quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

DOS PECADOS - A GULA



GULA  ( HIERONYMUS  BOSCH , C.1450 - 1516 )

Para suprir as nossas funções vitais, exercemos diversas atividades. Alimentarmo-nos é uma delas. Temos que nutrir, energizar, satisfazer o nosso corpo, que necessita deste e de muitos outros cuidados básicos. Estamos sempre buscando um equilíbrio entre entradas e saídas. Anabolismo, metabolismo, catabolismo. O excesso, porém, isto é, ultrapassado o limite do razoável com relação à absorção de alimentos estaremos pecando contra o nosso corpo. Mas como estabelecer este limite? Fatores hormonais ou disfunções orgânicas podem, por vezes, explicar uma eventual compulsão alimentar. Há, no entanto, outras questões muito importantes que podem elucidar, em boa parte ou mesmo totalmente, esse comportamento descontrolado. Referimo-nos aos aspectos afetivo-emocionais que tal questão envolve.

TARTE  TATIN
Quantas pessoas, depois de um cansativo dia de trabalho, de aborrecimentos, de aporrinhações e de amofinações, um dia daqueles em que nada dá certo, não procuram numa gaveta um pedaço de compensação na forma de um chocolate? Ou abrem uma geladeira para se fartar com aquele cremoso sorvete? Ou, mais drasticamente, não se põem a beber umas e outras para tentar esquecer a chatice que foi o seu dia? Ou recorrem à química, aos ansiolíticos?  Todos  os
BERTILLON 
  terapeutas 
modernos proclamam unanimemente que comer, empanturrar-se de comida, sair em busca de restaurantes estrelados, fazer incursões para encontrar a “melhor feijoada do mundo” ou, para os mais refinados, aquela tarte tatin igual à da Bertillon de Paris para compensar carências afetivo-emocionais ou problemas financeiros, para comer bem, enfim, como se diz, nada resolve. Pelo contrário, concluem, conforme o caso, pontificando ou aconselhando: comer assim só piora a situação. 

CHEF  DE  HÔTEL , PARIS
Os nossos meios de comunicação, TV, revistas, suplementos e livros, fazem-nos conviver hoje com uma farta propaganda sobre gastronomia, concursos para a escolha dos melhores chefs, viagens para conhecermos os melhores “restaurantes do mundo” etc. etc. etc. De outro lado, em menor proporção, temos um cerrado ataque, nas mesmas mídias, contra os nossos hábitos alimentares, com a recomendação de que não nos entreguemos, sem raciocinar, aos prazeres da boca. Temos hoje um crescente número de programas na TV sobre culinária em geral, desde receitas da vovó a realities de gastronomia, disputas entre chefs estrelados de fama mundial, verdadeiras celebrities, tudo com a finalidade de que nos entreguemos, à tripa forra, aos acepipes oferecidos. Muitas faculdades e escolas de nível universitário oferecem hoje cursos superiores de gastronomia. Nenhum escândalo nas “boas” famílias quando os seus rebentos anunciam que optaram pela gastronomia ao invés dos tradicionais cursos de engenharia, de medicina, de direito ou de arquitetura.

Em que pesem as informações que circulam na mídia sobre os males que a glutonaria causa, as campanhas publicitárias que se montam para elevar o status da gastronomia sabem muito bem como preencher os nossos vazios emocionais, como compensar as nossas carências afetivas com alimentos, com comida, principalmente com doces. Desde que o mundo é mundo, todos têm conhecimento que alimentos são usados para atenuar a ansiedade, o medo, as desordens e problemas da nossa vida psíquica. Só que hoje, porém, a coisa está no nível da comunicação de massas, do grande público.

