terça-feira, 20 de setembro de 2011

ANGÚSTIA


Vamos à etimologia (étimo quer dizer verdadeiro, certo), a origem e a evolução de uma palavra, que sempre é a melhor maneira de nos aproximarmos do seu campo semântico. O ponto de partida é o elemento de composição ang, antepositivo latino, que encontramos com o sentido de oprimir, estreitar, apertar a garganta. Vindo do indo-europeu, foi usado tanto no plano físico e moral. Se formos mais fundo, encontraremos essa raiz no sânscrito e no grego, angh, também com o sentido de apertar. O verbo latino é angere, que nos põe diante de uma ideia de constrangimento, de aperto. Daí, em várias línguas, palavras como anguish, ansiedade, angoisse, ansiolítico, angoscia, angst, angheria, enge, angry, anger, ancilose, anquilose, angina, ancilosar, ansiado etc.

Angina, por exemplo, é doença da garganta, aflição, tormento. Angustiae, em latim, plural, foi usada para designar tanto gargantas, desfiladeiros, fissuras, abismos, como dificuldades, embaraços, opressões no plano moral. Nos dicionários, é estreiteza, redução de espaço, de tempo, limitação, inquietude, desassossego. Na Psicologia, é medo sem objeto determinado. Na Psicanálise, é o modo pelo qual o organismo reage a um ou vários estímulos mas sem conseguir compreendê-los bem, sem assimilá-los, gerando-se, em consequência, uma espécie de paralisia, uma frustração, um temor inexplicável. Com isto, por exemplo, não conseguimos realizar o que pretendíamos ou ficamos a imaginar a perda alguma coisa.

A angústia é sempre um fenômeno interno de opressão e de fechamento, fenômeno este que ocorre trazendo a crença de um sofrimento ou de um mal iminente, diante do qual nos mostramos impotentes. Uma dor que não conseguimos caracterizar, um medo sem objeto. Este medo tende a bloquear a nossa ação; ao mesmo tempo, um sentimento de fadiga, de cansaço, de desamparo. Todas as possibilidades da ação para sairmos desse estado podem ter sido levantadas, mas nenhuma nos satisfaz. Não é bem um recuo diante de alguma coisa, é antes uma parada, estacamos, inertes, à mercê desse sentimento difuso, impreciso. Ao contrário do medo, que sabe identificar os seus demônios, a angústia não sabe.

CASTELO DE PRAGA

Mais ainda: a angústia pode ser também tanto uma emoção como um temperamento e uma doença. A angústia se torna mais complicada ao gerar perturbações fisiológicas (palidez, aceleração do pulso, rubor, tremores, palpitações, agitação, incapacidade de movimento). Em muitos casos, as oscilações podem ir de uma simples inquietação ao pânico (síndrome do pânico), com manifestações de contrações epigástricas ou laríngeas, desfalecimentos etc.

Foi só a partir do século XIX que a angústia encontrou a sua conceituação mais clara, com Kierkgaard (1813-1855). A partir desse pensador dinamarquês a angústia entrou no repertório da nosologia. Para Kierkgaard, um sentimento de ameaça impreciso e indeterminado inerente à condição humana, pelo fato de que a existência tendo que ser projetada incessantemente em direção do futuro faz com que nos defrontemos de maneira inexorável com a possibilidade de fracasso, sofrimento, e, no limite, a morte. Ou seja, ser é angustiar-se. Sentimento inseparável da existência humana.

A colocação de Kierkgaard nos põe diante de uma questão fundamental, a da transcendência, que, na sua perspectiva, como as filosofias da existência desenvolveriam mais tarde, não é a caminhada em direção de um além invisível, a saída do plano terrestre, fora da existência. Pelo contrário, é uma ação pela qual a existência humana, através de escolhas, ações e compromissos, ultrapassa a sua realidade imediata, alcançando o mundo objetivo, a temporalidade e a liberdade, renovando-se constantemente. A angústia passa a ser assim um fator de mobilização, podendo até nos instigar no sentido de buscas criativas.


Num mundo como aquele em que vivemos hoje, as pessoas, em espantosa maioria, nunca chegarão a estas questões, evidentemente, porque o caminho da liberdade implica um “morrer” e um “renascer” diários, até o encontro final com Thanatos, a Morte. Os grupos sociais que detêm o poder no mundo ocidental acham que conhecimento é domínio técnico, nada mais. O pensamento crítico quanto a essa visão de mundo, que deveria ser assumido pela universidade, não passa, no seu todo, de uma mitologia inofensiva, um jogo de troca de posições e vaidade, distante do homem comum, alienado e manipulado como sempre. Esses grupos procuram viver da melhor maneira possível, mas deteriorando e destruindo aquilo que do passado poderia ser aproveitado. Por isso, a tentação das tiranias vez ou outra quando algumas fermentações que possam indicar possibilidades de mudanças são percebidas.

