sábado, 27 de março de 2021

MONSTROS - IV

O que fica de mais consequente da história do Golem é que ele, como proposta última, é uma criatura do mundo religioso, representando a pretensão que o homem tem de imitar a Deus. Sua criação, segundo essa mesma visão religiosa, não passa de algo incompleto; o ser criado é destituído de liberdade, inclina-se para o mal, tornando-se escravo de suas paixões. Numa outra intepretação, mais adequada talvez, o Golem seria a imagem da criação tecnológica que se rebela contra o seu próprio criador e que pode esmagá-lo. 

HEFESTO
Essas ideias sempre circularam ao longo da história do homem em todo o mundo medieval, sendo oriundas, para a cultura ocidental, principalmente da Grécia antiga. O deus Hefesto, grande divindade metalúrgica, mestre do fogo e das artes da transformação, sintetiza certamente no seu mito todas estas pretensões humanas. É por essa razão visto como o deus da tecnologia, capaz de criar maravilhas sob o ponto de vista técnico, mas é totalmente amoral, aético na sua ação. Basta-lhe, apenas, a perfeição técnica do que cria, não entrando ele jamais em outras cogitações e questionamentos sobre o que produz. É, como tal, como se disse, símbolo do demiurgo amoral e, como tal, uma das grandes imagens da tecnologia moderna.  

Os rabinos, segundo a tradição cabalística medieval, entenderam que Deus não fabricara Adão de uma só vez. O caminho parece ter sido longo, combinações repetidas e corrigidas várias vezes. As disposições alfabéticas indicavam que era preciso, partindo do tetragrama IHVH, combinar as letras 231 vezes para dar vida à criatura. Tal foi feito, transformando-se aquele monte de terra acumulado, ao embalo monótono das recitações, num ser encorpado, terroso. A obra se completou quando, como se disse, lhe foi inscrita na testa a palavra Emet (Verdade). Também como já se viu, deram-lhe a missão de proteger os habitantes de Josefov dos ataques antissemitas.

Mas o monstro ficava cada dia maior, a ponto de sua cabeça romper o telhado da casa. A população da cidade começou a acorrer ao bairro para ver o prodígio. Vagando à noite, o Golem começou a matar indiscriminadamente as pessoas. A violência tomou conta da cidade. Os habitantes do bairro, antes protegidos, começaram a se sentir ameaçados pelo monstro, pedindo a sua morte. Não restou outra alternativa ao rabino senão a de destruí-lo. Uma noite, numa sala da casa, só o criador e a criatura, o rabino acercou-se dela e conseguiu apagar a primeira letra do nome que ela trazia gravado na testa. Imediatamente, o Golem se desmanchou, se desfez. Uma massa informe ocupou toda a sala, sufocando o rabino. Como um teraphim, nome que lhe deram os hebreus, o Golem, nesse sentido, não só se aproximou do simbolismo do urso (ser humano incompleto), como daquele que cercava os Penates e os Lares romanos (deuses protetores da casa e da família). 

LÂMIA
(JOHN WATERHOUSE, 1849-1917
Pela aproximação acima e lançando agora o nosso olhar ao antigo mundo grego, um dos monstros que mais chama a nossa atenção é a Lâmia, cujo nome provém de um radical grego lem, que tem o sentido de devorar, sugar. A mitologia, na versão mais canônica, nos informa que ela é filha de Poseidon e de Líbia, aparecendo nas histórias como um monstro raptor e devorador de jovens ou crianças. Poseidon é o deus do elemento líquido, dos oceanos, dos mares, dos rios e dos lagos. Um de seus apelidos é Hippios, o gerador de cavalos, ligando-se, como tal, a esses animais como símbolos da vida ctônica, do psiquismo inconsciente. Um de seus filhos é, por exemplo, Pégaso, cavalo alado da mitologia grega, que tem a ver com a inspiração, com a imaginação poética, desde que montado por heróis (artista competente). Aqueles que o montam sem uma preparação adequada, sem uma técnica trabalhada, longamente adquirida, comparada, avaliada, produzem monstruosidades artísticas, sendo por ele apeados, humilhados ou mortos.

POSEIDON -  HIPPIOS  ( CERÂMICA )

Os filhos de Poseidon são todos disformes, violentos, descontrolados, entregando-se à hybris com relativa facilidade. Tal propensão, como é fácil ver, decorre de sua origem, o elemento líquido, a água, que, no seu aspecto negativo, indica ausência de limites, falta de contenção, sempre. Negativamente, o elemento líquido, como se sabe, quando prepondera na personalidade de alguém produz uma sensibilidade extremada, favorecendo a permeação. Surgem então os estados de abandono, de inflação emotiva, inconscientes, que levam este alguém a se confundir com esses estados que sempre o ultrapassam. Ou seja, o que a pessoa sente escapa sempre da possibilidade de qualquer controle.

Inicialmente, Lâmia é descrita como uma mulher de grande beleza, tendo sido por essa razão notada pelo Senhor do Olimpo. Sentindo-se incompleta sem filhos, e desejando-os maravilhosos, não relutou em ceder às investidas de Zeus. Teve os filhos, mas as crianças assim que nascidas eram sistematicamente eliminadas a mando de Hera. Não sabendo o que fazer, desesperada, refugiou-se Lâmia numa caverna, passando a odiar toda a humanidade, sobretudo as mulheres que tinham filhos normalmente. 