Embora no mundo moderno se promovam muitas campanhas contra os excessos da boca e a favor de uma alimentação mais natural, pouco se consegue quando pensamos em termos de um mercado de consumo mais amplo, do qual uma grande parte é ocupada pela juventude nos nossos meios urbanos. Todos, muito mais eles, os jovens, é claro, continuam vítimas daquilo que chamamos de mcdonaldização da nossa alimentação, do fast food e do delivery, todos, com as raras exceções de praxe, perfeitamente submissos e adaptados ao que a globalização impõe. Nem o horror à gordura, que chamamos de lipofobia (lipos, em grego, é gordura; liparós é gordo), geradora da obesidade mórbida, funciona como freio. O máximo a que se chega hoje quanto a este tópico é o de se considerar a gordura muito mais como um problema estético do que realmente de saúde pública. Desde o séc. XIX a gordura vem sendo aceita publicamente e considerada, em muitos meios, como um sinal de prestígio e de sucesso social. Continuamos como no séc. XIX a exibir mais ostensivamente as nossas panças sem nenhum constrangimento.

Apesar das informações que circulam nos meios de comunicação, atingindo praticamente todas as classes sociais, inclusive as semi-letradas e iletradas,  sobre os perigos da gordura, a famigerada gordura trans, nada se faz realmente em termos coletivos para, não dizermos eliminar, mas para apenas minimizar o problema. Omitem-se ou falseiam-se dados sobre os males que a gordura pode causar ou contribuir para piorar o nosso quadro clínico, coisas como riscos de infarto, de AVC, isquemias causadas por ateromas, problemas nas articulações, deterioração da memória, diabetes etc. 


ARCHESTRATE
Apesar da marola lipofóbica, é inegável o sucesso da chamada cultura gastronômica. Na antiga Grécia, aliás, gastronomia era o nome que se dava ao conjunto das regras da “boa” mesa. Quem criou a palavra foi o poeta Archestrate, no séc. IV aC, com o título de um poema dedicado à arte de comer. A palavra, entre os gregos, tinha uma conotação humorística, ao associar as palavras gaster (ventre), lugar do prazer do comilão, e nomia, lei, regra.

Embora os desfiles de moda das grandes casas de costura que se promovem não deixem dúvidas quanto à lipofobia e alguns poucos setores médicos considerem “pra valer” a obesidade como um problema de saúde, a comilança nunca esteve tão em alta como hoje, pois, na verdade, somos todos gulosos. Um aspecto interessante do que aqui se levanta, por exemplo, refere-se à qualidade da comida que os nossos grandes hospitais servem em
SUQUINHOS
suas cantinas, qualidade que está bem mais para a junk food das sanduicherias espalhadas pelas cidades do que para uma alimentação saudável. Isto para não se falar, por exemplo, da qualidade da comida servida aos pacientes internados, invariavelmente acompanhada pelos intragáveis sucos industrializados de “caixinha” ou de “saquinho” ou por bebidas adoçadas artificialmente.

Na realidade, abrindo um pouco mais o tema da gula, o fato é que raramente nos contentamos com o que temos. Insaciáveis, a nossa compulsão de “engolir” é enorme. Não só comida, mas bens, coisas e até pessoas que fazem parte do nosso ambiente, na medida em que, num mundo extremamente competitivo como o nosso, nos apropriamos física, mental e psiquicamente de tudo ou de todos. Engolir é fazer descer o bolo alimentar da boca para o estômago, deglutir. Simbolicamente, é superar alguém, sobrepujar, vencer, aniquilar.  

 SALOMÃO
Religiosamente, para muitos escritores católicos, sempre bem intencionados, comer e beber podem ser motivos de felicidade, tornando-se santificados os atos a eles referentes, praticados moderadamente, uma dádiva de Deus, enfim, para que o homem se deleite. Muitas passagens bíblicas, contudo, fazem referência ao descontrole alimentar. No Livro dos Provérbios, por exemplo, encontramos: Não estejas entre os bebedores de vinho nem entre os comilões de carne. Porque o beberrão e o comilão caem em pobreza; e a sonolência vestirá de trapos o homem.