O homem que procura hoje seu lugar na sociedade busca na tecnologia, único modelo cultural admitido, métodos e axiomas que lhe permitam galgar posições. Seu sucesso, porém, estará sempre ligado à manutenção da infraestrutura do sistema para que se preserve a ordenação vigente. A transcendência, como há milênios, é, por isso, jogada para fora da vida e continua na mão dos vários modelos religiosos, numa acirrada disputada de mercado. Ou, então, projetada por futurólogos em direção de um novo evolucionismo, e, como tal, também retirada do presente. Anuncia-se nesses meios o aparecimento de espíritos (minds), produzidos em laboratórios, libertos do corpo, sem paixões e tendo acesso à imortalidade. O pensamento filosófico, que deveria englobar as aquisições da linguística, da psicanálise, das ciências do homem em geral, constituindo-se no pensamento crítico de tudo isso, exercendo o papel de “má consciência” dessa gente toda, perde-se em glórias acadêmicas ou em meras tautologias, reduzido a nada ou quase nada. Aliás, foi em nome da metafísica clássica, que ocupa muito espaço na história da Filosofia, que a Europa aniquilou inúmeras culturas na Ásia, na África e nas Américas, vivendo do seu trabalho escravo, e é em nome dessa mesma metafísica que a cultura europeia vai sendo destruída hoje pelos novos donos do poder. Por essa razão é que muitos representantes das elites políticas e econômicas do mundo ocidental, presos a uma ideia que vem da antiguidade, acham que o saber, que nada tem a ver com a ciência e a tecnologia, deve ser algo puro, fruto de um lazer intelectual dos que não têm que trabalhar.

ORESTES E AS ERÍNIAS

Vejamos o panorama atual: apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, as catástrofes ecológicas se sucedem, incertezas econômicas por todo lado, terrorismo na porta de casa, consumismo descarado convivendo com alarmantes índices de miserabilidade, epidemias se alastrando, males que julgávamos extintos retornando, violência em cada esquina, a droga como um dos mais rentáveis negócios do mundo, rendendo tanto ou mais que os negócios bancários oficiais, os poderes constituídos em acelerado processo de degradação e descrédito... É claro que há as “pessoas de boa vontade”, mas são tão poucas e, o que é pior, muitas, ainda por cima, fazendo, sem saber, o jogo dos donos do poder e dos grupos que as sustentam. Que caminho tomar?

DOSTOIEVSKI

Certamente, para a cultura ocidental, foram alguns personagens da mitologia grega os primeiros a apresentar formas de comportamento onde podemos notar fortes traços de angústia. Embora ela não esteja descrita, ela está presente. Orestes, o matricida, é um dos grandes exemplos. A tragédia grega, a de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, como um todo, na forma como a “polis” a patrocinou, pode ser vista como uma das maiores tentativas de se trabalhar a angústia coletivamente. Aristóteles, no seu tratado da Retórica, deixa claro que o Estado pode ser o grande agente de um processo terapêutico, que, diga-se de passagem, se não trouxe uma cura definitiva da angústia conseguiu, pelo menos, momentaneamente, ajeitar um pouco as coisas, atenuando-as. Os romanos farão uma tradução grosseira da estratégia grega através do panem et circensis, na magistral formulação de Juvenal.

Longa seria uma viagem pela história da angústia, desde os gregos, passando-se pelos estoicos, pelos epicuristas, pelos poetas latinos, por Santo Agostinho, pela poesia medieval, pela Renascença, pelos mitos de Fausto, Hamlet e d.Juan, que Kierkgaard retomará de forma notável. Mais perto de nós, dentre muitos outros, Dostoievski e Kafka como exemplos maiores. A fixação do conceito, entretanto, continua aquela que Kierkgaard deixou. O essencial, como ele mesmo registra, ainda muito jovem, é saber o que devemos fazer e não aquilo que devemos conhecer. De que adianta, perguntava, assimilar sistemas de filosofia ou construir um mundo onde não vivemos? O professor olhou-o, com muita pena: “pobre criança, vives num mudo desespero...”

