terça-feira, 7 de junho de 2011

A VIA LÁCTEA



No sentido figurado, via é qualquer meio de que se serve alguém para alcançar um resultado, um objetivo. Às vezes, o caminho nos é imposto, como no caso da Via Crucis, uma grave provação, experiências terríveis a que podemos ser submetidos. A expressão nos vem da Via Dolorosa, o trajeto seguido por Cristo do Pretório até o Calvário, carregando a cruz. Metaforicamente, é o período na vida de alguém repleto, cheio, de tribulações, de sofrimentos, de experiências dolorosas. Na Mitologia grega encontramos, outros exemplos relacionados com o tema acima, com um outro sentido. A via como passagem, como travessia entre dois mundos, de um plano a outro do cosmos. Um deles é o da Via Láctea ou Galáxia.




A tradição, principalmente européia, de se ver nessa luz esbranquiçada um rastro de leite derramado no céu e a origem do nome vêm de uma história sobre a infância de Hércules, o famoso herói grego. Metade humano, metade divino, Hércules, para se tornar inteiramente divino, imortal, deveria mamar no seio de uma deusa, Hera no caso, esposa de Zeus, seu pai divino. Uma versão da história nos diz que foi Hermes quem colocou a criança no seio da deusa adormecida. Outra nos revela que foi a deusa Palas Athena quem sugeriu que Hera amamentasse a criança encontrada por ambas, abandonada no alto de uma montanha. Athena sabia de quem se tratava, Hera não. O que fica, qualquer que seja a versão, é que a criança abocanhou o seio de Hera com tal violência que a deusa desvencilhou-se dela, jogando-a longe. O leite então escorre-lhe do seio, deixando um rastro pelo céu.

O universo, como sabemos, tem bilhões de galáxias (gala, grego, círculo de leite). As galáxias, como a nossa, tem bilhões de estrelas, cerca de 100 bilhões de estrelas. A Via Láctea tem a forma de uma objetiva; nosso sistema solar está dentro dela, um pequenino ponto dentro da sua imensidão, além nebulosas, aglomerados estelares, poeira e gás. A visão da galáxia é semelhante à de um rastro de leite, indicador de uma trilha, um caminho, uma via.

Em todas as tradições, nos cinco continentes, desde a mais remota antiguidade, se fizeram interpretações desse rastro esbranquiçado. Para os muçulmanos, é o caminho que leva a Meca. Para os católicos europeus, é o dos peregrinos de Santiago de Compostela. Uma outra lenda, revela que Santiago apareceu na Via Láctea a Carlos Magno e indicou-lhe o caminho para ir à Espanha, descobrir o seu túmulo. No mundo inteiro, a Via Láctea é o caminho das almas que partem para o além; em sua extremidade está a terra dos mortos.

Em muitas outras tradições, a Via Láctea aparece como uma das passagens do nível terrestre ao divino, assegurando de noite uma função que de dia é do arco-íris. Os chineses antigos, para quem a Via Láctea é um grande rio celeste, dizem que ele desemboca no Sudoeste, num abismo sem fundo, onde as mães dos sóis e das luas banham diariamente seus filhos antes que eles se mostrem nos céus.


Nas Américas, na tradição Maya-Quiché, na América Central, a Via Láctea é representada como uma grande serpente branca, como está no Popol-Vul ou O Livro do Conselho. Para os Astecas, a serpente galáctica era devorada diariamente por um deus-águia, divindade solar. Qualquer que seja a tradição, a ideia de passagem, uma via que une dois mundos. Exploradores, místicos, peregrinos, viajantes, caravaneiros, marinheiros, todos usam a Via Láctea como símbolo de união entre dois estados, dois modos de ser, de um nível a outro do psiquismo humano.

A Via Láctea cruza a eclíptica entre 21º de Gêmeos e 1º de Câncer; entre 12º e 20º de Sagitário; e entre 29º de Sagitário e 6º de Capricórnio. Até o século XVIII, o último planeta visível do sistema solar era Saturno. No final desse século, foi descoberto o planeta Urano; em meados do século seguinte, Netuno; na década de 30 do século passado, o planeta Plutão. Estes três planetas são considerados por alguns astrólogos como “embaixadores da Galáxia”, já que fazem a transição do sistema solar, a que pertencem, para a Galáxia. Ou seja, abrem perspectivas de saída de um sistema “fechado”, o solar, para o grande todo galáctico. Não é por outra razão que, simbolicamente, a Via Láctea é conhecida como o “caminho dos heróis”, o caminho daqueles que buscam o autoconhecimento, uma viagem que, no fundo, ao invés de apontar para conquistas externas, só pode ser feita para a imensidão do nosso mundo interior.