DANTE  ALIGHIERI
Nesse sentido, para os primeiros padres da Igreja católica, a gula seria o primeiro dos pecados capitais porque, a rigor, é a porta de entrada de todos os demais. Dizem-nos eles que o primeiro pecado do homem está ligado à gula, embora saibamos que por trás dela (comer o fruto proibido) estavam a tentação e a inveja. Adão e Eva só pecaram quanto à gula, realmente, porque, depois de tentados, comeram o fruto proibido,  açulados pela inveja. Aliás, para Dante Alighieri, na sua A Divina Comédia, a gula era um pecado maior do que a luxúria. Justificava sua opinião, afirmando que enquanto a luxúria se concentrava no culto do corpo do outro, o guloso se concentrava só no seu próprio corpo, na sua sensualidade, no seu ventre.


A  SANTA  CEIA ( LEONARDO  DA  VINCI , 1452 - 1519 )

Para os antigos gregos, a palavra agape, amor fraternal, afeição, por iniciativa de São Paulo, ao que parece, foi usada para designar as refeições dos primeiros cristãos  quando de suas reuniões, muitas clandestinas, evocativas da Santa Ceia. A palavra traduzia uma ideia de felicidade resultante da participação terna, amorosa, numa refeição comunitária, na qual se celebrava também o rito eucarístico. Aos poucos, incorporou-se a ágape o sentido de um almoço de confraternização, de um banquete por motivos diversos (sociais, políticos etc.). Entre os primitivos cristãos ágape era também um nome associado à caridade,  sendo um sinônimo de esmola. 


GULA  ( S. DALI , 1904 - 1989 )
Dante concebeu o Purgatório em oito terraços ou patamares. Os gulosos eram castigados no sexto, onde ficavam presos sob fortes tempestades, com chuvas, neve e granizo, além de atacados constantemente por Cérbero, o cão tricéfalo infernal. Os gulosos viviam totalmente nus nesse terraço, em derradeiros e permanentes estágios de desnutrição, ainda que não morressem. Uma reprodução dantesca, devidamente adaptada ao mundo católico, da pena imposta a Tântalo, o desgraçado filho de Zeus e da ninfa Pluto da mitologia grega.

ADÃO E EVA
( TICIANO , 1490 - 1576 )
Além de gerar sempre vários problemas de saúde, a gula, para os primeiros padres da Igreja, era o pecado capital que mais induzia à prática dos outros. Assim, para eles havia, por exemplo, a avareza da gula (acumular comida e bebida, escondê-las). A gula se tornaria também soberba quando alguém passasse a esbanjar a fartura de alimentos e bebidas não como uma bênção, mas como demonstração de status social, como motivo de orgulho, de ostentação. 

Os primeiros padres da Igreja consideravam, sobretudo, que o mal da alma era o de ficar à margem da razão, não obedecê-la. Sempre haveria pecado, pois, quando o homem se afastasse da razão, que sempre deveria regular a vida humana. Quanto maior o afastamento da razão, maior o pecado. Diziam também que os prazeres mais difíceis de ordenar eram os que chamavam de os companheiros da
TOMÁS DE AQUINO
(G.DA FABIANO, 1370-1427)
vida do homem, os ligados diretamente à sua sobrevivência, a gula e a luxúria. Sem estes prazeres a vida humana seria impossível e é por essa razão, segundo eles, Santo Tomás de Aquino principalmente, como ele expôs mais tarde no seu De Magistro, que ao gozá-los, pecando, maior a transgressão das regras da razão. Maiores as concessões que o homem fazia à sua vida instintiva, animal. 

O papa Gregório, já mencionado, citado por Tomás, disse: O vício da gula nos tenta de cinco modos, levando-nos a antecipar a hora devida de comer, a exigir alimentos caros, a reclamar requintes no preparo dos alimentos, a comer mais do que o razoável e a desejar os manjares com ímpeto de um desejo desmedido. Nesse sentido, são filhas da gula: a imundície, o embotamento da inteligência, a alegria néscia, a loquacidade desvairada, a expansividade debochada. 

