quinta-feira, 5 de abril de 2012

SUELTOS - I

Suelto, solto, do espanhol. Particípio passado irregular do verbo soltar. Pouco compacto, ágil, desinvolto, que não faz parte de um conjunto, de fácil leitura. No jornalismo, era notícia solta, muitas vezes filha do rumor, breve comentário, glosa, aproximando-se dos faits-divers, não necessariamente sobre algo atual. Seus parentes próximos eram a crônica, o artigo curto e, às vezes, o texto-legenda. Colaborava bastante na organização do nosso pensamento, oferecendo-nos tópicos, e nos ajudava quando precisávamos convencer o outro (retórica) ou vencer um adversário (dialética).

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Há muito que as expressões literárias deixaram de seguir o modelo grego. Os escritores foram aos poucos impondo produções que acabaram se tornando tão importantes quanto as classificadas nos gêneros dominantes. Para se ter uma ideia mais precisa dessa questão, basta citar que em vários dicionários de Literatura encontramos, na rubrica gênero, mais de cem rebentos dos principais troncos genéricos plantados na antiguidade. Desde os gregos muita água correu. A novela, por exemplo, como gênero literário, aparece, no ocidente, no séc. XII, com a pretensão de trazer uma visão nova do mundo, de algo jamais ouvido. Tudo para fazer jus à sua etimologia (do latim, novus). Um texto relativamente curto, plástico e multifacetado, sobre um fato ou acontecimento notável. Quem estabeleceu o gênero foi Boccaccio, com o seu Decameron, no séc. XVI, um conjunto de novelas. Mais perto de nós, dois grandes insurgentes com relação à fixidez dos gêneros foram Baudelaire e Mallarmé.

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Flora é a deusa das flores, dos campos, entre os antigos romanos, representando a potência da vegetação. A floração dependia dela, tanto a dos cereais como a das árvores frutíferas e das plantas ornamentais. Era também a defensora do mundo vegetal, impedindo que moléstias o atingissem. Cultuá-la era colocar as plantações sob sua proteção. O mês da deusa, obviamente, era abril e a ela se faziam sacrifícios (ovelhas). Chamava-se flamen floralis o flâmine que a servia. A grande festa da deusa eram as Florálias, fixadas em 28 de abril. Há registros de que nas Florálias eram toleradas certas obscena, licenciosidades. Os meninos mutuamente se corrompiam ou reciprocamente se masturbavam (libertação da semente). De fins de abril ao início de maio, como complemento das Florálias, celebravam-se os Jogos Florais.

ZÉFIRO E FLORA

O poeta Ovídio procurou unir a deusa Flora à ninfa grega Clóris. No mito grego, Clóris é arrebatada pelo vento Zéfiro, vento primaveril, que a torna sua mulher. Na Mitologia Romana há uma versão que dá Flora como mãe do deus Marte. A deusa Juno, enraivecida pelos filhos espúrios de Júpiter, pediu a Flora que lhe ajudasse a dar à luz um filho sem o concurso do marido. Flora a atendeu, presenteando-a com uma flor que, tocada apenas, provocava a gravidez. Assim, Juno pariu Marte, de quem Júpiter não gostava, divindade que não só dará nome ao primeiro mês do antigo ano latino (março) como se tomará a principal divindade do mundo romano, suplantando em importância o próprio Júpiter.

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Foi no início do séc. XVIII, do chamado período moderno da história da humanidade, que vários pensadores procuraram fixar uma linha divisória entre o homem e os animais. Esta fixação servia para justificar a caça, a domesticação, o hábito de comer carne, a vivissecção, que entrara na moda em fins do séc. XVII, e o extermínio sistemático de animais nocivos e predadores.


Procurou-se enfim definir claramente o que era humano e o que era animal. Quem não possuísse a essência típica dos humanos poderia ser classificado como semi-humano ou semianimal. Esta atitude de exclusão atingiu os chamados povos primitivos, que não dispunham de atributos como linguagem inteligível, tecnologia e religião cristã. Muitos religiosos, cientistas e sociólogos diziam coisas como estas no séc. XVII: “a maior parte do globo terrestre é possuída e injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais” (Robert Gray). Os séculos XVII e XVIII registram muitos discursos semelhantes que falam da natureza animal dos aborígenes em várias partes do mundo, da sua sexualidade animalesca, da sua natureza brutal, da sua linguagem inarticulada.

