, no séc. XVII, o sueco Rudbeck nos deu a obra L´Atland ou Manhem, vindo a seguir outros que procuraram ligar o mito aos fundamentos  de  seus  países.  A  partir  de  então  genealogias  e
filiações foram estabelecidas. A literatura romanesca encampou o tema, como o fizeram Júlio Verne (Vinte Mil Léguas Submarinas) e Pierre Benoit (L´Atlantide). Na obra deste último, a heroína, Antinea, atrai para o seu palácio os viajantes, fazendo-os perecer no ato amoroso para depois mumificá-los. O cinema, em 1932, com W. Pabst, se apoderou do
tema, fazendo o mesmo os italianos em l961. Título do filme: Hércules, o Conquistador, tendo como personagens principais o nosso herói e Antinea, como rainha da fabulosa ilha. 

Lembro que no século XIX, Lord Edward George Bulwer-Lytton, autor de dois grandes sucessos editoriais (Os Últimos Dias de Pompéia e Zanon, romance ocultista), publicou um interessante livro
BULWER-LYTON
sobre a Atlântida: Vril, o Poder da Raça Futura. Ocultistas de várias partes do mundo viram no Vril uma antecipação daquilo que mais tarde tomaria o nome de energia nuclear. Lembro ainda que no início da segunda metade do séc. XX dois jornalistas franceses, Louis Pauwels e Jacques Bergier, publicaram um dos maiores sucessos editoriais de então sobre o que chamaram de realismo fantástico, o livro Le Matin des Magiciens (O Amanhecer dos Mágicos), de leitura muito

estimulante pela grande variedade de temas abordados com relação ao que aqui se coloca. Nesse livro, os dois jornalistas nos falam de uma sociedade secreta, a Sociedade do Vril, que procurava aproximar as descobertas científicas modernas do vril da Atlântida. 

 Outros temíveis habitantes de ilhas são as Sereias, palavra que sugere em grego (seirá) ideias de enredamento, de armadilha. A origem das sereias é discutível. A versão que mais se ajusta ao nome que têm é a de que elas eram jovens de grande beleza que não prestavam culto a  Afrodite.  Nada
queriam saber com a vida amorosa, nenhum afeto, nenhum sentimento. A deusa então as transformou nuns seres híbridos, metade peixe, metade mulher. Lindíssimas da cintura para cima, eram totalmente frígidas da cintura para baixo. Afrodite fez também com que elas desejassem se entregar avidamente aos conluios amorosos, instigadas pelo deus Eros. Contudo, como não podiam gozar do prazer sexual, passavam a vida atraindo homens e forçando-os à consumação do ato amoroso, na esperança de que um dia o encantamento de Afrodite se desfizesse. Como tal não acontecia, elas os matavam.

Muito belas, atraentes, viviam na ilha de Antemoessa. Ficavam nos penhascos, na expectativa de que alguma embarcação por ali passasse. Assim que viam uma, atiravam-se ao mar e ficavam a
SEREIA DE COPENHAGEN
nadar em torno dela, entoando harmoniosas canções. Não resistindo, os marinheiros pulavam na água, para uma morte certa. No caso de Ulisses (Odisseia), que procurava o caminho de volta para casa, se não fossem as advertências de Circe, nosso herói certamente teria morrido: “Ser-te-á necessário passar perto delas. Elas encantam todos os mortais que delas se aproximam. Mas muito louco é aquele que se detém para ouvir os seus cantos! Jamais, em seu lar, sua mulher e os seus filhos festejarão o seu regresso, pois, com o seu mavioso canto, as Sereias o encantarão.” 


 A antiguidade greco-latina sempre salientou o caráter demoníaco e
RAPTO DE KORE
sanguinário das Sereias. Na mitologia grega, o número variou de dois a quatro. Entre os gregos duas outras versões nos informam sobre sua origem. A primeira as faz filhas do deus-rio Aqueloo e de Melpômene, uma das Musas, a da tragédia. Outra versão nos informa que as Sereias eram, antes de adquirir essa forma, jovens companheiras de Kore que presenciaram o seu rapto pelo deus Hades e nada fizeram. Deméter, cheia de raiva, as transformou em mulheres-pássaros, que depois tomaram a forma marinha.


Já no V séc. aC, as Sereias apareciam associadas ao mundo dos mortos. Dizia-se que elas os acompanhavam ao Outro Lado. Na Itália meridional, eram comuns, populares, pequenas estátuas em terracota de Sereias que carinhosamente acompanhavam um morto. O filósofo neoplatônico Proclus (V séc. dC), classificou as Sereias da seguinte forma: as celestes eram de Zeus; as sedutoras eram de Poseidon e as purificadoras, de Hades.

SERES DO MAR
   
Elas fizeram parte das tradições míticas e da arte (literatura, poesia, escultura) até o início do século XX. Há inúmeros depoimentos de cientistas, de navegadores, de náufragos e de viajantes sobre esses seres, atestando a sua existência. A partir do séc. XX, a ciência rejeitou completamente essa possibilidade, mas isto não significou que a crença tenha desaparecido.  

APOLO   DELFINUS
   
Sob o ponto de vista analítico, a ilha é um dos temas fundamentais enquanto simboliza um desejo de felicidade terrestre ou eterna.
Simbolicamente, ela tem relação com o mundo feminino, com a anima, com a mãe. A busca de uma ilha como retiro, promessa de felicidade, é um movimento de retorno, um regressus ad uterum e, como tal, essa busca terá sempre algo de incestuoso. Como exemplo, cito aqui o caso de Tristão que, ferido de morte por Morholt, deixa-se levar pela barca sem velas até atingir a Irlanda, ilha onde ele terá a visão de Isolda, a loira. 