EVÁGRIO
Sob o ponto de vista acima, é preciso ter em conta que há dois tipos de gula: a ocasional, a eventual, e a regular, a cometida frequentemente. As mais comuns consequências desta última são a obesidade, a embriaguez e o alcoolismo. A obesidade é chamada de mórbida quando ela pode ocasionar várias doenças e, num estágio final, risco de morte. Aliás, Evágrio e Santo Agostinho afirmaram sempre que a gula era também um pecado capital porque representava um excessivo apego a coisas materiais, mundanas, isto é, à comida e, como tal, afastava da vida celeste e era uma afronta ao ensinamento da temperança e da partilha, pois, neste último caso, aquele que come e bebe muito está tirando o acesso de alimentos a outras pessoas, agindo de forma gananciosa e egoísta.

Em 1589, o teólogo e demonologista alemão Peter Binsfeld escreveu uma lista através da qual associava cada um dos sete pecados capitais a um demônio específico, chamando-os de os príncipes dos infernos. Cada um destes demônios era o responsável pela inspiração de tentações aos humanos. No caso da gula,
BELZEBU
chamava-se esse demônio Belzebu. Na nomenclatura de Binsfeld, Belzebu aparecia sempre associado às moscas, aos vermes, às baratas, aos ratos, à pestilência e à transmissão de doenças. O cristianismo dos primeiros tempos da era cristã para formar a palavra Belzebu fundiu dois nomes fenícios, os nomes dos deuses Baal e Zebub O primeiro associava-se aos trovões e atuava na agricultura e na morte. Zebub era uma divindade da peste e, como tal, aparecia muito ligado às moscas.

GARGÂNTUA
( G. DORÉ, 1832 - 1883 )
Associado à gula, os nossos dicionários registram a palavra pantagruélico, um adjetivo, que serve para qualificar as refeições fartas, alegres e barulhentas. Falamos assim de um banquete pantagruélico. Em português, derivadas do francês, temos as palavras gargantoíce (gula), gargantuar (comer muito), gargântua gargantão, o glutão. Esta última aparece como sinônimo de comilão. Glutão é derivada do nome de Gargântua, personagem de uma extravagante e satírica pentalogia romanesca, obra-prima da literatura universal, escrita no séc. XVI por François Rabelais, que descreve as aventuras de dois gigantes, Gargântua e seu filho Pantagruel, insaciáveis comilões e beberrões. Gargântua e Pantagruel, nomes inventados por Rabelais, têm na sua etimologia radicais indo-europeus gwer ou gwel, que nos deram palavras como engolir, gula, glutão, devorar, goela, voracidade, gárgula etc.


CASANOVA
Giacomo Girolamo Casanova (1725-1798), aventureiro e escritor italiano, que sempre viveu de expedientes, de intrigas e de suas conquistas amorosas, deixou um livro, História da Minha Vida, que nos dá uma visão bastante abrangente da sociedade europeia do século XVIII. Particularmente importantes nesse livro, quanto ao tema aqui abordado, são as suas observações sobre os prazeres da boca:

Cultivar os prazeres dos meus sentidos foi em toda a minha vida a minha principal atividade; nunca fiz nada de mais importante que isso. Sentindo-me nascido para o sexo diferente do meu, sempre o amei e me fiz amar por ele o máximo que pude. Amei também a boa mesa com frenesi assim como todos os objetos feitos para excitar a curiosidade. 

Tive amigos que me favoreceram e me senti muito feliz de poder, em todas as ocasiões possíveis, de lhes demonstrar o meu reconhecimento; tive detestáveis inimigos que me perseguiram e que só não exterminei porque não consegui. Jamais os teria perdoado se não tivesse esquecido o mal que me fizeram. O homem que esquece uma injúria não a perdoou, ele a esqueceu, pois o perdão é parte de um sentimento heroico de um coração nobre e de um espírito , e muitas vezes generoso, enquanto o esquecimento vem de uma fraqueza da memória ou de uma doce indolência amiga de uma alma pacífica, muitas vezes de uma necessidade de calma e paz; já que o ódio acaba por matar o infeliz que se dispõe a alimentá-lo.

Os que me consideram um sensual erram, pois a energia dos meus sentidos jamais me afastou dos deveres quando tive que cumpri-los. Pela mesma razão jamais se deveria ter chamado Homero de bêbado: laudibus arguitur vini vinosus Homerus.

