sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - NETUNO (3)




 Para os mesopotâmicos, a água era o elemento primordial nos mitos cosmogônicos. É da fusão da água doce, Apsu, com a água salgada,
APSU
Tiamat, que se originam todos os deuses e humanos. Apsu é personificado como um grande abismo de água que envolvia a terra, que tinha a forma de um disco. Sobre a superfície da terra elevavam-se as montanhas, sobre as quais repousava a abóbada celeste. Era de Apsu que provinham as inúmeras fontes que brotavam na superfície terrestre. Como se pode perceber, esta concepção de Apsu tinha muita semelhança com a do rio-mar denominado Oceano, dos gregos, considerado como a origem de todas as coisas.


 Tiamat era a personificação do imenso oceano de água salgada, associado ao gênero feminino, sendo representado pelas forças cegas do caos primitivo contra o qual entrarão em luta as divindades inteligentes e organizadoras.


TIAMAT

Nesse cenário inicial, de Apsu, o mar que circundava a terra, e de Tiamat, o imenso oceano, confundidos, nascem Mumu, o tumulto
BEL-MARDUK
das ondas, e um par de serpentes monstruosas, Lahmu e Lahamu, que, por sua vez, gerarão Anshar, o princípio masculino, e Kishar, o princípio feminino, representando o primeiro o mundo celeste e o outro o mundo terrestre. Para os sumérios e os acadianos, estas duas entidades geraram os grandes deuses, Anu, Bel-Marduk, Ea, os Igigi e os Anunaki.


An ou Anu (etimologicamente, céu) era a primeira das divindades,
ANU
a que punha em movimento a criação. Marduk (etimologicamente, bezerro do Sol; Bel é Senhor) era o deus patrono da Babilônia. Ea, também chamado Enki, deus do elemento líquido. Igigi é palavra que designava os deuses do céu coletivamente. Anunaki (etimologicamente, descendência principesca) também é nome coletivo, usado para designar as primeiras divindades ainda não diferenciadas, individualizadas. 


    O mito nos conta que os novos deuses logo perturbaram a tranquilidade de Apsu, que se queixou a Tiamat. Ambos combinam então a destruição de tudo o que haviam criado. Antecipando-se ao desígnio das duas velhas divindades, Ea (A Casa da Água), entidade da nova geração divina, consegue, com seus poderes mágicos, dominar Apsu e Mumu.


Furiosa, Tiamat gerou então um grande número de monstros, terríveis dragões, cães raivosos, gênios das tempestades, seres teriomórficos, com a forma de enormes escorpiões, peixes e carneiros. Para dirigir este exército do mal, Tiamat deu à luz uma figura feminina pavorosa, de nome Kingu, encarregando-a de assumir o controle do universo depois de destronados os deuses. No seu peito, Tiamat prendeu as pequenas tabuletas do destino.  


 Ea, que percebia todas as coisas, procurou imediatamente o Pai Anshar, queixando-se do furor destrutivo da Grande-Mãe Tiamat. Anu, rei dos espaços celestes, e Ea foram enviados para deter a furiosa Tiamat. Nada conseguiram. Anshar convocou então Bel-Marduk, que se dispôs a enfrentar Tiamat, mas exigiu que, em assembléia geral, os deuses lhe conferissem poderes absolutos. Anshar mandou chamar através de Gaga, seu mensageiro, as divindades que atuavam à distância, como os Igigi.   


Num banquete onde, dentre outros comestíveis, foi servido pão e vinho em abundância, os deuses confirmaram Marduk como chefe supremo de todas as forças do Bem e lhe forneceram, além dos ventos, o dilúvio e os relâmpagos, todas as armas necessárias para a terrível luta, arco, cordas, laços, redes etc. 


