Em geral, os escritores do nouveau roman procuraram "desprezar" o leitor, "desprezo" que, em última instância, era uma homenagem a ele prestada. Isto porque eles o pressupunham apto a compreender que essa coisa de exigir do romancista (como do poeta, do pintor, do músico, do cineasta) a "significação" precisa e minuciosa de sua obra é, ao contrário do que pensam os adeptos de todos os "realismos", um fenômeno essencialmente burguês: pago por este livro, pago por este quadro, pago por este filme, e exijo que eles me tragam um resultado compensador, de ordem contábil-financeira e, sobretudo, que, afinal, não me encham de dúvidas e de problemas.
Finalmente, o aspecto moral quanto ao que aqui se expõe, uma vez que se mencionou o homem e seus valores: o nouveau roman é revolucionário pois procura desembaraçar os romances de tabus, de regras, de proibições, numa subversão axiológica para colocar o gênero diante de novas responsabilidades e possibilidades. É ficção que nos faz renunciar a qualquer espécie de visão distante ou tentativa de recuo. Ele não pretende, por isso, ser outra coisa senão o romance do nosso tempo; nem melhor, nem pior, dos que existiram e existirão. E nesse estranho lugar de encontro do vazio e da plenitude que é a literatura abriu-se uma porta, a do nouveau roman, para nos indicar, ainda que obscuramente, os novos caminhos.
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TROPISMES |
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LES TEMPS MODERNES |
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VIRGINIA WOOLF |
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LA NAUSÉE |
Difícil por esse motivo se tornaria qualquer investigação sobre o novo romance sem uma referência ao experimento sartreano, principalmente em La Nausée, que nos permitiu entrar no conhecimento da espessura qualitativa do mundo e de urna provável relação de valores e vivências, com o seu respectivo ordenamento. Entretanto, se em La Nausée a procura do relacionamento é colocada no plano da contingência, já que Sartre pretendeu fazer tábula rasa da experiência de Roquentin, no nouveau roman as relações da consciência com o mundo hão de ser vistas no terreno das infinitas probabilidades, sem narradores internos nem testemunhas que tudo sabem, retirando-se do texto qualquer sentido utilitarista, o campo do romanesco tradicional se reduz e passa apenas a existir a "objectité", a modalidade, segundo Sartre, pela qual as coisas e nós aparecemos, criando-se, ao mesmo tempo e deliberadamente, uma distância que o homem (leitor) é obrigado a percorrer. Inicialmente solidão, esta distância abre, contudo um vastíssimo horizonte de possibilidades, forçando aquele que a percorre a uma indagação sistemática dos comportamentos, pois são eliminadas também quaisquer referências ou alusões condicionantes ou alienatórias.
Eis porque o quadro do nouveau roman é rigoroso, implacável, não admitindo retrocessos ou concessões. O problema tem que ser resolvido por e através do próprio romance, na medida em o leitor é afastado dos modelos rígidos e imutáveis para que lhe seja entregue um "objeto" perturbador e inquietante, como nos diz Robbe-Grillet: à nossa volta, desafiando a mente dos nossos adjetivos animistas ou caseiros, as coisas estão lá. A sua superfície é nítida e lisa, intacta, mas sem fulgor fusco nem transparência.
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JEAN REVERZY |
Ao se proceder, em Le Corridor, o inventário dos movimentos e dos objetos, na focalização do que os sentidos propõem, processa-se a desmistificação de ambos, deles retirando-se a "interioridade", tão ao gosto de Proust. E isto porque os objetos não são para o nouveau roman "históricos" em si mesmos, mas são, sim, no mundo humano onde ocupam um espaço. Esta a razão pela qual o nouveau roman desfaz qualquer envoltório idealista em que se pretenda encerrar os objetos e seres do mundo, numa luta contra a acumulação, impedindo que o homem se "agarre" às coisas com o intuito de transubstanciá-las em pura interioridade deixando de reconhecer o verdadeiro e real significado que têm objetos e movimentos, dentro de todo um complexo social.
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Nesse sentido, o nouveau roman é uma luta contra a tradição que não sabe ligar-se às forças naturais senão através de intermediários; que não sabe ver a realidade senão através de produtos manufaturados; que não sabe descobrir no mundo senão o reflexo da sua própria imagem; que não sabe reconhecer na superfície das coisas senão o significado que sobre elas outros homens já deixaram. Em suma, é luta contra a tradição cujo objetivo consiste essencialmente em manejar símbolos abstratos, palavras, algarismos, esquemas e diagramas para reduzir tudo a ideias, esforços, dores, necessidades, opressão, guerras.
As causas desta atitude nós vamos encontrá-las na história que se escreve depois de terminada a primeira guerra mundial. Com efeito, o que parecia ter sido A Catástrofe, O Desastre, uma guerra que a todos envolvera, fora esquecida rapidamente e tudo corria então no melhor dos mundos. Estávamos nos boom years: a ciência, muito mais que a industrialização, garantiria a tranquilidade e a paz; nada perturbaria o horizonte calmo da nova era que se inaugurava sob a égide da vitória e do progresso, nem o fascismo, uma ameaça remota, nem o nazismo, um epifenômeno. Entretanto, veio a segunda guerra mundial e, com ela, em seu bojo, a ameaça permanente de uma terceira. E chegou-se à conclusão de que o paraíso prometido por Comte e seus discípulos nada mais era do que um deserto de ideias, de cinzas e de escombros. Eis no que deram a ciência e a tecnologia, seu subproduto: consumismo, bombas, anestésicos, celulares, ansiolíticos, pestes e uma angústia infinita.
