quinta-feira, 18 de março de 2021

OS SÍMILES EM HOMERO

                                   

Os povos da antiguidade sempre perceberam que todos os animais e vegetais estavam impregnados de uma parte, maior ou menor, da energia que animava o universo, em muitas tradições consideradas esta energia como divina. As características de muitos animais (todos?) foram parar nas religiões, devidamente sacralizadas. Assim, serpentes, vacas, leões, peixes, toupeiras, águias, ratos, panteras, escorpiões e outros foram adotados para representar o poder  de deuses, de semideuses, de heróis ou simplesmente algum aspecto do caráter de seres humanos.

Os antigos cultos dos povos predadores, caçadores e/ou guerreiros, bem antes do domínio das religiões patriarcais, se caracterizavam por uma grande quantidade de representações animais, que hoje sobrevivem, por exemplo, no círculo zodiacal, na arte, na literatura, na comunicação de massas ou na linguagem informal do homem comum. O cristianismo fez grande uso de símbolos animais, bastando apenas lembrar as representações de três dos evangelistas Mateus (anjo), Lucas (boi), Marcos (leão) e João (águia). Cristo foi representado pelo cordeiro, o Espírito-Santo por uma pomba e os primeiros cristãos por peixinhos.


MATEUS                 JOÃO                  MARCUS               LUCAS

O que nos fica destas representações é que os animais sempre foram considerados como receptáculos da energia cósmica. Os bestiários (compilações medievais, geralmente em versos, de narrativas alegóricas sobre animais fabulosos ou reais) estão repletos de exemplos. Muitos animais, nesse imenso contexto, foram usados para representar aspectos negativos ou não da natureza humana. A serpente, por exemplo, “domesticada” pelo homem, ganhou asas para que se representasse positivamente o controle da vida instintiva. É por este entendimento que uma das obras de arte mais famosas da cultura ocidental, a tapeçaria de La Dame à La Licorne, hoje em Paris, no Museu de Cluny, na França, numa “leitura” mais culta pode ser levada também para a Psicanálise. 


LA DAME À LA LICORNE
 

Aventurando-nos na Ilíada, seus símiles (figura de Retórica que estabelece uma comparação entre dois termos de sentido diferente, que podem ou não estar unidos por expressões comparativas, a expressão" assim como") de animais são entendidos sem problemas pela maioria dos seus leitores. A tradição literária europeia, inclusive a popular, desde a antiguidade, já continha numerosos exemplos nesse sentido. Em Homero, os símiles de animais, de fácil entendimento, dentre outras coisas, tinham a pretensão de animar os auditórios, de elogiar personagens, denegri-los, provocar o riso etc. 

A Ilíada, como sabemos, cujo texto é classificado como um poema épico, tem a sua ação centrada na Idade dos Heróis, falando-nos ele de uma guerra de conquista. Problemas éticos e psicológicos dos heróis e demais personagens dessa epopeia, têm, pela habilidade do poeta, como se pode constatar, relação com símiles de animais sempre associados ao tema, leão (animal bélico por excelência), leopardos, lobos, javalis etc. É de se lembrar, também, que os símiles de animais em Homero têm por objetivo não só a ampliação da narrativa, pelas conexões que obrigam o leitor (ouvinte) a fazer, como permitir-lhe assimilar aspectos de animais à aparência e à personalidade de um personagem.

MENELAU
Exemplo: Menelau, no canto III, por exemplo, ao avançar com passo arrogante à frente do seu exército, ao ver Páris, é comparado a um leão esfaimado quando encontra um cervo morto ou uma cabra selvagem para devorar. Além de animais, lembremos, são usados também na Ilíada, para símiles, elementos (o fogo, no caso, obviamente): guerreiros são associados ao elemento ígneo, lutando com o ardor do fogo chamejante; um herói em campanha é comparado a um incêndio na floresta; uma lingueta de flama surge na cabeça de Aquiles quando ele se dirige à trincheira para se opor  aos troianos. A deusa Fama, ao atuar, se inflama (canto II) etc.