A luta foi tremenda, mas Marduk acabou se impondo, compelindo Tiamat a viver dentro de determinados limites, dos quais ela procurou sempre escapar com a colaboração inconsciente dos mortais. Os Anunaki, que viviam nas regiões ctônicas, auxiliares de Tiamat, foram acorrentados no mundo infernal e impedidos, pelo menos momentaneamente, de subir à superfície terrestre para infernizar os vivos. O corpo de Tiamat , como se faz com um peixe, foi dividido em duas partes. Com uma delas, Marduk fez a abóbada celeste, com a outra estabeleceu as estruturas terrestres, nas quais o elemento líquido ocupou cerca de dois terços. Depois, ele organizou o universo; construiu nos céus um imenso palácio para os deuses, fixou o caminho dos astros e determinou a sucessão do tempo. 


MARDUK E TIAMAT

Depois de tudo definido, Marduk, cujo símbolo é a enxada, fixou o destino dos humanos. Em testemunho do seu reconhecimento, os deuses lhe atribuíram cinquenta títulos, cada um correspondendo a um atributo divino. Reunindo a plenitude do divino, Marduk, em companhia de sua esposa Akitu, governou o universo. Na medida em que a Babilônia se transformava na principal cidade da Mesopotâmia, seu poder não deixava de aumentar. Mas veio um dia em que o poder da Babilônia foi sobrepujado pelo de Nínive. Deste modo, a divindade nacional dos assírios, Ashur, que tinha como esposa Ishthar, assumiu a plenitude do poder divino.

ASHUR

Na longa substituição das divindades, Apsu, deus das águas doces circundantes da terra, cedeu lugar a Ea, também chamado Enki, que se tornou a principal divindade do elemento líquido. Ea, literalmente “A Casa da Água”, era a divindade das fontes que brotavam do solo, dos rios que irrigavam a planície caldéia. Suas águas se opunham às de Tiamat, o oceano imenso e indomável. Esta distinção será levada para a Grécia e consolidada na figura do deus Oceano, cujas águas serão benéficas, geradoras de fertilidade e de abundância, diferentes do chamado “mar estéril”. Ea herdou de Apsu a suprema sabedoria, o poder dos encantamentos mágicos e os dons proféticos, oraculares, sendo muito consultado por isso. Ea era, por isso, chamado de “Senhor do Olho Sagrado”, pois nada escapava do seu conhecimento, uma sabedoria vigilante.

ENKI
  
Embora assumindo um caráter de divindade civilizadora, Ea, como Enki, reuniu à sua volta uma poderosa assessoria. Seu principal ministro era Isimud, deus que funcionava como seu embaixador e mensageiro. Era representado como uma divindade bifronte (Janus romano) na forma de um homem-pássaro. 

A ação de Ea estendia-se também, no plano terrestre, à carpintaria, à arte da cantaria e da ourivesaria, sendo o deus considerado como o patrono de todos os profissionais das referidas áreas. A residência terrestre de Ea ficava na cidade santa de Eridu, na extremidade meridional do país. Na condição de deus da terra, Ea recebeu o nome de Enki.


EA  -  ENKI

Deus do saber, Ea mantinha uma atividade oracular importante, fazendo de certa forma oposição a Shamash, divindade solar, de caráter apolíneo, também de natureza oracular, como já se viu. A residência terrestre de Ea, na cidade santa de Eridu, na extremidade meridional do país de Sumer, no golfo pérsico, tinha sido a primeira cidade conquistada do mar. Nela, havia uma árvore maravilhosa, negra, chamada Kishkanu, cuja folhagem tinha o esplendor do lápis-lazúli e que projetava uma sobra equivalente a várias florestas. 

NABU-APPLU-IDDINA REVERENCIANDO SHAMASH

Os sumerianos sempre associaram o lápis-lazúli à abóbada celeste, pois a consideravam como a “pedra das pedras”, uma dádiva celeste. Palavra híbrida, lápis-lazúli vem de lapis, pidis, pedra, em latim, e lazward, quer dizer azul em persa. A pedra sempre foi
LÁPIS-LAZÚLI
considerada um símbolo da noite estrelada, inclusive  na América pré-colombiana. O lápis-lazúli, como todas as pedras azuis, para as antigas culturas do Oriente próximo, sempre foram usadas para afastar o mau olhado, a melancolia, já que incitavam à franqueza, à delicadeza, à finesse d´esprit, criando em torno de quem a usa uma aura de simpatia. Além do mais, favorecia a meditação, acalmava os excitados e proporcionava um bom sono, principalmente o das crianças. Era usada para combater a anemia, as febres, os problemas intestinais, as doenças da pele e dos olhos.