Uma das mais fantásticas “leituras” da Via Láctea está no Caminho de Santiago de Compostela. Este Caminho, como sabemos, tem direção para o oeste, terminando na Galícia (nome de origem provavelmente celta), no extremo ocidente da Espanha, cuja capital é a cidade de Santiago de Compostela. Os caminhos que levam a Compostela foram, desde tempos muito remotos, desde a pré-história, trilhados por um grande número de peregrinos, atraídos às vezes por um chamado instintivo indecifrável, noutras por um desejo de desenvolvimento pessoal, mantido por gerações, propostas que a tradição cristã adota, renova e adapta.

Desde meados do século IX, espalhou-se pelo ocidente cristão que no fim da costa cantábrica se descobrira milagrosamente o túmulo de Tiago, o Maior, apóstolo de Cristo. Desse século em diante, um grande número de crentes começou a se dirigir para lá com a finalidade de venerar as relíquias. Falava-se de milagres, de acontecimentos fabulosos... Quem, no ocidente europeu, não podia ir a Jerusalém ou achasse Roma não tão importante, gente da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra e de outros lugares, a Compostela se dirigia. No séc. XI, com a invasão turca, tornou-se perigosa a viagem à Terra Santa. A peregrinação a Santiago de Compostela foi considerada então tão meritória quanto aquelas a Jerusalém ou a Roma. Os franceses, dentre os europeus, sempre se sentiram muito atraídos pelo santuário. Os religiosos da abadia de Cluny e depois os de Cîteaux foram chamados pelo rei de Navarra para reformar os mosteiros e organizar o caminho. O santuário de Compostela. Abriram-se refúgios, albergues, casas de acolhimento; ordens militares começaram a vigiar as rotas.

O número de peregrinos aumenta em julho, entre os dias 15 e 31, quando se comemora a festa do santo (dia 25).


A chegada se dá na catedral de Compostela, de estilo românico, erguida entre os séculos XI e XII, substituindo o primitivo templo. Por essa mesma época apareceu o Guia do Peregrino, atribuído ao papa Calisto II, que é considerado o primeiro guia de viagens da Idade Média, passando a ser conhecido como o Codex Calixtinus. Esse guia descrevia o caminho, o melhor modo de percorrê-lo, indicava os lugares de culto, onde se poderia comer e dormir, quais os melhores pratos. Na Semana Santa, por exemplo, os pobres, que, em outras épocas do ano, recebiam um pedaço de pão e um copo de vinho gratuitamente, recebiam agora um caldo de verduras e bacalhau.


Da França partiam quatro estradas, as principais, em direção de Compostela: de Paris (Tour Saint Jacques), de Vézelay, de Le Puy e de Saint-Gilles, fazendo-se a travessia pelas passagens dos Pirineus. Os peregrinos que partiam da França eram chamados de jacquaires (Tiago, em francês, é Jacques). Os caminhos convergiam para a região de Pamplona (terras da Lua), de onde se partia para a arrancada final em direção do santuário.

Tiago Maior era filho  de  Zebedeu  e  de  Maria  Salomé, irmão de João Evangelista. Segundo consta, nascera perto de Cafarnaum, em Bethsaid, também lugar de nascimento dos apóstolos André, João, Felipe e Pedro. Tiago Maior era conhecido como um dos “boanerges”. O outro era seu irmão João, ambos, portanto, filhos de Zebedeu). O nome havia sido dado aos irmãos por Jesus, tendo o significado de “filhos do trovão”. São Jerônimo esclarece que o epíteto dever-se-ia à eloquência de ambos; outros, porém, atribuem-no a uma orgulhosa conduta. A palavra vem do hebraico, b´nayrege, “filhos do trovão”. O nome Tiago está ligado a Jacob, Jacobus, Iacob, Diogo, Diago, Iago (Shakespeare)... O outro Tiago, o Menor, também chamado de o Justo, é identificado por alguns (Mateus, XIII, 55) como irmão de Jesus. Morreu lapidado em 62.


