terça-feira, 30 de agosto de 2011

AS CORES FEMININAS DO TEMPO


SIMONE DE BEAUVOIR E SARTRE NO CAFÉ DE FLORE


A literatura existencialista é uma literatura do presente. A história contemporânea nela está sempre visível, ainda que representada sob formas alegóricas. Num equilíbrio instável entre a gratuidade reconhecida à obra de arte e a eficácia que dela também se pode exigir, caminhando perigosamente entre os abismos da propaganda e do puro divertimento, esta literatura é, como o homem, uma liberdade difícil. "Nós não queremos perder nada do nosso tempo; talvez outros tenham sido mais belos, mas este é o nosso", diz Sartre. E a posição de Simone de Beauvoir nesse grande movimento aparece-nos como particularmente importante porque, primeiro, trata-se de uma mu­lher que afirmou e provou não haver uma natureza feminina dada, mas uma situação feminina imposta; depois, porque ela re­nova o conceito de identificação entre o autor e a sua obra, de um lado, e a realidade, de outro. Com efeito, os autores existencialistas são engagés enquanto recebem e transmitem a revelação do tempo catastrófico em que vivemos e a necessidade de ultrapassá-lo. Por isso, para eles, num período de crise e mal-estar como o nosso, que atinge a consciência de todos, os problemas atuais devem ter prioridade na literatura.

Os personagens dos romances e peças existencialis­tas possuem uma característica comum: refletem as preocupações da época, têm uma "consciência moderna", situando-se historicamente num período que se estende entre as duas guerras mundiais, cobre a segunda e continua no pós-guerra. Essa litera­tura, conforme observa Thierry Maulnier, passeia pela estrada do nosso tempo e desempenha o papel do revelador na fotografia. Todos os romances de Sartre e de Simone de Beauvoir têm por background as décadas de 30 e 40, com exceção de Tous les hommes sont mortels, do qual uma parte se estende sobre um panorama histórico de oito séculos, embora o par central, Régine-Fosca, seja contemporâneo e dê toda a significação à obra.

Quanto às peças, elas nos levam à Idade Média, à Grécia Antiga, à América, à Europa, tendo os personagens, porém, as preocupações fundamentais dos seus irmãos modernos: uma razão para viver apesar de tudo, da guerra, das perseguições, dos males que afligem o ser humano. Resulta desse conjunto que a mulher a interessar os autores existencialistas, e que ocupará as posições centrais nos seus romances, há de ser aquela cuja consciência esteja tomada pelos dilemas da época moderna. Torna-se importante, pois, caracterizar o mundo atual e ver como os personagens modernos vivem nele. A história das duas últimas décadas está dominada pela presença da guerra, por revoluções, por ocupações e por outros Cavaleiros do Apocalipse. A produção existencialista deixou-se marcar profundamente por esse estado de coisas. So­mente duas obras não têm como tema uma grande catástrofe his­tórica ou uma forma de terrorismo: La Nausée e Huis Clos.

Na literatura tradicional, a guerra e os cataclismos influenciam as ações dos personagens, mas não afetam a estru­tura das suas consciências. No mundo moderno, a guerra, além de ação, transformou-se em angústia e, na medida em que é a­tividade, dinamismo, desaparece. A monstruosa tecnologia toma conta de tudo. Não há mais campos de batalha; com a guerra a­perta-botão, a bomba atômica, a destruição maciça, não se distingue o combatente de uniforme da dona de casa ou da criança. Desta forma, mesmo as mulheres das peças existencialistas que se passam na Idade Média, Hilda (Le Diable et le bon Dieu) e Catherine D'Avesnes (Les bouches inutiles), são envolvidas pelos acontecimentos e não se parecem, de forma alguma, com aquelas que, recolhidas na passividade, ficavam a cantar tristes e melodiosas Chansons de Toile. Desponta um sofrimento novo, agora ligado ao que comumente abate as mulheres durante as guerras, vítimas sem homens, sua razão de existir.