No seu Diário, o dinamarquês fala várias vezes da necessidade de morrermos sempre. No seu túmulo, versos que desejou que nele fossem gravados: “Ainda um pouco mais e eu teria vencido; e todo o combate, nesse instante, teria tido fim...” A vida como viagem está numa carta que escreve em 1838 a um amigo: Onde está meu Ararat? Será que o tempo de desembarcar já chegou? Posso abandonar a minha arca? Heidegger retomará tudo isso: a angústia no centro da experiência humana como sua condição possível.

MONTE ARARAT

O problema, a partir de Kierkgaard, é o de criarmos um sentido para a vida, renovando-o a cada momento. Escolha constante, esforço permanente, angustiante. A maioria tenta, ao contrário, seguir modelos já elaborados, montando uma personalidade aceita e considerada socialmente que a desobrigue de fazer escolhas. No fundo, o teatro social, um faz de conta, onde o que importa é sermos alguém aos olhos dos outros. Com isto, sentir-nos-emos justificados, não teremos que fazer escolhas, escaparemos da angústia, ficaremos dispensados dela, já que a opinião e a consideração dos outros bastará para nós. Sartre esclarece com muita clareza esta situação: a maioria foge desta necessidade de uma intervenção no mundo, diz ele, afinal a única que nos cabe, pois a própria consciência é sempre consciência de alguma coisa, é sempre um tender a algo, um estar fora. Adianta mais: para não se empenhar em ser um projeto sempre renovado, o ser humano acaba se tornando a sua própria estátua.

Ainda que a existência se mostre como contingência, absurdo, náusea, angústia, é preciso que nos comprometamos com ela, agora, aqui, por mais belos que outros tempos tenham sido ou que o futuro nos acene com um mundo melhor. Muitos tentam escapar desse mal-estar pela arte (a vida como estética). Nietzsche, tentado inicialmente por esse “ilusionismo” e suas formosas mentiras (a arte como refúgio) criou a figura do “super-homem”, do homem suficientemente forte para um corpo-a-corpo com a vida.

Nos tempos de hoje, diante do sucesso da tecnologia, propostas mirabolantes vêm dessa área (Robótica). Nada de angústias, coisas da pré-história do homem, dizem-nos os arautos desse “admirável mundo novo”, chegaremos à era da “pós-humanidade”. É a chamada vida artificial, um campo de estudos de sistemas artificiais que apresentam um comportamento característico dos sistemas vivos naturais. A tecnologia micro-eletrônica mais a genética permitirão a criação de formas novas de vida...

Uma das maneiras que muitos encontram para escapar da angústia aguda (crises de pânico, por exemplo), vivida como doença, é a de ingressar no mundo da angústia crônica, uma espécie de ansiedade generalizada, feita de pequenos cuidados, sempre uma visão de perigo diante do mundo que superestime riscos e que sobrestime a nossa capacidade de resolvê-los. Com isto, o problema desloca-se do imaginário (angústia aguda) para o concreto (ansiedade). Um exemplo clássico deste último tipo é Schopenhauer (1788-1860), o patrono dos fóbicos.

Diante de tudo isso, o que fica quando consideramos a angústia na perspectiva kierkgaardeana e dos pensadores que o seguiram é que o bem e o mal não podem ser realidades prefixadas, estabelecidas previamente, mas relativas a cada situação particular. Isto é, o bem e o mal não podem ser teóricos. Terão que ser estabelecidos segundo as circunstâncias como realidades concretas. O ato moral terá que se constituir numa escolha e não na aceitação de algo predeterminado. O olhar da Medusa é tentador para aqueles que desejam ser liberados da obrigação de escolher.