A tese, naqueles tempos, de que a criação estava destinada à conveniência do gênero humano, aliás, era bíblica. Neste entendimento, a espécie humana se elevava acima das inumeráveis outras que a cercavam. Ou seja, tudo na natureza (os reinos animal, vegetal e animal) devia se submeter ao reino humano. E, dentro deste, seres como índios, negros, amarelos e outros, considerados inferiores, deviam ser classificados no reino animal.


Até o século XVIII, por exemplo, o ato de amamentar bebês era considerado pelas classes superiores como uma atividade degradante. Os recém-nascidos deviam ser confiados a amas-de-leite. Jane Austen, escritora inglesa dos sécs. XVIII/XIX, uma das criadoras do romance moderno, descrevia as pessoas de seu sexo como “pobres animais”, consumidos por partos todos os anos.

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O tema do bom selvagem proposto por Rousseau tornou-se um tema literário. Escritores como Marmontel (Les Incas) e Bernardin de Saint-Pierre (La Chaumière Indienne), o utilizaram logo. Rousseau assim falava do bom selvagem: “livre, sadio, bom e feliz”. Para o famoso autor genebrino, o homem, em estado natural, tinha uma vida essencialmente animal. A rude existência nas florestas fazia dele um ser robusto, ágil, os sentidos atentos, pouco sujeito a doenças, muito diferente dos que vivem na civilização. Diz Rousseau que por ter uma atividade intelectual quase nula era um ser saudável. Ao contrário do homem que vive meditando, pensando, um animal depravado. Assim, esse homem era feliz, pois suas paixões eram naturais e fáceis de satisfazer.




Prossegue: “Vejo-o se refazendo sob um carvalho, se saciando no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe fornece alimento; e ei-lo com as suas necessidades satisfeitas. Seus desejos não passam de desejos físicos; os únicos bens que conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome. Eu bem que gostaria que me fosse explicado qual pode ser o tipo de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo saudável”.


Para Rousseau, a natureza não destinou o homem à vida social. Durante milhares de anos, diz, talvez tenha vivido solitariamente, independente, o que era um elemento essencial de sua felicidade. Ele não se distinguia dos animais a não ser pela sua maior inteligência, pela consciência de ser livre, não submetido ao instinto, e pela faculdade de se aperfeiçoar que possuía e que poderia desenvolver.

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A porta é um dos grande símbolos encontrado em todos mitos. Ela aponta sempre, como a ponte, para uma passagem entre dois estados, levando de um mundo a outro. Seu valor é, neste sentido, dinâmico, sugere passagens, transformações. É por isso que os ritos de passagem em muitas culturas são simbolizados por uma porta. Em antigas tradições, as portas só se abriam em determinadas datas ou períodos, sempre marcados por celebrações, festividades. Na antiga Roma, era Janus, o deus bifronte, o guardião das entradas e das saídas, os lugares de passagem. Porta de entrada em latim é janua. Janus guardava a porta pela qual saíamos de um ano e entrávamos noutro, o que hoje é marcado pela meia-noite de 31 de dezembro.

Na antiguidade, foram sem dúvida os egípcios os que mais valorizaram simbolicamente as portas. Possuíam um texto, O Livro das Portas, que começou a circular, ao que parece, na décima-oitava dinastia (1567-1320 aC), um complemento de O Livro dos Mortos, que ajudava o defunto-declamador na sua caminahada para o Duat, o Outro Lado.

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A usura bancária é antiga. Os templos, como os de Delfos e Éfeso, foram os primeiros centros bancários conhecidos. Desde o séc. IV aC, encontramos banqueiros laicos na Grécia. Eram os chamados trapezitas. Em Roma, eles já eram comuns no séc.II aC. Na república, a atividade bancária era privilégio dos cavaleiros ou publicanos. No império, surgiram os banqueiros privados, os argentarii. Na Idade Média, a atividade tomou grande impulso, principalmente devido ao desenvolvimento comercial no séc. XI. Aos poucos, as operações financeiras acabam se concentrando nas mãos de três segmentos: judeus, templários e lombardos. No Renascimento, as casas bancárias se internacionalizam.

