segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MITOLOGIAS DO CÉU - O SOL ( 4 )


Um dos fenômenos religiosos mais interessantes ligado ao Sol, definido desde os tempos pré-históricos, é o da sua valorização como um deus (ou herói) que não conhece a morte. A cada noite ele atravessa o reino das trevas sem sofrer nenhuma transformação, como a que ocorre com a Lua, que aparece, cresce, diminui, desaparece e volta a aparecer. Depois de mergulhar nos oceanos ou se pôr atrás das montanhas, ao entardecer, o Sol sempre reaparece a cada manhã, sempre igual (Sol Invictus e Sol Justitiae). Assim, diferentemente da Lua, o Sol goza do privilégio de atravessar a noite, identificada esta como o mundo infernal, assumindo assim um papel fundamental nas crenças funerárias. Ele se apresenta assim como um “iniciado”, um mystes, que conheceu a morte, que passou pela metamorfose e que conheceu a ressurreição.

O poente, nesta perspectiva, deixa de ser considerado como uma morte para ser visto como uma descida do astro ao mundo ctônico. Por isso, porque retorna sempre, ele pode exercer também a função de psicopompo e de hierofante iniciático. É o guia que conduz as almas pela porta do ocidente (lugar onde o Sol se põe; de occidens, particípio presente de occidere, cair, deitar-se; a raiz cad dá a ideia de tombar, cair, como temos nas palavras cadência, caduco, cadáver etc.) para que retornem, um dia, pela porta do oriente (de origo, originis, nascimento, origem, surgimento, lugar onde nasce a luz, o Sol; sinônimo de leste; oriri, levantar-se).

É nessa condição de viajante noturno que o Sol recebeu o nome de “Sol Negro” (a nigredo dos alquimistas), representado de diversos modos em várias tradições, sempre em oposição ao Sol do meio-dia, o Sol triunfante (a rubedo dos alquimistas). Nessa viagem noturna, o Sol era para os astecas Tezcatlipoca, o deus do verão que amadurecia as colheitas, mas que trazia também a seca e a esterilidade. À noite, tomava a forma de um monstruoso jaguar, animal que faz parte da galeria dos “devoradores”, encontrados em várias tradições míticas. Entre os astecas, simbolizava a expressão suprema das forças ctônicas, mestre psicopompo, devorador do Sol ao crepúsculo. Ostentava o monstro devorador sobre o seu dorso uma concha marinha, símbolo lunar do (re)nascimento. 

Afastadas as delirantes interpretações que existem sobre o tema do Sol Negro (grupos “esotéricos”, nazismo, judaísmo, lamaísmo tibetano, xamanismo etc.), acredito que as mais ricas possibilidades interpretativas que dele podemos extrair estejam na mitologia e na psicanálise.


MANDALA DE INICIAÇÃO DOS MISTÉRIOS ÓRFICOS

Desde a mais remota antiguidade, o Sol sempre foi considerado como o aspecto visível de um Ser Supremo, tornando-se símbolo do poder criador. Segundo a doutrina órfica, o Sol, colocado no centro do universo, assegura a coesão e a harmonia dos planetas que giram à sua volta por sua força atrativa, provocando os eflúvios de seus raios o movimento das várias partes do cosmos. É por essa razão que em muitas litanias (litê, prece, em grego) ele é considerado como uma corrente que une todas as coisas, o princípio de atração, o redentor que liberta, vivificando os poderes da natureza que sempre fecunda.



VIRACOCHA

O culto solar foi comum a todos os povos que, de pastores e nômades, se tornaram agricultores, criando-se por isso uma ideia de ordem, de centro, e consequentemente de organização (o oikos dos gregos, por exemplo). Foi assim que nasceram as religiões das quais fazem partes nomes ligados ao Sol, direta ou indiretamente, Dyaus, Baal, Osiris, Febo, Mitra, Jeová, Viracocha, Bel, Zeus, Balder etc.

O Sol sempre foi considerado tanto como um deus único como uma divindade trinitária. Na primeira forma, dentre seus símbolos, alinhamos o próprio astro, a auréola, as figuras rodopiantes (heliotrópio), a tonsura, as cruzes solares, o disco (alado, com raios ou com um olho) e suas derivações como as rosáceas, o crisântemo, o lótus etc.

Embora os egípcios adorassem o Sol sob um aspecto único (monoteísmo de Amon-Ra, o “um sem segundo”), existia um culto trinitário, sendo ele visto como Kepasa (matinal), Ra (meio-dia) e Tum (entardecer). Este Sol trino possuía três virtudes, representadas, respectivamente, pela cruz ansada (Vida), pelo cetro de deuses e reis (Força) e pelos quatro pilares do céu, vistos na perspectiva do movimento solar (Duração). 