A lenda nos conta que Tiago, depois da morte Cristo, pregou na Judeia e na Samaria, dirigindo-se depois pelo Mediterrâneo, ao extremo ocidente europeu, com o objetivo de cristianizar a região. Chegou à Espanha e, segundo consta, nas suas pregações estava sempre acompanhado por um cão. Sem muito sucesso, acabou retornando à Judeia, onde foi decapitado.


Alguns discípulos levaram seu corpo e o depuseram numa embarcação, para que fosse levado pelas águas, deixando sua sepultura aos cuidados da providência divina. Orientado pelos anjos, o barco chega à Galícia, num dia 8 de agosto. Depois de muitas peripécias, o corpo, encontrado por antigos discípulos, acabou sepultado, ficando o local esquecido por muitos séculos. Por volta de 820, no reinado de Afonso, o Casto, o corpo foi encontrado por pastores e por um eremita chamado Pelágio (homem do mar), avisado por umas luzes celestes, que indicam o local, erguendo-se ali uma igrejinha primitiva.



No ano de 844, perto de Logroño, consta que, durante uma encarniçada batalha entre mouros e espanhóis, apareceu um cavaleiro montado num cavalo branco, com um estandarte onde havia uma cruz vermelha sobre um fundo branco, espada flamejante à mão; esse cavaleiro precipitou a sorte da batalha, que favoreceu os espanhóis. Os cristãos nele reconheceram Santiago, o Mata-mouros.

Há várias versões sobre a chegada do corpo de S.Tiago à Espanha e o que aconteceu a seguir. Uma delas diz que quando o barco chegou à embocadura do rio Ulla ele estava coberto de conchas, as mesmas que iriam servir de insígnia e de símbolo dos peregrinos no futuro. Essas conchas são as vieiras, mérelles, em francês, “mães da luz”. Quando a sepultura do apóstolo foi encontrada pelo eremita e pelos pastores, estava depositada sobre ela uma estrela. A notícia logo correu, chamando-se daí em diante o local de campus stellae, campo da estrela. Outros, contudo, afirmam que o nome Compostela viria de compostum, cemitério, em latim antigo. Outros ainda, na tradição alquímica, dizem que o nome viria de compost, estrela que se forma na superfície do crisol por ocasião de uma das primeiras operações da Arte. À sucessão de operações que conduzem a obtenção da pedra filosofal muitos alquimistas ocidentais dão o nome de Via Láctea ou Caminho de Santiago.

A peregrinação era, assim, uma viagem em direção ao campo da estrela. A rota seguida era a da Via Láctea, no fim da qual se encontra a constelação do Cão Maior. Esta constelação se estende de 0º de Câncer a 0º de Leão, sendo Sírius, chamada a estrela da Canícula, sua principal estrela (cerca de 14º de Câncer). Sirius, vem do grego, seirios, brilhante, ardente, e é a mais brilhante estrela do céu, 27 vezes mais que o nosso Sol. Já na Astrologia, dentre os doze apóstolos que representam as doze constelações zodiacais, Tiago Maior simboliza o signo de Aquário; o signo oposto, Leão, é representado por Tiago Menor.

O chamado caminho francês para Compostela está compreendido entre as latitudes 46º30’ e 46º36’. Desde a Catalunha francesa, do chamado pic d'Estelle, sai uma linha onde encontramos várias localidades designadas por nomes que têm relação com estrela, inclusive Lizarra, basco, estrela.


Ou com astros e luz (Astray, Les Eteilles, Estillon, Liciella).

Sabe-se hoje que todos esses lugares, que formam um rota no sentido leste-oeste em direção de Compostela já existiam desde tempos imemoriais. Presumem muitos estudiosos da questão que muito antes da era cristã, alguém detinha um conhecimento suficiente de topografia, de geografia e de astrologia para fixar o caminho nesse paralelo terrestre, ligado à Via Láctea, um conhecimento muito superior a tudo que historiadores e pesquisadores poderiam admitir.

