domingo, 18 de abril de 2021

RABELAIS

RABELAIS

François Rabelais nasceu na França, perto de Chinon,  em 1.494. Em 1.521, o encontramos como monge franciscano e, depois, beneditino, frequentando um meio humanista e tolerante. Em Paris e Montpellier, cursou medicina, indo clinicar, uma vez formado, em hospitais de Lyon. Em 1.532, publicou seu Pantagruel sob o pseudônimo de Maistre Alcofibras Nasier, um anagrama de seu nome. Em 1.534, uma nova obra, Gargantua (pai de Pantagruel), na qual define melhor suas ideias sobre a educação medieval (Escolástica), o humanismo, as guerras e a vida em sociedade de um modo geral. Depois de uma viagem à Itália e da condenação pela Sorbonne do seu Terceiro Livro (1.546), obteve, graças aos favores de Henri, II um cargo eclesiástico. Publicou em 1.552 o seu Quarto Livro. Em 1.564, apareceu seu Quinto Livro, cuja autenticidade é muito discutida.

O pai de Rabelais possuía perto de Chinon uma apoteca, um misto de farmácia (botica) e, ao que parece, também depósito de gêneros alimentícios e vinhos, além de um albergue. Encaminhou-se desde cedo para os estudos, chegando logo às escolas superiores, as universidades, sendo a de Angers a primeira que frequentou.  



As informações que podemos colher sobre Rabelais de seus contemporâneos, além daquelas sobre o seu caráter e comportamento, permitiram situá-lo num mesmo nível de grandes mestres que o antecederam. Num depoimento, por exemplo, de Pierre Boulenger, estudioso, ao tempo, dos aforismos de Hipócrates, está a previsão de que Rabelais seria um enigma para a sua posteridade. Louvado pelo dom da palavra que possuía como poucos, Rabelais foi celebrado como sapiente professor, como eloquente pregador, como charmoso conversador, sendo comparado, por isso, com Erasmo, Marsílio Ficino, Aristóteles, Bocage e outros, além de precursor da filosofia e da ciência modernas, como posteriormente se reconheceu. Apesar de suas qualidades intelectuais superiores, da proteção que recebeu, foi Rabelais também, como se sabe, muito agredido pela ignorância de seus “ignaros e grosseiros” colegas de estudo.     

ESCOLÁSTICA
A Escolástica,  lembremos, resume o pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação entre um ideal de racionalidade, corporificado especialmente na tradição grega do platonismo e do aristotelismo, e a experiência de contacto direto com a verdade revelada, tal como a concebe a fé cristã. Por extensão, a Escolástica designa qualquer filosofia elaborada em função de uma doutrina religiosa. Ao tempo de Rabelais, a Escolástica acabou por tomar o sentido de um pensamento acrítico, ortodoxo e tradicionalista.

Nos principais traços que encontramos na obra de Rabelais estão bem evidentes as influências herméticas como as encontraríamos mais tarde definidas no Caibalion, texto que as sintetizará. Através das formas infinitamente variadas do gênio rabelaisiano podemos destacar duas tendências fundamentais que parecem resumir suas aspirações essenciais: o humanismo e o seu amor pela natureza.

O Humanisno, por seu lado, como sabemos, é um movimento que se caracteriza por um esforço que tem por objetivo a revelação da dignidade do espírito humano e a sua revalorização na medida em que a cultura medieval é questionada e superada para nela serem incorporadas inclusive influências da antiguidade greco-romana, principalmente. O Humanismo é, no fundo, uma doutrina que, segundo o ponto de vista moral, deve se restringir exclusivamente a tudo o que é de ordem humana. Uma concepção geral da vida (política, econômica e ética), pois, baseada no entendimento de que a salvação do homem depende dele mesmo, das forças humanas, o que muito o aproxima do Budismo original, do Chan e do Zen. 


V. FERREIRA
No século XX, salientemos, o Humanismo foi defendido pelos existencialistas (Sartre escreveu um magistral ensaio intitulado
O Existencialismo é um Humanismo. A melhor edição deste texto, superior mesmo à do original francês, é a portuguesa, da editora Presença, na tradução assinada por Vergílio Ferreira, também autor de um imprescindível ensaio introdutório, que não só ilumina a obra sartreana como a completa) e rejeitado por Heiddeger e pelos estruturalistas. 