Sartre distingue três modalidades de ser: o ser-em-si, o ser-para-si e o ser-para-os-outros. A primeira é própria dos objetos inanimados, o ser coincide consigo mesmo, não é um tender a alguma coisa. A segunda modalidade é própria da consciência humana; Sartre a caracteriza como sendo o que não é e não sendo o que é. Não é porque ela está sempre se criando a si mesma, não coincide nunca consigo. Ao não ser o que é, está sempre se projetando em direção do futuro, sempre separada por um nada a ser preenchido por ela. Um “oco sempre futuro”, como dizia o poeta Paul Valéry. O ser-para-si é, pois, liberdade e, como tal, transcendência. De outro modo: com nossa liberdade, ultrapassamo-nos, vamos além de nós mesmos. Se não somos livres, não há transcendência. A terceira modalidade propõe de início o outro como um simples ser-em-si para nós. É através de nosso olhar que o outro se revela como um ser-para-si, um sujeito, uma consciência, como nós. A aparição desse outro que ingressa em nossa vida traz basicamente uma situação de conflito, uma luta de transcendências. Somos, nesse sentido, o limite do outro com a nossa liberdade. Esse fato nos revela que não somos indivíduos isolados, mas que estamos comprometidos, queiramos ou não, com a vida coletiva. Isso é inevitável, a interdependência dos destinos humanos. E isto nos obrigará a fazer escolhas e a tomar decisões, sempre angustiados, mas obrigados. Por mais livres que sejamos ou mesmo que não queiramos nos envolver o fato é que estamos sempre envolvidos. Precisamos reconhecer nossa situação para que, a ela ligados, assumamos ou não a nossa liberdade para transformá-la ou não, aceitá-la ou não. Liberdade, pois, só em situações concretas que exigirão soluções concretas. A liberdade só se descobre no ato, unifica-se com o ato. Muitas as possibilidades, mas é a nossa que importa, aquela que viermos a escolher diante do mundo e dos outros.

PAUL VALÉRY

Que podemos esperar de uma proposta que coloca como questões básicas da nossa existência o “cogito”, o outro, a liberdade, a angústia? Os filósofos da existência, Sartre em especial, nos obrigam a pensar de fato. Mais, a tomar decisões tendo em vista o outro, lembrando-nos que não há uma condição humana, mas uma situação humana. Desmascaram as nossas representações, aquelas tentações de posarmos em cima de uma personalidade inautêntica, montada para ser vista de fora.

Alguns acenam com a Psicanálise. Sim, a Psicanálise poderá dizer alguma coisa quanto às questões acima mencionadas. Alguma coisa apenas, pois o fundamental na sua abordagem fica de fora, a apreensão do homem como sujeito-objeto, como praxis significante, e sua relação com a história. Não é por acaso, aliás, que Lacan, com sua atmosfera de seita, cheia de ritos e iniciações, ainda a última moda na área, se opõe aos filósofos da existência, em especial Sartre. E isto, lembremos, além de empobrecer o pensamento de Freud ao lhe retirar o aspecto revolucionário, e de desistoricizar o homem.

O chamado da transcendência exige nosso engajamento, brutal muitas vezes, dramático. Numa das pontas das linhas de resistência a esse chamado, na forma proposta, estão evidentemente, como já dissemos, os maníacos da ciência e da tecnologia, sacerdotes da sociedade global. Continuarão cegos e surdos ao chamado, já que atendê-lo equivaleria a uma “expulsão” do paraíso.

CAIM E ABEL

Uma das histórias que melhor representa essa aventura de alguém que opta pela “expulsão do paraíso”, que se escolhe, que quer acrescentar o seu trabalho à criação, que reivindica o seu lugar na criação, e que é capaz de pagar muito caro por isso, é a de Caim. Deixando de lado as várias interpretações religiosas e históricas do tema, Caim escolhe a maldição, torna-se um pária, impuro e desprezível. Caim é Babilônia, a “cidade da desordem”; Abel será Jerusalém, a “cidade da paz”, como está em antigos textos. Uma aproximação, inevitável, pode ser estabelecida com alguma facilidade: a fundação de Roma, em cuja origem temos um fratricídio, introduz Caim como patrono dos construtores de cidades terrestres, aquele que “sonhou em conciliar a terra com Deus”. Rejeitado por Deus, insensível ao trabalho que realizava, Caim vai se entregar à revolta contra o favorito do céu. Com isto, torna-se símbolo de uma aventura única na história da humanidade, a do homem entregue a si mesmo, vivendo em meio a outros homens, disposto a assumir todos os seus atos, por mais arriscados que sejam, e a se responsabilizar pelo resultado das suas ações.

A título de conclusão, gostaria de citar uma passagem de Sartre (O Ser e o Nada): Não me escolho no meu ser, mas na minha maneira de ser. Podemos estender essa observação ao nosso passado, inclusive. Através da nossa atitude com relação a ele, embora nos pareça fixo, podemos transformá-lo, modificar o seu significado para nós. Somos condicionados por várias coisas, até com relação a sentimentos, a pensamentos, mas nossa margem de escolha é considerável. É nessa margem que estão as portas para a nossa liberdade, é nesse território que uma certa indeterminação nos é oferecida