Ea era representado por um cabrito montês com cauda de peixe, símbolo que passará à Astrologia como o signo de Capricórnio. Era visto algumas vezes na forma humana, com fluxos de água jorrando de suas espáduas ou de um vaso que carregava nas mãos (compare com um dos símbolos do signo de Aquário). A companheira de Ea, tinha o nome de Ninki, a “Senhora da Terra”, ou de “Damkina” ou “Damgalnuna”, a “Grande Esposa do Senhor”.

Lagash era outro centro religioso importante no qual Ea/Enki era honrado. A cada ano, num canal vizinho a esta cidade, se realizava uma procissão de barcos que acompanhava Nina, a “Senhora das Águas”, deusa das fontes e dos canais. Nina era filha de Ea/Enki e tinha como emblema um vaso onde nadava um peixe. Irmão de Nina, o deus Enugi velava também pelos canais como a irmã, mas estendia o seu poder também aos diques. Era chamado de o “Inspetor dos Grandes Deuses”. Uma outra deusa ligada a Ea/Enki era Ishara, de origem tradição semítica. Era adorada na Mesopotâmia meridional como esposa do deus Dagan, deus dos grãos (dagan, nas línguas hebraica e ugarítica quer dizer grão). 


Dentro da órbita de influência de Ea/Enki ficavam também as questões relacionadas com as disputas dos humanos sobre águas e terras. Sempre que tais questões não podiam ser resolvidas legalmente (racionalmente), a decisão era levada para a esfera religiosa. Eram invocados Id, deus dos rios, Sazi, seu filho, ou o próprio Ea/Enki. 

As partes envolvidas na questão deviam se submeter a um ordálio: cada um dos litigantes devia mergulhar num rio, num local especialmente determinado, na presença de autoridades, e nadar até um determinado ponto. Aquele que se saísse melhor na prova venceria a questão. O ordálio, como se sabe, é uma prova judiciária feita com a concorrência de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como julgamento divino (juízo de Deus). 


ERECH (RUINAS)

 Nos tempos mais recuados da história mesopotâmica, no início do quarto milênio, quando a cidade de Erech dominava a região meridional, a principal divindade era An, deus do céu. Perdendo Erech o seu prestígio político, An deixou de ocupar a principal posição no panteão do país, sendo transferidos os seus poderes e prerrogativas para Enlil, divindade do elemento ar, da cidade de Nippur, que se tornara o novo centro político e religioso da Mesopotâmia meridional.

Durante um milênio, mais ou menos, de 2.500 a 1.500 aC, Enlil, como o Senhor do Ar, estendeu o seu poder inclusive ao mundo babilônico e assírio. Interpondo-se entre o céu e a terra, assumindo o papel de uma divindade intermediária, mais próxima dos humanos, Enlil fez tudo para lhes assegurar prosperidade e fartura. Ea, como Enki, já então poderosa divindade marinha, depois de ter levantado sua esplêndida Casa do Mar em Eridu, “viajou” até Nippur para obter a bênção de Enlil.  



Os poetas da época dedicaram inúmeros hinos e cânticos a Enlil, louvando-o deste modo: “Quando o Pai Enlil se instala solenemente sob o dossel sagrado, o sublime dossel, quando exerce o sumo comando e realeza, os deuses terrenos se curvam diante dele, os deuses celestiais o reverenciam com humildade...”

ME

Ao longo de seu reinado absoluto, Enlil havia baixado um conjunto de leis que alcançavam a existência como um todo. Cada uma dessas leis abrangia um aspecto da vida universal e garantia os desejos de segurança dos humanos. Me era o nome dado a cada uma dessas leis e também ao seu conjunto (mais de cem).