Eu amei as iguarias de elevado sabor: a macarronada feita por um bom cozinheiro napolitano, l`oglio potrida, o bacalhau da Terra-Nova bem viscoso, a caça defumada para encerrar e os queijos cuja perfeição se manifesta quando os pequenos seres que neles vivem se tornam visíveis. No que diz respeito às mulheres, sempre achei que aquela que eu mais amava era a mais perfumada, e mais a sua transpiração era forte mais ela me parecia suave. 

Passagens como esta são muito comuns na mencionada obra de Casanova e resumem perfeitamente a sua arte de viver: seguir um só princípio, o dos prazeres. Para poder se refazer dos problemas que a vida lhe propunha a cada instante, Casanova buscava os prazeres de várias maneiras, neles incluindo a erudição e os jogos de espírito, mas sempre em boa companhia, sobretudo à mesa. 

BRILLAT - SAVARIN
Não é por acaso que o paladar é o mais social dos nossos sentidos. Em várias culturas, é à mesa que se realizam e concluem muitos atos sociais. Brillat-Savarin afirmou que todo ato de sociabilidade pode ser encontrado em torno de uma mesa: amor, amizade, negócios, especulação, poder, importunação, apoio, ambição, intriga. Todas as culturas usam o alimento como sinal de aprovação ou comemoração. Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), político, advogado e gastrônomo, foi um dos mais famosos cozinheiro de todos os tempos. Escreveu uma obra maravilhosa sobre a arte de bem comer, A Fisiologia do Gosto.

O grande segredo de Casanova foi o de saber associar os prazeres da sua vida, sobretudo os da cama, à gastronomia, à sua arte de contar histórias, à sua habilidade de compor menus suculentos. Muitos que escreveram sobre ele não procuraram ir mais fundo nos seus textos gastronômicos e o viram mais como um voraz glutão. Talvez esta visão se deva ao fato de Casanova ter sabido, muitas vezes, melhorar as suas sempre oscilantes rendas, com o jogo de dados. Quando isto acontecia, ele era a imagem da magnificência, do grão senhor, assumindo inclusive o título de Cavaleiro Seingalt (por ele inventado). Nesses momentos, ele não olhava gastos para multiplicar os seus prazeres, sobretudo os da boca, tentando e experimentando tudo. Numa passagem de sua vida, certa vez o Conde Verità lhe perguntou o quanto ele estaria disposto a gastar numa refeição que oferecia a algumas senhoras na cidade de Colônia: o máximo que eu puder, para ser magnífico. Este festim por ele oferecido foi realmente suntuoso, sendo qualificado à época de barroco não só pela sua quantidade, mas, sobretudo, pela sua qualidade.



Abrindo um parêntesis, ao falar de Casanova, não posso deixar de citar aqui o maravilhoso filme de Ettore Scola, Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes), do qual participam, dentre outros grandes atores, dois, sempre excepcionais: Marcello Mastroianni, no papel de Casanova, e Jean-Louis Barrault, no papel do escritor Restit de La Bretonne.



Ainda dentro deste parêntesis, não podemos esquecer de citar, dentre outros, dois grandes filmes, que têm relação que o tema aqui abordado: A Comilança (La Grande Bouffe), de Marco Ferreri, e A Festa de Babette (Le Festin de Babette), de Gabriel Axel. 


Os franceses, no séc. XVIII, procuraram estabelecer uma distinção entre o glutão e aquele que sabia comer bem. A gastronomia francesa começa no final deste século, com a obra pioneira de Brillat-Savarin. Até esse século gourmand e gourmet eram sinônimos, equivaliam-se. Aos poucos, porém, gourmet passou a designar aquele que se interessava pelo que comia, que se informava sobre os alimentos que chegavam à sua mesa, sobre sua preparação, sobre os que sabiam prepará-los e apresentá-los da melhor maneira. O gourmet ritualiza as suas refeições, procura o requinte, entende da sequência dos pratos, conhece as regras do serviço, procurando fazer sempre de sua refeição, principalmente com amigos que participam do mesmo entendimento, uma ocasião especial, sendo conhecedor inclusive das bebidas, dos vinhos. Impensável, por isso, por exemplo, aproximar cervejas e gourmets. Ninguém nasce gourmet, on devient (tornamo-nos), dizem os franceses, uma arte que tem fortes ligações com os estratos superiores da cultura de uma sociedade. Já o gourmand demonstra pouco ou nenhum interesse por tudo o que acabamos de dizer, apenas quer comer, não se importando com a qualidade do que ingere.