PÁTROCLO



AQUILES
O que podemos destacar, porém, em Homero é que os seus símiles não podem ser definidos linearmente, não fazem parte de um vocabulário fixo de sinais aceitos e sem nenhuma ambiguidade. As imagens que Homero usa para nos falar do desejo ardente de vingança de Aquiles (causado pela morte de Pátroclo por Heitor) são retiradas do mundo animal. Heitor, antes de lutar com Aquiles, pede-lhe que o vencedor do combate devolva o corpo do vencido à sua família para as devidas exéquias. Aquiles recusa, demonstrando uma hostilidade implacável, cheia de ódio, a Heitor. A ilustração desta situação é feita através de símiles que tipificam a inimizade no mundo animal. Aquiles quer demonstrar o absurdo, o impossível, da proposta de Heitor. O poeta usa repetições (anáforas) para criar uma ênfase fortemente negativa, sugerindo, assim, o antagonismo entre animais para nos remeter à situação de Heitor diante de Aquiles. O poeta usa pares de oponentes: leões e homens, lobos e ovelhas. Ou seja, Aquiles está do lado dos leões e dos lobos, Heitor estará do lado de homens e ovelhas. Tanto a psicologia e os costumes sociais desses animais nos dizem que leões e lobos jamais farão contratos como Heitor propusera. 

Aquiles usa repetidamente símiles sobre os seus sentimentos, numa espécie de auto-exposição constante. Nosso herói, lutando pelos gregos, por Agamemnon e Menelau, sente-se como uma ave-mãe sofrendo na busca de petiscos para os seus passarinhos. As comparações continuam: ao combater em Troia, Aquiles não teme ser morto por Heitor ou por Páris, uma morte digna talvez, mas teme ser morto como um porqueiro miserável afogado no rio Escamandro. 



PÁRIS  E  MENELAU

A semelhança entre guerreiros e animais é grande: Aquiles “olha como uma fera”, seus “olhos de leão chamejam”. Os animais em Homero têm um sistema emocional e racional-mental parecido com os dos homens. Os animais têm, como os humanos, kardia, thymos, phrenes, órgãos que falam, em Homero e em toda a antiguidade grega, de um princípio de vida, de sentimentos, de paixões, de entranhas que ditam comportamentos.


HOMERO
Para Homero, homens e animais tinham em comum uma emoção a que ele deu o nome de charne, algo semelhante ao que provoca uma excitação que se apossa do guerreiro quando convocado para a  luta. Essa exultação, associada a alke, coragem, que combinada com a força física mais a areté (qualidade, aptidão), constitui a base da virtude bélica para os gregos. Alke tem também um outro sentido: é a pulsão que leva homens e animais a chegar a extremos numa batalha, extremos que podem inclusive lhes causar a morte. É de se lembrar que o primitivo nome de Hércules, o famoso Leontohymon (Coração de Leão), era Alcides, Alkeides, nome proveniente de alke, força em ação. O apelido de Coração de Leão o nosso herói, como se sabe, o conquistou quando realizou o seu quinto trabalho, associado ao signo astrológico de leão, matando o leão de Nemeia.



HÉRCULES E LEÃO DE NEMEIA
As associações e relações podem prosseguir: lembre-se que Nemeia é nome que tem relação com um bosque e uma cidade da Argólida. Foi no bosque de Nemeia que Hércules enfrentou e venceu o monstruoso animal, filho de Ortro, outro monstro, cujos pai e mãe eram, respectivamente, Tifão e Équidna. Eram irmãos do Leão de Nemeia, dentre outras, figuras tenebrosas do mundo animal como Cérbero (cão infernal de três cabeças) e a Hidra de Lerna. 



HIDRA DE LERNA  ( VASO GREGO
)


NÊMESIS
Ainda cabível me parece lembrar outra relação: Nemeia, do verbo nemein, como se disse, traduz sempre uma ideia de se distribuir conforme o costume, isto é, equitativamente, de modo que o que cada um venha a obter não ponha em risco o mundo dos homens e a própria ordem cósmica como um todo. É desse contexto que sai uma das principais figuras da mitologia grega, a deusa Nêmesis, que simboliza, como as Erínias, não só a justiça primitiva dos deuses como a força divina que há de se opor aos que tentam ultrapassar o seu métron.