Trabalhador infatigável, de uma curiosidade universal, Rabelais acumulou ao longo de sua vida uma soma prodigiosa de conhecimentos que ele sempre viu como interligados. Foi ele aos textos da antiguidade para descobrir a verdade moral (Platão), a verdade jurídica (Direito romano), a verdade religiosa (Evangelhos), a verdade científica (Medicina, Astronomia, Matemática, Naturalismo etc.). Conheceu a fundo os latinos e os gregos, citando-os, traduzindo-os, comentando-os. 

Tendo conhecido a regra monástica, Rabelais reagiu contra o ascetismo cristão medieval, que procurava submeter corpos e espíritos. Do Naturalismo antigo, tomou o ideal do desabrochar físico e moral do ser humano. Médico, reabilitou o corpo, injustamente desprezado na Idade Média. A vida física, a alimentação, as funções naturais do corpo ocupam um lugar importante na sua obra. Admira o mecanismo do corpo humano como admira, realçando-o, o mecanismo do universo, ambos testemunhando a unidade do Todo. Seu culto da natureza se estende à vida moral. Sua obra é uma luta a favor da Natureza (Physis) que pode gerar a Beleza e a Harmonia, contra tudo o que a deforma e mutila (Antiphysis). Uma obra que, enfim, coloca o amor à vida acima de tudo, principalmente através das suas formas sensíveis. 

  PANTAGRUEL (G. DORÉ)
O ideal de Rabelais, encarnado pelo seu herói Pantagruel, é feito de ciência e de sabedoria, uma sabedoria que consiste na busca de uma vida saudável segundo os ciclos naturais (terra-céu). O pantagruelismo de Rabelais consiste em viver em paz, com alegria, de modo saudável, folgado, com uma certa alegria de espírito, utilizadas mas consideradas na sua devida precariedade as coisas fortuitas, já que na vida tudo passa. Além do mais, por trás de seu tom jocoso, as suas ideias “sérias” sobre Educação, Política, Justiça, Religião, são ideias expressas sempre através de uma linguagem divertida e pitoresca. Pacifista, sustenta a tese da guerra defensiva. Sua pedagogia se renova sempre, tendo por finalidade a saúde do homem integral (corpo e espírito).


CONSELHO DE CAPITÃES DE PIEROCHOLE

Muitos de seus personagens são símbolos que encarnam virtudes e defeitos. O espírito do Renascimento, por exemplo, está nas figuras de Gangantua e Pantagruel, a perversidade e o ardil estão em Panurge, a ambição em Pierochole etc. Mestre do riso, sua invenção verbal é única na história da literatura mundial. Ficamos confundidos muitas vezes diante da prodigiosa riqueza de seu vocabulário. Seus personagens expressam-se de modo perfeito, quer tenhamos um agricultor, um médico, um marinheiro, um militar, um comerciante, um religioso, um literato. Seu conhecimento sobre os dialetos é perfeito. Inventa palavras, deforma os termos existentes, cria onomatopeias, anagramas, transpõe palavras, recriando enfim a linguagem. Fixa figuras de sintaxe e o seu uso literário de uma vez por todas. Mestre da retórica, criou metáforas e metonímias, alegorias e símiles como nenhum outro escritor antigo ou moderno. Seus personagens têm natureza arquetípica, aparecendo nos dicionários e invadindo depois a Psicologia. O Pantagruelismo, lexicografado, ficou como o conjunto de práticas dos que colocam os prazeres, especialmente os da comida e da bebida, acima de tudo, embora o termo seja muito mais do que isso. O Pantagruelismo de Rabelais, além de ser um grande desejo de conhecimentos, é a afirmação inalienável do ser humano, o problema da sua interioridade, do significado e do fim último de sua existência, uma discussão sobre a liberdade de investigação do mundo do homem e do humano e do seu corpo físico.  