CHOCOLATE
Em pesquisas realizadas em muitos países constatou-se que o alimento mais desejado do mundo é o chocolate. Usado pelos indígenas da América Central e do Sul, era chamado de xoacoatl pelos astecas, que o consideravam um presente enviado pelos deuses. Registros históricos nos revelam que na corte de Montezuma eram consumidos diariamente mais de duas mil jarras de chocolate e muitos quilos de sorvete, feito ao se derramar sobre a bebida a neve trazida das montanhas para esse fim por funcionários reais, excelentes corredores, que tinham livre trânsito quando nessa função. 

Cortés introduziu a bebida na Espanha no séc. XVI, de onde se espalhou pela Europa como uma espécie de droga maravilhosa, a ela se acrescentando açúcar, frutas, baunilha e várias outras especiarias. Brillat-Savarin nos informa que as grandes damas espanholas do Novo Mundo eram tão viciadas em chocolate que, não satisfeitas em bebê-lo várias vezes por dia, exigiam que os padres o servissem nas igrejas.

Aos poucos, o chocolate adquiriu a condição de ser o alimento mais ligado ao emocional das pessoas, muito consumido por mulheres no período pré-menstrual ou quando estamos tristes ou nos sentimos com carência afetiva generalizada. Pesquisas médicas orientadas por psicofarmacologistas revelaram que o chocolate é antidepressivo. Tal fato se liga à descoberta de que nas depressões, nas carências afetivas, na insegurança material, nos rompimentos de relações amorosas, o cérebro para de produzir feniletilamina (Fea). O chocolate, como se descobriu, contém Fea em elevadas quantidades. Ao comê-lo experimentamos uma sensação de bem-estar muito semelhante àquela que vivenciamos quando estamos de bem com a vida, apaixonados, por exemplo.

A feniletilamina, conhecida como o “hormônio da paixão”, é um neurotransmissor muito parecido com a anfetamina (substância estimulante do sistema nervoso, usada, por exemplo, como vasoconstritor nasal, no tratamento do mal de Parkinson etc; a benzedrina é um derivado da anfetamina). Experiências médicas vêm procurando demonstrar que o cérebro de uma pessoa apaixonada produz grandes quantidades de Fea e que esta substância é a responsável, em grande parte, pelas sensações e modificações fisiológicas de prazer que o ser humano experimenta quando apaixonado.

A estas experiências com a Fea vêm se juntando, porque semelhantes, as referentes aos feromônios (do grego, phero, transmitir, transportar, e hormona, excitar) substâncias que os animais (inclusive o ser humano) exalam continuamente pelos bilhões de poros da sua pele. Os feromônios produzem sensação de prazer através de certas reações químicas que se manifestam no interior do corpo humano. Funcionam os feromônios como mensagens bioquímicas inconscientes que os animais usam para sinalizar interesses sexuais, situações de perigo, estabelecimento de limites, de trilhas etc.


SISTEMA  OLFATIVO
Ao final, não podemos esquecer que um dos mais ativos colaboradores do paladar, da glutoneria, no caso, é o olfato, mais do que a visão. Um aroma e somos assaltados por muitas lembranças. O olfato é o mais direto dos nossos sentidos. Por isso, grande parte da gourmandise, da glutoneria é alimentada por odores, ou melhor, por um aroma, que é odor naturalmente agradável que emana de substâncias preparadas, de várias origens. O olfato contribui muito para o paladar; ambos, como sabemos, dividem o mesmo espaço, são condôminos de uma boa parte do nosso corpo.