A palavra me era pronunciada mai e expressava o conceito básico da religião dos sumérios, significando limite, regra, e ordem
ENLIL
(associe-se esta palavra ao radical me, indo-europeu, que traduz uma ideia de medida, e antigo nome da Lua). Ela era usada também para designar as propriedades ou poderes dos deuses que serviam para orientar todas as atividades da vida humana civilizada. A palavra “

me era sempre usada com outra, gis-hur (plano, descrição), indicativa de como o me deveria ser aplicado, uma espécie de Direito Processual com relação ao primeiro.
INNANA E DUMUZI

O Me podia descer a níveis muito concretos da vida coletiva, sempre, porém, com um caráter sagrado e indiscutível. Nesta esfera, outros deuses poderiam também baixá-lo. Quando o Me era deixado de lado, esquecido ou desprezado, tanto pelos deuses como pelos mortais, a sociedade humana entrava em decadência, se desorganizava, se corrompia. No poema Innana e Enki, por exemplo, estes dois deuses embriagados (Innana nem tanto), jogam dados, conseguindo a deusa ardilosamente ganhar o Me de Enki.

Saliente-se que o uso de bebidas alcoólicas (cerveja e vinho) é atestado na Mesopotâmia desde tempos pré-históricos. Textos
HAMURABI
médicos, inclusive, fazem referência a elas. O comércio de bebidas e o seu uso com propósitos medicinais já era comum no segundo milênio aC. (vide leis de Hamurabi). Deuses e humanos costumavam muitas vezes passar da conta no consumo delas. Gilgamés, personagem de um famoso poema épico, quando em busca da imortalidade, encontrou a deusa Siduri, uma espécie de garçonete dos deuses, que o encorajou a abandonar tal busca e a aproveitar, como muito mais agradáveis, os prazeres da vida, neles se incluindo obviamente os do álcool. 


SIDURI

 O Me assegurava que, se respeitado, o universo criado pelos deuses se manteria ordenado, livre da deterioração e da desintegração. Com o Me, tudo permaneceria como deveria permanecer: o céu, apesar de algumas tempestades, continuaria azul e sereno, fertilizando a terra; o mar, embora às vezes bravio, continuaria submetido aos deuses. 

Havia, como se disse, um Me para cada aspecto do universo. Enlil baixou um Me para os deuses, fixando os seus direitos, deveres, privilégios e obrigações. O mesmo fez com relação aos humanos, estabelecendo regras para o culto e ritos que deveriam observar, bem como para as organizações que viessem a criar, cidades e estados, e para todos os ofícios e profissões, inclusive para a arte e para as guerras.


Segundo o mito, foi a desobediência a um Me que levou Enlil à perdição. Embora onipotente e onisciente não soube dominar o seu furor sexual. Certo dia, em Nippur, ele, sob a forma humana, em visita aos mortais, vislumbrou a bela deusa Ninlil que tomava banho num dos canais da cidade. Tomado pelo desejo, resolveu possuí-la imediatamente. Apesar dos seus protestos, atacou-a, violentando-a. Este ato contrariava frontalmente o Me divino e provocou grave perturbação da ordem cósmica. Essa história do banho de Ninlil, que causou a perdição de Enlil, inscreve-se, alquimicamente, no capítulo da solutio. Ela é reproduzida, com algumas modificações, pelos judeus, na história da sedução do rei David pela bela Betsabá. 


Reunidos em assembleia os deuses resolveram intervir e decidiram pela deposição de Enlil e a sua deportação para o mundo infernal. Ninlil, grávida, acompanhou Enlil ao inferno, onde se tornou mãe de Nanna, deus lunar, também chamado Sin, o Senhor do Diadema,  que se fixou na cidade de Ur. Com a descida de Enlil ao mundo infernal, os deuses confiaram a tutela do Me universal a Ea/Enki, deus das águas, que o guardou num santuário nas profundezas do Apsu.