Agora, todos, soldados e não-combatentes, têm em comum a angústia cósmica da destruição. Esse sofrimento novo agarra-as e uma obsessão secreta e sutil vai percorrer as páginas dos três romances em que são postos em cena os anos que precedem a última guerra: L'âge de raison, L'invitée e Le sang des autres. As mulheres não incitam mais os seus homens ao combate, nem sonham orgulhos quando eles estão nela. Algumas procurarão decididamente conservá-los ao abrigo, como Hélene e Lola. Mas logo arrebenta o conflito; a queda de 1940 encontra-as dispersadas pelas estradas da França e (La mort dans l'âme e Le sang des autres). Para Hélene o futuro "escorre gota a gota para fora da cidade e o passado se esvazia... transforma-se já em pó; não havia mais passado. A terra inteira não era mais do que um exílio sem retorno”. Há também aquelas que se sentem felizes com a guerra, que lhes oferece um objeto para o ódio ou para a crença. Basta transferir a "guerra em nós" dando um objeto exterior à raiva ou à fé disponíveis: raça inimiga (Sartre retoma um pouco o mesmo argumento para expli­car o anti-semitismo), um invasor. E eis criado um vasto cam­po de ação para o ódio, que pode então explodir e ser alimentado sem remorsos. É a "ação profilática da guerra". Os grandes transtornos oferecem ao ódio o amor, o medo; às perversões habituais, inúmeros pretextos para satisfazê-las.


Esta atitude é encarnada por Ivich em Les chemins de la liberté. Graças à guerra, acabaria o tédio. Ninguém será responsável por mais nada. Ninguém prestará contas a nin­guém, e muito menos a si mesmo. Ivich foge de casa, assume um ar de coisa perdida, de âme à la dérive; atira-se nos bra­ços de um homem que não ama, outrora desprezado. Entretanto, a guerra não veio, o acordo de Munich fora assinado.

Ao lado da angústia cósmica causada pela guerra, existe outro traço fundamental, que não pode ser esquecido, uma espécie de "mal do século". Não uma visão moderna das aflições de Musset ou Byron, mas um mal-estar que decorre do próprio viver. Negá-lo seria trapacear, tanto na vida como na literatura. E a acompanhá-lo, ligando-se a ele indissoluvelmente, a noção de angústia. Daí o pânico de Ivich quando vê frustrada a "sua" guerra, guerra que a libertaria da necessidade de escolher. Às vezes, essa angústia se chama medo, levando mulheres a se refugiarem (Xavière), a procurarem a segurança nas pequenas mentiras do cotidiano (Odette), ou a se fecharem em quartos róseos e perfumados (Marcelle).

ALFRED DE MUSSET

Completando estas cores do tempo, angústia e in­quietação, vem o triste corolário do desespero. No que se re­fere às mulheres, não se trata, para os autores existencialistas, do "amor triste", do qual eles não pretendem ser os cro­nistas. Nem dos amores falhados, das incompreensões conju­gais, dos suicídios ou dos adultérios. O que grita à consciência existencial, esmagando a mulher encerrada na imanência é, segundo Heidegger, le délaissement, o abandono, o desamparo. É o que acontece quando ela se pergunta: “Valerá à pena? Para quê? Por quê?” Quem talvez melhor expresse na literatura esse abandono, essa desesperança, é Anny, a antiga amante de Roquentin, cujo rosto reflete "um desespero seco, sem lágrimas, sem piedade", a verdadeira Anny que está por trás de uns traços de criança. É esse mesmo desespero que aflige Madeleine, que empalidece Françoise quando discute com Gerbert sobre as incertezas do tempo.

O quadro não ficaria completo sem as noções de exí­lio e separação. O tema dos amantes separados não é novo: Tristão e Isolda, o Cavaleiro da Rosa etc. A literatura existencial dá-lhes, porém, uma figura sistematicamente trágica. Ela associa as palavras exílio e alienação com o que elas têm de permanente e irremediável, na forma clássica do obstáculo. Ca­bem aqui as palavras de Camus (Les Justes): A injustiça sepa­ra, a vergonha, a dor, o mal feito aos outros, o crime sepa­ra... aqueles que se amam devem morrer juntos se querem ficar unidos.