Foi Rabelais às línguas “mortas” e às línguas estrangeiras, aos dialetos. A uma palavra acrescentava, com espantosa criatividade, inúmeras outras, que ampliavam seu universo semântico. Seu estilo é infinitamente leve, ágil, plástico, flexível. Erudito e popular, refinado e grosseiro, ao mesmo tempo, sua fecundidade é extraordinária. Nele, encontramos todos os graus do cômico, as farsas mais pesadas, o jogo de palavras, os calembours, a caricatura grotesca, a comédia de intriga, a paródia, todas as formas dramáticas e todos os tons. Escreve para o público em geral, tanto para o mal letrado como para os estudiosos ou para os eruditos mais cultos.  

ABADIA DE THÉLÈME.
Gargantua é o primeiro livro de Rabelais, inspirado em contos populares. O nome, como se pode constatar, tem relação com o radical garg, garganta. Do francês o nome passou para a língua portuguesa como gargântua, com o significado de aquele que come em excesso, glutão, comilão, homem dotado de grande apetite. O livro relata a vida do personagem, um gigante, tendo vários episódios satíricos, cheios de bouffonerie. Gargantua é filho de Grandgousier e pai de Pantagruel. O livro encerra ensinamentos preciosos (la substance moelle) sobre os ideias humanistas do autor. A Escolástica medieval é atacada, propondo Rabelais uma pedagogia moderna a ser completada, sob o ponto de vista moral, por cuidados corporais e pelo cultivo de uma vida espiritual. A ação do livro tem como cenário a abadia de Thélème, onde viveria uma comunidade mista e aristocrática, idealizada por ele, inspirada pelo lema Fay ce que vouldras. Seus membros, espiritualizados e conscientes, observavam a máxima de que Science sans conscience n´est que ruine de l´âme. 

Pantagruel ocupa na obra de Rabelais o segundo lugar embora tenha sido publicado antes. O gigante Pantagruel, filho de Gargantua, que visita as universidades da província e de Paris recebe de seu pai uma Lettre sur l`éducation na qual se exprime, com lirismo, o entusiasmo dos humanistas pela cultura e pela sabedoria antigas, o sonho de um conhecimento universal. Depois, de ter denunciado a jurisprudência medieval, Pantagruel encontra Panurge (Panurgo), que o acompanhara numa guerra. 

Pantagruel veio ao mundo num dia de grande seca. O pai, por essa razão, lhe deu o nome, assim decomposto: panta, em grego, quer dizer todo, tudo; gruel, num dialeto árabe, quer dizer alterado. Ou seja, à hora o nascimento de Pantagruel o mundo estava alterado, conturbado, revolucionado. Panurge (pan, todo, ergon, trabalho) é um personagem cujo nome significa em grego astucioso, industrioso, enganador, capaz de fazer tudo, apto para tudo. Sua engenhosidade sem escrúpulos e seu gosto pela mistificação fazem dele um tipo truculento. As etapas burlescas de sua viagem em busca da felicidade, como está nos seus três últimos livros, dão a Rabelais a oportunidade de criticar a Justiça e atacar a Igreja Romana e a Reforma. Ridicularizando a tolice humana, Panurge consulta um oráculo (Dive Bouteille) que o incita a se embriagar, simbolicamente, de ciência, de sabedoria. De Panurge, em francês, sai panurgismo, palavra que designa o ato ou o impulso de seguir cegamente um chefe ou um primeiro, que se coloque à frente. A referência aqui é feita a uma passagem do livro (os carneiros de Panurgo) que se jogaram ao mar atrás do primeiro, lançado à água pelo personagem.

NATURE  MORTE  MÉTAPHYSIQUE (GIORGIO MORANDI, 1890-1964)

Sobre o mérito e o papel que Rabelais representou na literatura francesa as referências são unânimes: foi, sem dúvida, um dos maiores de seus criadores. Sua base, de estudos greco-latinos, seus conhecimentos científicos e várias línguas, conforme sempre demonstrou, atestam sobejamente a sua genialidade, sua imensa erudição. Profundo conhecedor das literaturas estrangeiras, com uma imaginação superlativa, valorizando a linguagem popular, animada e pitoresca, Rabelais é uma luz perene da literatura francesa que ilumina a cultura universal.