O aproveitamento dessa rota pelo Cristianismo é evidente, para nela se “encaixar” o tema Santiago de Compostela. Não há o que se estranhar quanto a estes “aproveitamentos”, bastando lembrar, por exemplo, dentre outros, que o Cristianismo fixou a data do Natal exatamente em cima da data em que na Roma antiga eram celebradas as Saturnálias, em honra ao deus Saturno, com alguns pontos de contacto com o Natal.

O espanto cresce se considerarmos que o eixo acima apontado não é o único no ocidente a se relacionar com lugares “sagrados”. Há outras rotas, nas quais estão semeados monumentos megalíticos e restos toponímicos que apontam para lugares “sagrados”. Na Inglaterra, há um traçado que parte de Dover e na França outro que parte da Alsácia que levam a lugares onde encontramos ligações com a lenda do Graal, uma lenda celta renovada pelo Cristianismo. A via inglesa se estende pelo paralelo 51º18’. A via francesa segue o paralelo 48º27’.

O espanto se tornará ainda muito maior se soubermos que um outro peregrino veio de longe para desembarcar na Galícia. Referimo-nos a Hércules, que, quando do seu 12º trabalho, o da captura do gado vermelho, dominado pelo gigante Gerião, numa ilha que ficava além do Mediterrâneo, desembarcou com os animais na península ibérica, em La Coruña, onde existem até hoje vestígios de uma edificação no local, conhecida como a “Torre de Hércules”, desde muito antes da era cristã.

Todas essas histórias falam de um caminho em direção do ocidente, que corresponde ao outono, à indiferenciação, ao poente, queda da luz. Lao Tse, por exemplo, quando “sente” a morte, monta num búfalo e toma o caminho do poente. Ulisses, quando decide obter informações do vidente Tirésias, que estava no Hades, tem que passar pelo país dos Cimérios, ao poente, perto da morada dos mortos.

A peregrinação a Compostela simboliza no fundo um afastamento com relação ao presente, a busca de um novo eu, uma morte simbólica. Ideias de purificação e de expiação podem estar implícitas na disposição daqueles que se lançam no caminho.


O bastão que o peregrino usa é emblema importante enquanto revela não só despojamento como indica vontade firme, verticalidade, autocontrole. Quanto à concha, outro emblema, lembremos que ela se associa sempre à fertilidade, à água, a nascimentos, a algo que se gera, principalmente pela sua forma, semelhante ao órgão sexual feminino.

O caminho de Santiago de Compostela, nos seus desdobramentos alquímicos, tem o seu melhor entendimento nas palavras sempre magistrais de Fulcanelli, em As Mansões Filosofais : Esta peregrinação todos os alquimistas são obrigados a empreendê-la. Pelo menos em sentido figurado, porque é uma viagem simbólica, e aquele que deseja extrair dela proveito não pode, um único instante, abandonar o laboratório. É preciso velar sem descanso o vaso, a matéria e o fogo... Compostela, cidade emblemática, não está situada na terra espanhola, mas na própria terra do sujeito filosófico. Caminho rude, penoso, cheio de imprevistos e de perigos. Estrada longa e fatigante aquela através da qual o potencial se torna atual e o oculto manifesto! É esta preparação delicada da matéria primeira, ou mercúrio comum, que os sábios velaram sob a alegoria da peregrinação a Compostela... A chegada a Compostela implica a aquisição da estrela de cinco pontas, correspondente, astrologicamente, ao signo de Leão.


Mas o sujeito filosofal é ainda demasiado impuro para se submeter à maturação. O nosso mercúrio deve elevar-se, progressivamente, ao supremo grau de pureza requerida, através de uma série de sublimações que necessitam do auxílio de uma substância especial, antes de ser parcialmente coagulado em enxofre vivo... A concha de Compostela serve na simbólica secreta para designar o princípio do Mercúrio (a água benta dos Filósofos), também chamado Viajante ou Peregrino. É usada misticamente por todos os que empreendem o trabalho e procuram obter a estrela (compos stella)...”

A proposta final da viagem não é a obtenção de um saber mas de um estado, um “estado de graça” que pode ser passageiro ou durável, mas que é de uma natureza tal que o homem nesse estado já não é o homem anterior. O homem anterior está morto.



A caminhada evolutiva a partir da conquista da estrela leonina é representada, ainda sob o ponto de vista astrológico, pela estrela de seis pontas, correspondente ao signo de Virgem.