Desde a Idade Média que a regra do juro (um pecado superior à própria superbia, o maior dos sete pecados capitais) era conhecida, operação para se conhecer a relação existente entre um capital e os respetivos juros e taxas. Desde essa epoca, a taxa de juros subordinava-se à lei da oferta e da procura e também à natureza das operações (depósito em conta-corrente, descontos de efeitos comerciais, empréstimos a curto, médio e longo parzo, compras a prazo etc.) ou ao grau de solvência do devedor.


Juro é palavra que vem de jus, juris, direito, isto é, força, ato de submeter, de subjugar. Por trás desta palavra estão os radicais indo-europeus yeug ou yug, que traduzem a ideia de atrelar, de submeter ou de unir, encontrados em palavras como jugo, jugular, conjugar, quadriga (forma sincopada de quadriuga). Indo um pouco mais longe, ao sânscrito, temos Yoga, numa tradução livre "a arte de atrelar cavalos", entendendo-se estes como símbolos do psiquismo inconsciente. Lembremos que Sidharta Gautama só "atrelou os seus cavalos", sossegou a sua mente, ou seja, iluminou-se, quando sentado sob uma árvore, a ashvata, literalmente, a árvore em baixo da qual os cavalos se aquietam, para nós uma espécie de figueira (ficus religiosa).


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VERGÍLIO FERREIRA
Vergílio Ferreira: “A diferença que separa a recordação da evocação é que a recordação não tem alma”. Viveu em Évora como professor do Liceu por catorze anos, sempre retomando à cidade depois. Seu romance Aparição (marco pouco conhecido da literatura portuguesa) e mesmo tudo o que escreveu tem a ver com a cidade. “Évora é uma cidade branca como uma ermida. Convergem para ela os caminhos da planície como o rasto da esperança dos homens. E como a uma ermida o que a habita é o silêncio dos séculos, do descampado em redor. Conheço, dos seus espectros, a vertigem das eras, a noite medieva mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares. Évora de outrora, minha cidade perdida. Cidade da minha monotonia, dos dias fatigados, das viagens curtas em torno da minha prisão – ó cidade das horas longas, da espera de nada, abismada de um olhar vazio e sem fim. Mas, de tudo isso, alguma coisa sobrou e só agora ressurge filtrada e pura, e que ainda busco em velhas fotografias, no Guia de Évora do bom Túlio Espanca de estilo tão engraçado... Praça do Geraldo das manhãs húmidas, balada das grandes vagas de chuva no espaço da planície, tardes imóveis dos grandes calores de Verão. Horas tristes do entardecer nos claustros já sombrios do Liceu.”

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Viajante e aventureiro alemão, Hans Staden aqui chegou em 1547, vindo da Holanda. Escreveu um livro sobre o Brasil, que fez muito sucesso: A Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Ferozes Devoradores de Homens, Encontrados no Novo Mundo, a América. No capítulo dez do Livro 2, “O que os selvagens comem em lugar de pão, como chamam os seus frutos, como eles os plantam e como eles os preparam”, temos o seguinte registro:

“Nos lugares em que pretendem fazer plantações, os selvagens derrubam as árvores e deixam-nas secando cerca de três meses. Depois ateiam fogo, queimando-as totalmente. Entre os tocos das árvores, então, plantam a raiz que lhes serve como alimento. Ela se chama mandioca (é o aipim, o que brota do fundo, na língua tupi), um arbusto que chega mais ou menos a uma braça de altura e forma três raízes. Quando querem colher, arrancam os arbustos e amassam as raízes, depois tiram ramos da planta e os enterram mais uma vez. Esses ramos dão origem a novas raízes, sendo que em três meses elas estão grandes o bastante para outra colheita. As raízes são preparadas de três maneiras:

1) Trituram as raízes sobre uma pedra, obtendo pequenas migalhas. Estas são espremidas com um assim chamado tipiti (espremedor, algo que serve para calcar), que é feito da casca da palmeira, para tirar o suco. Assim, a massa fica seca, depois é passada por uma peneira, produzindo uma farinha que serve para assar bolos bem finos. O pote em que eles secam e assam sua farinha é feito de barro e tem a forma de uma bacia.