Cercadas de ambiguidade, as ilhas são atração de forte caráter
RAPTO DE EUROPA  (RUBENS, MUSEU DO PRADO)
netuniano, imagem de uma vida superior, espiritual, mas, também possibilidade de influências demoníacas. Os antigos gregos, aliás, viam Creta dessa maneira. Por um lado, sagrada, pois nela, no monte Ida, nascera Zeus; Dioniso, o deus das metamorfoses, ali passou a sua infância e foi nela que Zeus, na forma de um touro branco maravilhoso se uniu em Górtina à princesa fenícia Europa. Carregada de sagrado por um lado, Creta, por outro, por ser de Minos, Pasífae e do Minotauro, exemplos vivos da hybris, do descontrole material e sensual, é a ilha dos prazeres descontrolados, símbolo mal.


Neste item, não posso deixar de mencionar o tema das ilhas dos Afortunados (makaron nesoi, em grego; Fortunatae Insulae, em latim), encontrado em algumas tradições, como a chinesa e a grega. As referências a elas são encontradas em Hesíodo (Os Trabalhos e Os Dias). O mito nos revela que Zeus, sentindo-se fortalecido no poder, depois da vitória dos olímpicos sobre Cronos, enviou seu pai para a Ilha dos Afortunados. Na concepção dos gregos, ela ficava nos confins do ocidente, além dos limites do deus Oceano. Píndaro e, entre os romanos, Plínio também a mencionam. Os gregos para lá enviaram Aquiles depois da sua morte, onde Helena foi encontrá-lo, para  que  ambos   conhecessem   a   felicidade   eterna.   Quem   se
encarregou do transporte do corpo do grande guerreiro foi sua mãe, Tétis. Para a Ilha, segundo os gregos, iam os heróis, os santos, as pessoas que haviam praticado o bem quando em vida. A Ilha dos Afortunados é descrita como uma espécie de Campos Elíseos (do verbo eleutho, aliviar, libertar), mas sem o caráter infernal. A Ilha dos Afortunados é identificada, no geral, com lugares inacessíveis onde reina a felicidade. Ela simboliza o paraíso no Outro Lado. A geografia mítica no mito mesopotâmico de Gilgamés a coloca, por exemplo, num lugar chamado Dilmun, hoje identificado com o emirado de Bahrein, no golfo pérsico. Acredita-se que o mito da ilha de Avalon tenha sido a versão medieval deste tema.

Plínio, o grande naturalista romano, em sua História Natural, descreve estas Ilhas como um lugar onde abundam os frutos e as
aves de todo tipo. Ele acrescenta, estranhamente, que a beleza das Ilhas é manchada pela putrefação dos corpos de monstros que vão dar, mortos, às suas praias. No século XX, o nome grego makaron nesoi foi adotado pela biogeografia para dar nome a uma região ecológica formada pelas ilhas dos Açores, Madeira, Cabo Verde e parte da costa marroquina. As Ilhas Canárias já eram mencionadas em textos nos quais se registrava que os cartagineses já as conheciam. A palavra “canárias”, ao que parece, tem relação com a palavra cão (canis), mastins, no caso, lá encontrados em grande número.  

Essas ilhas localizar-se-iam em algum lugar do imenso rio-serpente do deus Oceano. Aos poucos, aumentando o conhecimento geográfico, no séc. XIII, as Ilhas Afortunadas ou Abençoadas foram identificadas com as Canárias, já notadas pelos árabes e por outros navegadores europeus. O mais recuado meridiano ocidental conhecido até então era o que passava pela ilha Tenerife (tener,
ilha, e ife, branca, do antigo espanhol), a “Insula Alba”, dos latinos.  Depois, o meridiano foi deslocado para outra ilha, mais a ocidente, a Ilha do Ferro, ambas do mesmo arquipélago. Em 1884, por convenção internacional, esse meridiano foi substituído pelo de Greenwich.  Recentemente, as ilhas de Cabo Verde, Canárias, Açores e Madeira uniram-se para formar uma confederação político-econômica de grande potencial a que deram, honrando os antigos gregos, o nome de Macaronésia. 

Por último, quanto ao tema netuniano das ilhas, não se pode
ROTA DOS ARGONAUTAS
esquecer das chamadas ilhas “instáveis” ou “inconstantes” como a mitologia grega as apresenta. Lembro das ilhas Simplégades, que aparecem no mito dos Argonautas. São dois grandes rochedos que se movem, situados no Bósforo, entre o Mediterrâneo e o mar Negro. Imprevisíveis na sua movimentação, esmagavam os navios que se aventuravam no estreito. Elas simbolizavam uma dificuldade que não poderia ser resolvida só pela força e pela coragem. 


Outra ilha “instável” era Ortígia, que aparece na história de Leto. Grávida de Zeus, Leto andou pelo mundo inteiro à procura de um local onde pudesse dar à luz os gêmeos Ártemis e Apolo. Hera, a esposa imperial de Zeus, havia proibido que a terra acolhesse Leto.
A Senhora do Olimpo desconhecia que havia no Mediterrâneo uma ilha flutuante, estéril, que não estava fixada em lugar nenhum, não fazendo, portanto, parte da terra. A ilha se dispôs a abrigar a parturiente, pois estava fora da proibição de Hera. Ortígia, como nos conta o mito, teve o seu nome mudado por Apolo para Delos (Brilhante), que a fixou como o Centro do Mundo, o lugar onde ele e a irmã, os Luminares, haviam nascido.