Literariamente, tudo isto tem um significado. Da literatura da lost generation passamos a uma literatura de crise; descobre-se nos subterrâneos um profeta, Kafka, que foi trazido à luz pelos oficiantes do novo culto, Gide, Sartre, Camus, Jean-Louis Barrault e outros. Segue-se ao ciclo do romance psicológico, que se abrira com La Princesse de Clèves, 1678, de Madame de La Fayette e que fora levado às últimas consequências, quase à metafísica, por Dostoievski, Proust e Joyce, o ciclo do absurdo, da asfixia. Cria-se um novo personagem, o homo absurdus, sem nome, sem pátria, o pária da modernidade do nosso novo milênio.
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THE LOST GENERATION |
As relações psicológicas pouco ou nada dizem num mundo em que se joga a descoberto, mais do que nunca, com armas e poderio econômico. O homem da segunda metade do século XX permaneceu indiferente e estranho a essa face não revelada; a introspecção clássica não conduzia a lugar nenhum, pois o homem não era mais que uma relação cujos suportes estavam na sua própria vida, na sua situação, como disse Sartre, e não dentro dele.
Havia, pois, para o nouveau roman ter que se partir do ponto onde o romance de "situação" chegara e dali forçar novas posições para retirar o homem de planos puramente psicológicos ou patológicos, nos quais, com o intuito de se preservar uma cultura agonizante, como se disse, e onde a tradição quis colocá-lo. É evidente que são fatores extra-pessoais de natureza social que constituem a base do nouveau roman como expressão de uma crise e de uma tentativa de superação.
Num ensaio, De Dostoievski a Kafka, Nathalie Sarraute esclarece bem este ponto: Podíamos reagrupar nossas forças e, esquecendo os dissabores passados, partir sobre novas bases. Caminhos mais acessíveis e mais promissores pareciam abrir-se por todas as partes. O cinema, arte cheia de promessas, emprestaria suas mais novas técnicas ao romance, que tantos esforços infrutíferos haviam feito reencontrar uma juvenil e tocante modéstia. A sadia simplicidade do jovem romance americano e seu vigor um tanto rude deram, por meio de um contágio benéfico, um pouco de vitalidade e de seiva ao nosso romance, debilitado pelo abuso da análise e ameaçado de esclerosamento senil. O objeto literário poderia reencontrar os plenos contornos, o aspecto acabado, liso e duro, das belas obras clássicas. O elemento 'poético' e puramente descritivo, que o romancista não via senão como um inútil ornamento, que só deixava passar com parcimônia, após minuciosa filtragem, perderia seu papel humilhante de auxiliar, exclusivamente submetido às exigências do psicológico, e desabrocharia um pouco por todas as partes, sem constrangimento.
Esta citação nos remete naturalmente a Proust, onde encontramos, como construção mais perfeita, a tentativa de recriação do passado em forma linear, valorizada pela razão. A experiência proustiana é, contudo um antagonismo aos processos utilizados pela memória e os escritores do nouveau roman o sabem perfeitamente. Sendo a memória afinal a fonte de todo o romanesco, ela deve ser enquadrada no campo do finito, isto é, do que existe, pois só o que existe já aconteceu. Daí porque a lembrança de um fato não é realizada propriamente pelo acontecimento em si, mas por circunstâncias e pormenores, por relações mais ou menos precisas que o cercam. A recuperação do passado há que se dar, portanto, através de uma mistura de planos, ausentes quaisquer critérios cronológicos ou valorativos.
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O VENTO |
Esta intercalação de planos, de imagens, com passagens e inversões, contraria frontalmente a técnica do romance tradicional, em que o autor aparece demiurgicamente, ordenando a seu critério os acontecimentos como um pequeno deus-todo-poderoso. O escritor deve, por outro lado, funcionar como uma câmara fotográfica, servindo-se, em maior ou menor grau, do seu senso plástico (formas e cores) para transmitir o que pretende. Há, por isso, no nouveau roman uma verdadeira obsessão visual, justificável sob todos os aspectos, se levarmos em conta que o homem moderno vive sob um impressionante impacto de imagens, que os mais variados meios de comunicação lhe põem ao seu alcance ou mesmo que o atingem subliminarmente.
O estilo tornar-se-á então preciso e claro, uma orgia vocabular talvez (o que não deixa de ser uma indagação sobre a linguagem), ainda que desponte o ceticismo, pois a linguagem trai, "esta linguagem que, com a inflexível perfídia das coisas criadas ou submetidas pelo homem, se voltam contra ele e se vingam com muito mais traição e eficácia do que a aparência que têm, de preencher docilmente a sua função".