Coube a Enki dar continuidade à obra divina no sentido de se completar a organização do universo. Definiu o nível de prosperidade das terras e para prover as necessidades dos mortais despejou água pura nos rios Tigre e Eufrates, cujas margens foram dotadas de caniços; os rios receberam peixes e os campos, tornados férteis, puderam então ser trabalhados. 


PÓRTICO DE ISHTAR

Sapientíssimo, Enki não conseguiu contudo levar a bom termo a sua obra divina. Não soube respeitar também o Me que lhe havia
ISHTAR
sido confiado. Quem provocou a sua queda foi Innana ou Ishthar (que ora passa por filha de Ea, de Enlil ou do próprio Enki), um dos modelos da Afrodite grega. Adorada em toda a Mesopotâmia, foi a mais importante de suas divindades femininas. Na origem, seu nome era Nin-ana (Senhora do Céu). Innana era a divindade tutelar de Erech e estava determinada a fazer dela o maior centro religioso e cultural da Mesopotâmia. 


Para levar a cabo os seus desígnios, Innana precisava se apoderar do Me universal, em poder de Enki. No seu
INNANA E O LEÃO
“Barco do Céu”, em companhia de sua aia Ninshubur, dirigiu-se ao templo de Enki, no Apsu. Conforme registra o mito, foi recebida calorosamente, com um banquete no qual se serviram iguarias como bolo de cevada e vinho de tâmara, muito apreciado por Enki. Seduzindo-o e embriagando-o, Innana conseguiu obter dele o que pretendia e retornou a Erech. Lembremos que Ísis, no Egito, fez algo semelhante quando, valendo-se de outros artifícios, obteve de Ra o seu nome secreto, o que permitiu a transferência do maat a Osíris. 


Refeito da bebedeira, advertido por acólitos, acabrunhadíssimo, Enki se dispôs a recuperar o Me universal levado por Innana. Enquanto Isimud, seu ministro, tentava, pessoalmente,  interceder, solicitando a devolução do Me, Enki, como o caminho de Innana até Erech era longo, mandou emissários acompanhados de vários monstros marinhos para deter a deusa. A tentativa de recuperação foi frustrada pela astuta Ninshubur, divindade que sempre auxiliou Innana nas suas aventuras. Chegando a Erech com o Me, a deusa foi recebida festivamente pela população, transformando-se logo a cidade no mais importante centro político e cultural da Suméria.   


As criaturas de Enki merecem referência especial, pois lembram
ENKI
muitos os filhos do Poseidon grego, gigantescos e monstruosos, de ambos os sexos, femininos (ninkum) e masculinos (enkun). Eram seres dracônticos, monstros marinhos, sendo os primeiros, os gigantes, chamados lahamas (etimologicamente, ao que parece, os cabeludos, os peludos) muito representados na arte suméria como guardiães de grandes templos, em especial o de Ekur, em Nippur. 


No bestiário mítico mesopotâmico, dois monstros apareciam muito ligados a Ea/Enki: a cabra-peixe e a tartaruga-gigante. O primeiro tinha a cabeça e as patas dianteiras de uma cabra e o corpo de um peixe, adotado depois como símbolo da constelação de Capricórnio. O peixe que entrava na composição dessa criatura era a carpa (montaria de imortais), sendo chamado o todo, com a parte caprina, de “Sahurmasu”.  A imagem possuía poderes protetores e aparecia em companhia de tritões. Personagem de um famoso poema mesopotâmico (Ninurta e a Tartaruga), a tartaruga aparece na arte muitas vezes no dorso da cabra-peixe, sendo considerada como guardiã das tábuas do destino, do Me e dos planos divinos.


 Tritões e sereias sempre existiram na mitologia dos mesopotâmicos
KULULLO
e, como tudo indica, foi deles que saiu o modelo para outras tradições.  Chamados de kulullu o homem-peixe e de kulillu a sereia, nós os encontramos, vivendo no Apsu, como seres de natureza protetora, associados a Ea/Enki, sendo muito representados na arte.