A mitologia escandinavo-germânica possui duas divindades para representar o Sol, Heimdall (fig. esq.) e Balder (fig. dir.), ambos da família dos Ases (guerreiros, que se opunham aos Vanes, família de agricultores). O primeiro era um deus da luz, significando seu nome “aquele que lança raios claros”. Ao que parece, representava a luz matinal. Era belo, enorme; seus dentes eram de ouro puro. Aparecia sempre armado, empunhando uma espada, e cavalgava um cavalo maravilhoso, de crina flamejante. Era uma espécie de sentinela, postando-se junto da ponte Bifrost (arco-iris), que levava do reino humano ao divino. Sempre alerta, praticamente nunca dormia; tinha visão perfeita, tanto diurna como noturna. Sua audição era absoluta: podia ouvir a erva brotar nos campos e a lã dos carneiros crescer no seu dorso. Possuía uma trompa, cujo som alcançava todo o universo. Heimdall era inimigo jurado de Loki, também um Ase, deus-demônio caído, astucioso, bufão; suas ações eram sempre nefastas. Era Loki quem fazia com que os anões forjassem o anel Draupnir e o martelo Mjolnir de Thor.

Heimdall era considerado o pai da humanidade. Vivia em Himinbjorg (Castelo Celeste). Aparece sempre associado ao carneiro, como Thor o é ao bode. Como sentinela avançada dos deuses e guardião da ponte Bifrost, Heimdall é às vezes considerado como uma divindade de segundo nível. Alguns, como Georges Dumézil, por exemplo, o associam ao romano Janus (fig. esq.). É, como se disse, inimigo mortal de Loki; enfrentar-se-ão numa luta mortal quando do Crepúsculo dos Deuses.



Balder, o outro deus da luz, solar, filho de Odin, o maior dos deuses, e de Frigg (fig. dir.), deusa da fertilidade, era tão belo quanto a própria luz pode ser. Nenhum dos Ases o igualava em sabedoria. Favorito dos deuses, como Apolo, todos os que o viam ou escutavam não podiam deixar de amá-lo. Deus da justiça e da beleza, por sua nobreza, pureza e por seu destino trágico, é uma das figuras solares mais interessantes da mitologia universal. Sábio, hábil ao falar, clemente, sua história é comovente. 

Consta que certo dia, Balder teve uns pressentimentos funestos, sonhou com a sua própria morte, com o fim do mundo, comunicando tudo aos demais ases. Por artimanhas de Loki, Balder, até então invulnerável, foi atacado pelo próprio irmão, Hoder, cego, que contra ele, instigado pelo deus-demônio, lançou um galho de agárico, a única coisa na terra que poderia atingi-lo. A história, como se pode ver, tem alguma semelhança com a de Aquiles. O agárico, lembro, era em várias tradições míticas, um símbolo da imortalidade, de regeneração. Era o começo do fim, o crepúsculo dos deuses (Ragnarok).

O agárico era chamado de “ramo de ouro” porque seus galhos, quando secos, tomavam uma cor amarelada. Os druidas o consideravam um remédio universal (omnia sanitatem), usado como um contraveneno, curava as doenças, tornava fecundos os animais estéreis, afastava as forças negativas. Quando Balder sonhou com a própria morte, Frigg implorou a todos os elementos (o fogo, os metais, as águas, a terra, os animais, as serpentes, os vegetais) que não fizessem nenhum mal a seu filho. 

Frigg havia declarado aos deuses que seu filho era invulnerável. Segura disso, propôs que todos tentassem feri-lo. Conduzido a uma pequena colina no centro do espaço público onde se realizavam as assembleias divinas, todos o alvejaram, nenhum mal lhe fazendo. Loki, que tudo presenciava, dirigiu-se então a Frigg e lhe perguntou se ela havia realmente falado com todas coisas do universo e se elas haviam jurado preservar seu filho. Frigg lhe respondeu que a oeste do Valhala, onde Odin vivia em Asgard, havia uma pequena planta, chamada agárico, ainda muito jovem; julgando-a incapaz de fazer qualquer mal a Balder, não exigiu seu juramento. 

Loki (fig.esq) foi ao local indicado por Frigg, trazendo um pequeno galho da planta. Dirigiu-se ao cego Hoder e o convidou a participar do jogo, honrando assim o luminoso irmão. Hoder lhe disse que não poderia fazê-lo, pois era cego. Loki disse que isso não era problema; deu-lhe o galho de agárico que trouxera e disse o guiaria em direção do alvo. O galho, disparado por Hoder, guiado por Loki, atinge então mortalmente o grande deus solar. Esta morte, todos concordaram, foi o que de pior poderia ter acontecido aos deuses e aos humanos.


HEL
Desesperada, Frigg perguntou aos demais deuses quem teria a coragem de procurar Balder no reino dos Infernos e de oferecer à sua rainha, Hel, uma recompensa para trazê-lo de volta. Hermod, irmão de Balder, encarregou-se desta missão. Tendo cavalgado por nove dias e nove noites, lá chegou e ouviu de Hel que se todo o universo desejasse realmente a volta de Balder ela não se oporia. Mas, prosseguiu Hel, se apenas um dentre todos os seres do universo se recusasse a chorar pela volta dele, ela nada poderia fazer, vendo-se na obrigação de mantê-lo a seu lado.