2) Apanham as raízes frescas e as colocam na água, deixando que fermentem, depois as secam no fogo. Essas raízes secas chamam-se carimã e são conservadas por muito tempo. Para uso, a carimã é socada em pilão de madeira, produzindo com isso uma farinha branca semelhante à nossa farinha de trigo. Dela fazem bolos chamados beiju (bolo de farinha).

3) Pegam a mandioca apodrecida mas não a secam, e assim misturam-na com mandioca seca e verde. Torrando o produto, fazem dela uma farinha que se conserva por um ano inteiro. E igualmente boa para comer e chama- se uiatan.

Eles também preparam peixe e carne de maneira semelhante, para fazer farinha, assando o peixe ou a carne na fumaça, sobre o fogo, e deixando-os completamente ressecados. Depois despedaçam a carne seca e torram-na mais uma vez sobre o fogo nos assim chamados inhepoan, potes de barro queimados justamente para isso. Por fim, o alimento torrado é moído em um pilão e peneirado até ficar bem fino, resultando disso uma farinha duradoura (e entre eles não se usa salgar o peixe e a carne). Come-se essa farinha junto com farinha de mandioca, e ela é bem gostosa".

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O ódio que alguém tem de si mesmo pode explodir de um modo repentino, violento, agudo, levando-o à autodestruição. Essa forma extrema de ódio tem como expressão maior o suicídio. Mas há outras formas de destruição, geradas pelo ódio à própria pessoa, através das quais o indivíduo comete um suicídio lento, que alguém já chamou de suicídio crônico, isto é, autodestruição crônica. Pessoas que passam a vida se autodestruindo.



Uma das formas mais insidiosas desta atitude pode aparecer, por exemplo, através do ascetismo, muitas vezes cultuado sob a máscara religiosa, espiritualidade etc. Pessoas que às vezes prolongam a sua própria existência para sofrer mais, um refinamento, essa morte lenta.

Num famoso estudo sobre São Francisco de Assis, de Charles Berthond Hase, essa questão é levantada. Nesse livro são registrados os depoimentos de algumas pessoas que estavam presentes quando da morte do Poverello. Um dos depoimentos revela que ele, quando estava morrendo, fez uma revelação que alguns hoje modernamente chamam de insight (capacidade de ver e compreender claramente a natureza interior das coisas, dos acontecimentos). Diz o depoimento que ele falava em ter pecado contra o corpo ao sujeitá-lo a privações. Essa revelação lhe viera quando estava rezando numa noite e ouviu uma voz lhe dizer “Francisco, não há pecado no mundo que Deus não perdoe quando uma pessoa se converte; mas aquele que se mata com árduas penitências não encontrará misericórdia na eternidade". Essa voz da consciência que Francisco revelava ter ouvido foi atribuída pelos presentes a uma interferência demoníaca.

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O curupira é um dos mais fantásticos seres das matas brasileiras. Curupira quer dizer corpo de menino. Aparece como um anão, cabelos vermelhos, pés invertidos, calcanhares para frente. O padre Anchieta deixou-nos o primeiro registro que temos dele, em 1560. No dizer de Anchieta, o curupira era um demônio que atacava os índios, açoitava-os, chegando mesmo a matá-los. Fazem os indígenas muitas oferendas a ele. O curupira é responsável por rumores misteriosos, pelo desaparecimento de caçadores, por pavores súbitos que acometem os viajantes, é causador de extravios. De prodigiosa força física, engana aqueles que entram na floresta desavisadamente ou desrespeitosamente, fazendo-os perder o rumo com assobios e sinais falsos. Gosta de viver no mais fundo das matas e sabe imitar perfeitamente a voz humana. É inimigo dos caçadores e dos destruidores das florestas.

O Estado de São Paulo, por uma lei de 11 de setembro de 1970, instituiu o Curupira como um símbolo estadual, tornando-o o guardador das florestas e dos animais que nelas vivem. Na cidade de Olímpia, realiza-se (?) um Festival de Folclore, no mês de agosto, período em que a autoridade do município é representada pelo Curupira, que exerce o seu poder protegendo os visitantes que ali comparecem. No Horto Florestal, aqui em São Paulo, há um monumento que o homenageia.