Ea/Enki também teve problemas com uma outra deusa, Ninhursag, uma espécie de Mãe Terra, muito semelhante à Deméter dos gregos. Neste caso, foi um alimento que o perdeu e não a bebida (tema comum, a perdição por um alimento; nós o encontramos, por exemplo, na mitologia grega, na história de Kore, e, entre os judeus, na expulsão de Adão e Eva do Paraíso). O envolvimento de Enki com Ninhursag se deu em Dilmun, atual Bahrain, uma terra, como diz o poema, sagrada, virgem e pura, a própria imagem daquilo que os judeus chamariam de Jardim do Éden. 



Em Dilmun ninguém ficava doente ou envelhecia, um paraíso. A partir de um certo momento, porém, a água começou a escassear nesse paraíso. A pedido de uma filha que tivera com Ninhursag e que acabou por estupar, Enki ordenou a Utu, o deus solar, também
NINHURSAG
chamado Samas, que resolvesse o problema, o que aconteceu quando inúmeras fonte começaram a aparecer nas terras sagradas de Dilmun. Utu era irmão de Nanna, deus lunar, e de Innana ou Ishthar, deusa do amor e do inferno.  


Nas terras deste éden, Ninhursag fez com que brotassem oito plantas maravilhosas. Tomado pela tentação, o deus desejou experimentá-las, ordenando ao seu mensageiro, Isimud, que as obtivesse. Ao se inteirar do ocorrido, a deusa, tomada de grande fúria, proferiu uma maldição em que preconizava a morte de Enki, abandonando em seguida o concílio dos deuses.


A maldição de Ninhursag resultou num mal que atingiu os órgãos
NINHURSAG
vitais do deus. Os deuses começaram a lamentar o fim de Enki, impotentes. O poema nos conta que uma raposa ladina que a tudo assistia resolveu intervir e encontrando Ninhursag convenceu-a a voltar. A deusa então, comovida, resolveu pôr fim ao sofrimento de Enki, criando oito divindades que curaram os seus órgãos enfermos. A raposa, lembremos, em inúmeras tradições populares, é símbolo da astúcia pérfida. Por causa de sua cor, avermelhada, passou a fazer parte do séquito de seres demoníacos, quando não do próprio Diabo. 


A Suméria é uma região meridional mesopotâmica, chamada de Baixa Mesopotâmia, que bordeja o golfo árabo-persa. A população suméria não era semítica, mas aos semitas se misturava. Após a instituição da realeza, por volta de 3.000 aC, em  meio a lutas seculares que ocorreram nas planícies situadas entre os rios Tigre e Eufrates, algumas cidades foram se destacando como centros político-religiosos importantes, muitas delas de nomes que nos são familiares em razão de citações bíblicas.


UR

 O Velho Testamento menciona cidades como Erech e Ur (a Ur dos caldeus), esta última apontada pela tradição como a terra do patriarca Abraão. A primeira cidade que conseguiu estabelecer um controle total sobre a Suméria foi Kish, cujas ruínas encontram-se ainda hoje a 90 km. de Bagdá. Esse controle, com relativa rapidez, foi conquistado por Erech. Esta passagem de poder é representada pela troca de divindades no topo do panteão sumério. Enlil (ar) cedeu seu lugar a Ea ou Enki (água e terra). 

Uma explicação breve: leis e regulamentos (Enlil), sem uma atenção concentrada nos problemas físicos (agricultura), não bastavam. Por isso, Enki subiu ao poder, uma divindade, como se viu, ligada à fertilidade, muito importante para os sumérios e suas terras secas. Enki, segundo uma história que lhe deu muita fama, para aumentar a vazão do rio Tigre costumava ejacular nele sempre nos período de seca. 


Importante também mencionar aqui o problema das inundações na Mesopotâmia. Ambos os rios, o Tigre e o Eufrates, ficavam sujeitos a elas quando recebiam as chuvas da primavera e as águas do degelo. As mais temíveis eram as inundações provocadas pelo Tigre, entre fevereiro e maio. Somente no século XX, com diques e obras de contenção, as catástrofes puderam ser afastadas e, mesmo assim, não de todo. 