As mulheres existencialistas estão bem situadas no presente; são mulheres de uma idade atormentada. Seguem um ca­minho escarpado. Se Sartre não forçou as portas da salvação para elas, Simone de Beauvoir o faz. A distância que vai entre L'invitée e La force de l'âge é grande. No meio, o livro fundamental que é Le Deuxiême Sexe. A impressão que temos da mulher na obra existencialista é a de uma mudança de perspectivas. A mulher é apresentada nos seus arquétipos os mais tra­dicionais: mãe, esposa, amante. Mas não é o seu valor nestes arquétipos que conta, pois eles aqui significam situação indi­vidual e concreta de uma mulher. No fundo dessa situação está o problema da existência. Colocada num universo sufocante, na angústia e na infelicidade, presa entre a finitude e a trans­cendência, ameaçada pela morte e pela fuga do tempo, a mulher é o que ela se faz. Sua existência de ser humano encerrado nu­ma condição humana define-se pela ligação que tiver consigo mesmo e com o mundo. A maioria dos personagens femininos da obra existencial pertence à categoria que está submetida à enorme pressão da história e do convencionalismo, mulheres cercadas por um sistema de hipocrisia e má-fé fabricado pelos donos do mundo.

Os nossos autores não nos falam de rainhas ou princesas. As heroínas vivem agora em apartamentos mobiliados, ma­gazines, cafés e mesmo na guerra. Ainda mais: o terreno onde os sexos se encontram foi alargado. Não está mais reduzido a um díptico, a conquista da jovem e o amor adúltero: Les Liaison Dangereuses e Madame Bovary. Uma mulher vive hoje todos os dias e todas as horas. E a literatura existencialista considera, por isso, a totalidade da sua existência.

A pergunta que se apresenta, depois de uma análise, é: em que medida a mulher "existe"? Não se trata mais da ve­lha pergunta: é feliz a mulher? Na medida em que ela renun­cia à sua liberdade nas ligações que mantém com o mundo em geral e com os seus pares masculinos em particular, ela é imanência, passividade. Se, pelo contrário, ela assume a sua própria vida e a constrói no plano da autenticidade total, ela existe. Decidir, escolher, porque existe, para que exista é o plano da existência. Plano da escolha, moral. Escla­reçamos desde já que a ética existencialista não está formu­lada in extenso. Esperamos o tratado de moral que Sartre prometeu nas últimas linhas de L'être et le néant. Até a­gora temos, sobre o assunto, um longo ensaio de Simone de Beauvoir, Por une morale de l'ambiguité, e o livro de Francis Jeanson, Le problème moral et la pensée de Sartre.

Diante desta ausência de toda moral formal não é de espantar que a acusação de imoralidade tenha sido lançada sobre o existencialismo. Corrompe a juventude, dizem; des latrines intelectuelles, afirma Mauriac. A que nossos au­tores respondem que, na realidade, é a doutrina menos escandalosa e a mais austera. Não há inocência absoluta, nem cul­pabilidade absoluta com relação a uma moral préestabeleci­da. As ações mudam de sentido quando saem do ser: Françoise, em L'invitée, se lembra da sua aventura com Gerbert na hospedaria da montanha como de um momento puro e luminoso. Para Xavière, nada mais do que um episódio ignóbil. Nós permanecemos estranhos ao processo que nos movem os outros. Num sentido tradicional, os personagens de L'invitée são desprovi­dos de senso moral. Imoralismo? Não, responde o existencia­lista, porque nós reconhecemos os outros como coordenadas permanentes de nossa vida, as quais devemos assumir, e que nós somos também o que eles pensam de nós. A espada está sempre suspensa entre nós e os outros, a separação das consciências iminente. Em toda situação, naquela tão insólita do trio de L'invitée, a ação é essencialmente livre, devendo ser recriada a cada instante. Ver-se-á, então, como nasce a boa-fé, o respeito pelos outros e a generosidade. A fórmula não existe "a priori", mas refeita incessantemente; a ação exprime o apego do homem à terra e ao mundo (a negação do impulso ao suicídio, o único problema, dizia Camus). É como Simone de Beauvoir vê a questão: O que define todo o hunanismo é que a moral não é um mundo dado, estranho ao homem, que deve­rá esforçar-se para nele penetrar... Não é o homem impessoal, universal, que é a fonte dos valores; é a pluralidade dos homens concretos, singulares.