HERMOD

Hermod voltou e disse aos Ases o que ouvira de Hel. Os deuses enviam então emissários a todos os cantos do universo; todos os seres concordam em pedir a volta de Balder. Quando tudo parecia resolvido, os emissários, ao voltar de sua missão, passando por uma caverna, encontram uma giganta chamada Thokk. Esta, apesar das súplicas de todos, recusa-se a derramar uma lágrima sequer por Balder. Descobriu-se depois que Thokk não era outra pessoa senão Loki disfarçado, que havia encontrado um meio de tornar irremediável o infortúnio de Balder.

Balder era jovem e belo. Possuía todas as virtudes: a sabedoria, a sensibilidade, a bondade. Ignorava todos os vícios: a mentira, a traição, a maldade. Mas suas palavras eram belas demais para serem entendidas, seus pensamentos sublimes demais para serem compartilhados, seus julgamentos íntegros demais para serem cumpridos. Bader sempre foi um mistério de pureza. Em nenhuma mitologia encontramos uma divindade como ele.

NANNA

Desposou Nanna, uma jovem que era a imagem radiante da primavera. Ela morrerá de dor e será incinerada na mesma pira que receberá o corpo de Balder. Nanna é um nome que alguns aproximam de Inanna, divindade suméria, ou de Nana, mãe dos deus frígio Attis. Entre os escandinavos, o nome Nanna parece ter relação com a palavra mãe.

Balder residia num palácio chamado Breidhablik (Grande Esplendor), em Asgard, residência dos Ases. Ele e Nanna tiveram um filho, Forseti (o que preside), que vivia em Glitnir (A Brilhante), toda coberta de prata, sendo as paredes e os pilares que a sustentavam todos de ouro. Forseti atua, fazendo jus ao seu nome, na Thing, assembleia legislativa e executiva dos deuses, uma reprodução da mesma instituição encontrada entre os povos germânicos, cuja existência já era atestada na antiguidade romana. 

Balder (fig.esq.) era totalmente inativo. Sua vocação era a santidade, um ideal inatingível por qualquer outra divindade. Ele era o oposto dos outros deuses, que viviam em disputas, sempre procurando gozar, combater, se aproveitar.

É a morte de Balder, do Sol, que marca o começo do crepúsculo dos deuses na mitologia germânica. Diante de seu cadáver, os Ases fizeram um juramento de vingá-lo. Entretanto, o poder das trevas aumentava. Preso, Loki se libertou e se uniu a essas forças, a dos eternos inimigos dos Ases. Numa longínqua floresta do leste, nasceu de uma velha giganta, que se unira ao monstruoso lobo Fenrir, uma enorme ninhada de lobos, que vai engrossar as hostes do Mal. Por elas atacado, o Sol pouco a pouco perdeu a sua força, seus raios foram se apagando, desaparecendo por fim. 

Um longo inverno envolveu o mundo por vários anos. A neve aumentou, cobrindo tudo, aos poucos. Em todos os lugares do mundo, os homens começaram a lutar entre si, tentando sobreviver. O cosmos foi caminhando para a catástrofe final. Era o Ragnarok (etimologicamente, destino fatal dos deuses): o combate final no qual os grandes deuses serão mortos pelos gigantes e pelos monstros. Odin, o maior dos deuses, é engolido pelo lobo Fenrir (fig.dir); Freyr, o grande deus da prosperidade, é morto pelo gigante Surt; Thor é envenenado depois de sua luta contra serpente Midgard.


                RAGNAROK

A Terra perdeu a sua forma, as estrelas se destacaram do céu. Surt, o gigante do fogo, transformou a Terra num braseiro, em meio ao silvo dos vapores, dos geisers; a vegetação desapareceu e com ela a vida; os oceanos se misturaram, perderam os seus limites, as montanhas desabaram, tudo era indeterminação, caos. Foi o fim dos homens, dos deuses e dos monstros. No entanto, depois de longo tempo, tudo recomeçou. Um mundo novo despontou, as montanhas se elevaram de novo, a vegetação brotou, a águia voltou a voar nos céus, os peixes, a nadar nos oceanos e rios. Um Sol novo reapareceu nos céus, irradiando a sua luz. Surgiu uma nova geração de deuses, sem nenhuma relação com a anterior, com a missão de criar um mundo novo, isento de vícios, um mundo solidário, sem lugar para os crimes e as misérias do mundo que fora destruído. Estes novos deuses, que já existiam antes dos que haviam perecido no Ragnarok, nunca haviam se mostrado. Dos que haviam perecido apenas renascerão, neste primeiro momento cosmogônico, Balder, o mais belo, o mais amado, e seu irmão Hoder, para ocupar o lugar dos que se haviam ido. Um novo panteão se formou. Aos poucos, os homens voltaram também a ocupar a Terra. Descobriu-se que nem todos haviam morrido; alguns haviam conseguido sobreviver, escondidos dentro do que sobrara do grande freixo Yggdrasil, a árvore sagrada. É destas sobras que nasceram os novos homens, cuja descendência povoa hoje a Terra.