Era natural que as inundações dos rios mesopotâmicos fossem usadas pela religião e como imagens literárias e as destrutivas inundações como a metáfora favorita para se falar do poder dos deuses, principalmente quando as inundações coincidiam com tempestades. 


Os deuses mesopotâmicos, como acontece também em outras tradições, resolveram um dia destruir a raça humana, por eles
UTNAPISTIN
mesmo criada. Reunidas na cidade de Surippak, situada às margens do Eufrates, os grandes deuses decidiram mergulhar a terra num dilúvio, assumindo Enlil a responsabilidade de decretá-lo. Mas Ea, que se encontrava dentre eles, teve pena dos humanos. Ele confiou a decisão dos deuses a uma sebe de caniços que, por sua agitação e barulho, possibilitaram que um humano chamado Utnapistin a captasse.


Tendo entendido a mensagem de Ea/Enki, Utnapistin construiu então uma grande embarcação, para ela levando, além de sua família, tudo o que possuía em ouro e prata, mais bens materiais, animais e pássaros. A catástrofe que se abateu sobre a humanidade foi tão terrível que os próprios deuses se sentiram ameaçados. Nada parecia poder parar aquele grande mal. No sétimo dia, enfim, os ventos serenaram e as águas se acalmaram, mas tudo estava totalmente envolvido pela lama.

UTNAPISTI E SUA MULHER

  Diante de tão horrível catástrofe, Utnapistin não conseguiu reter as suas lágrimas. A sua embarcação encalhara no alto do monte Nisir. Utnapistin soltou então uma pomba e uma andorinha que, ao retornar, passaram-lhe a informação de que não haviam encontrado um lugar onde pudessem descansar. Um corvo, solto a seguir, jamais voltou. Resolveu então Utnapistin desembarcar e, depois das libações de praxe, fez uma oferenda aos deuses no alto do monte, que de bom grado a  receberam. Só Bel, dentre os deuses, se irritou. Ea/Enki conseguiu contudo acalmá-lo com um judicioso discurso. Bel aproximou-se então de Utnapistin e de sua mulher, tocando-lhes as mãos, e declarou que ambos doravante seriam semelhantes aos deuses, tendo sua residência fixada na embocadura dos rios, num retiro inviolável.

As coisas não terminaram aqui. Segundo as tradições babilônicas, os deuses voltaram tempos depois a se reunir. Bel declarou que se sentia incomodado pelos clamores dos humanos. Enviou a peste e a tempestade para dizimá-los, que, contudo, não foram suficientes para tanto. Outros malefícios foram então decretados, a seca e a esterilidade. A fome foi horrível. Durante cinco anos a humanidade resistiu. No sexto, os humanos começaram a se devorar. A terra começou a se despovoar rapidamente. 


Ea/Enki, mais uma uma vez, resolveu intervir. Pediu à deusa Mami (deusa mãe da fertilidade) que criasse uma nova raça. A deusa cortou em catorze pedaços a lama, colocando sete pedaços à sua direita e sete à sua esquerda, criando o masculino e o feminino e lhes dando uma forma semelhante à sua. Desde então os seres nascidos do humus viveram em paz com os deuses.


Vimos acima que houve um tempo em que os deuses, desgostosos, resolveram destruir a humanidade. Quase todas as versões míticas são unânimes em afirmar que foi Enlil, quem, sentindo-se ameaçado de perder o poder para os outros deuses (Ea/Enki, especialmente), optou pelo dilúvio, uma forma de extermínio demasiadamente rigorosa, não apoiada pelos demais deuses. Ea/Enki resolveu então passar um aviso do que ocorreria a um mortal, Utnapistin. Chamo a atenção para esta atitude protetora de Ea/Enki, que vai aparecer também no mundo grego, em alguma de suas divindades, como Nereu e Oceano. 


GILGAMESH E UTNAPISTIN

Utnapistin, modelo do Noé bíblico, construiu um barco que resistiu à avassaladora tempestade. Grato por ter sido salvo, ele fez diversas oferendas aos deuses. Enlil, ainda segundo os mitos, devido à sua impiedosa decisão, foi muito censurado pelas demais divindades. A destruição da humanidade, segundo consenso divino, desobedecido por Enlil, deveria ocorrer lentamente. Pela ideia original, os deuses deixariam de intervir na vida dos humanos, o que os levaria à sua própria autodestruição por guerras, conflitos e degradação do mundo natural.

NIBIRU ASSINALADO

Por fim, quanto aos mesopotâmicos do sul, é de se registrar que antigas histórias sumérias nos relatam que, depois do dilúvio, a Terra teria sido habitada por seres andróides, provenientes do planeta Nibiru, que se encontra bem além de Plutão. Para os sumérios, esse planeta, segundo algumas pesquisas, seria o décimo segundo do seu sistema zodiacal. Desse sistema fariam parte o Sol, Mercúrio, Vênus, a Terra, a Lua, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Plutão e mais Nibiru. Doze planetas ao todo. 

ÓRBITA DE NIBIRU

A grande e excêntrica órbita de Nibiru, para os estudiosos do assunto, faz com que esse planeta se torne invisível à observação. Segundo cálculos, o ano de Nibiru corresponderia a três mil e seiscentos anos terrestres. São atribuídos aos annunaki, os seres de Nibiru, a criação da antiga cultura suméria.


Quem expõe de modo mais coerente as informações acima, além de outros pesquisadores, é Zacharia Sitchin, um linguista falecido em
ZACHARIA SITCHIN
2010, perito na escrita cuneiforme, que interpretou a mitologia mesopotâmica, principalmente a suméria. Ele defende a ideia de que a existência dos Annunaki não era uma fantasia. Provenientes de Nibiru, os Anuna, como também eram chamados, palavra que significa “descendência principesca” em sumério antigo, eram conhecidos como divindades não diferenciadas por nomes individuais. No mito, foram eles que construíram os primeiros templos e civilizaram a região, vivendo unidos às chamadas lamas, divindades femininas, a eles semelhantes.


No mito, os Annunaki eram filhos do deus Anu ou Na, palavra suméria quer dizer céu, como vimos. Como deus do céu, Anu era
ERIDU RUINAS
considerado como o senhor de todos os deuses e responsável pelo primeiro ato que pôs em movimento a criação. Para Sitchin, os “Annunaki” puseram os pés na Terra na região de Eridu, ao sul da Mesopotâmia. Eridu, como se viu, é a cidade sagrada do deus Ea/Enki, cidade que os sumérios sempre afirmaram ter mais de 250.000 anos, número que fica bem abaixo do defendido por Sitchin para a chegada dos “Annunaki”, que é de aproximadamente 450.000 anos!  


O CÉU DOS ANNUNAKI

As teorias de Sitchin, embora muito coerentes sob o ponto de vista mítico e linguístico, foram evidentemente rejeitas pela ciência oficial que estuda a Mesopotâmia. Para ele, por exemplo o deus que se associa a Nibiru é Marduk. A luta deste contra Tiamat, também um planeta, mas no mito o grande oceano, símbolo do caos, refletiria uma catástrofe cósmica, descrita no Enuma Elish, o poema da criação, o choque de dois planetas. Para o linguista, esta colisão teria formado a Terra, o cinturão de asteroides e os cometas. 

NEFILINS

Segundo Sitchin, os Annunaki sumérios eram conhecidos na Bíblia pelo nome de nifilins. Ele nos informa ainda que, segundo inscrições muito antigas, a civilização de Sumer se estabeleceu sob a tutela dos annunaki, conhecidos no Poema da Criação, como os “senhores da terra e do céu”. Sitchin usou para construir as suas teorias as traduções que uma equipe, sob sua orientação, fez de textos sumérios, escrituras védicas e de antigos textos bíblicos, redigidos em antigo hebraico e grego.