HIPNOS
Aos poucos, tomada por um ódio crescente, começou a sair da sua caverna à noite para raptar crianças e devorá-las. Hera continuou a persegui-la, tirando-lhe o sono, não deixando que Hipnos, deus do sono, como fazia com todos, tocasse as suas pálpebras com o seu tridente.

Compadecido, para aliviar o seu sofrimento, Zeus concedeu-lhe o privilégio de poder arrancar e recolocar os seus olhos quando bem entendesse. Mas isso não resolveu o seu problema, a sua grande frustração. Desesperada, Lâmia, mesmo arrancando os seus olhos, e conseguindo às vezes dormir, vivia em grande irritação e, ao mesmo tempo, em profunda depressão. Começou então, cada vez mais cheia de ódio, a se embriagar e a sair às noites para se prostituir ou para raptar e matar crianças. Aos poucos, foi Lâmia se tornando uma criatura completamente descontrolada psíquica e fisicamente. Enorme, gorda, relaxada, imunda, sexualmente insaciável, transformou-se num monstro, a rondar as casas onde morassem crianças e jovens.

ILÍTIA
(TERRACOTA DE CHIPRE)

A história de Lâmia sempre foi considerada como uma ilustração da inveja, do ódio, do ciúme da mulher que não pode ter filhos e/ou da mulher que os tem fora da união legal; como tal, é um mito ligado aos valores da deusa Hera: casamento e prole oficiais. Hera, lembremos, era a deusa das justas núpcias, protetora das esposas legítimas e da descendência legal. Uma de suas filhas, aliás, a deusa Ilítia (a que faz vir à luz), é a deusa dos partos. Fiel seguidora da mãe, Ilítia sempre perseguiu implacavelmente as amantes de Zeus.

Muito próxima da Lâmia, encontramos na mitologia grega a Empusa (esvoaçar, voltear) uma espécie de íncubo feminino, ligado a pesadelos (cauchemar, nightmare). Ela faz parte do séquito de Hécate, a grande deusa lunar triforme infernal. Empusa vagueia pelas noite de Lua Nova, aparecendo sobretudo às mulheres e às crianças. Alimenta-se de carne humana. Quando queria atrair homens, tomava a forma de uma belíssima mulher que aparecia nas encruzilhadas.

AQUERONTE  ( GUSTAVE  DORÉ, 1832 - 1883 )

Com versões da Lâmia, os gregos tinham ainda os monstros femininos Mormo, Mormólice e Gelo. A primeira, cujo nome lembra espantalho, era um bicho-papão que ameaçava as crianças; tinha o hábito de mordê-las nas pernas, tornando-as coxas, aleijadas. Já a segunda era um demônio feminino em forma de loba, gênio infernal que assustava as crianças. Era ama de Aqueronte, um filho de Geia, condenado a viver no Hades como um rio porque dera de beber aos Gigantes quando da luta que travaram contra os olímpicos. No Inferno, ele se uniu a Orfne, ninfa das trevas, nascendo dessa união Ascálafo, transformado em coruja por Deméter.  A última acima mencionada, Gelo (devorar, etimologicamente) era um monstro feminino que vivia em Lesbos. Na origem, era a alma penada de uma jovem que morrera sem ter filhos. Voltava constantemente ao mundo dos vivos para devorar as crianças e/ou para se utilizar delas sexualmente.

A palavra lâmia passou com o tempo a designar na antiguidade grega monstros femininos com cauda de serpente que devoravam crianças e sugavam o seu sangue, como os vampiros. Na Idade Média, elas aparecem associadas às feiticeiras, declarando alguns demonólogos que eram demônios ferozes, que às vezes apareciam sob a forma de belas mulheres.

Aos poucos, as características acima mencionadas, embora sempre presentes, latentes, foram dando lugar a outras, passando a Lâmia, nas suas diversas versões folclóricas, populares, a tomar a forma de um monstro que devorava as crianças travessas, malcriadas ou desobedientes. 


BICHO-PAPÃO
Por exemplo: da península ibérica veio para o Brasil, no período colonial, o Bicho-Papão, um descendente da Lâmia, um ser monstruoso, que às vezes podia tomar a forma de bichos, naturalmente sempre com uma boca enorme, muitas vezes com olhos de fogo, tendo no lugar do estômago um forno ardente para fazer jus ao “papão” de seu nome, como devorador de crianças. 


Na literatura oral portuguesa, a Coca é um bicho-papão que rouba as criancinhas. É às vezes chamada de Maria-da-Manta, soltando esta fogo pelos olhos. É uma entidade maligna que está sempre à espreita (estar sempre à coca) para impedir que o sono chegue. Vai-te Coca, vai-te Coca/ Para cima do telhado/ Deixa dormir o menino/ Um soninho descansado.

GIL VICENTE

Gil Vicente, 1465-1536, o genial criador do teatro português, identificava o Diabo como o marido da Coca, chamando-o de Coco, por isso. A Coca era normalmente figurada como um dragão. Nas festas de Corpus Christi, São Jorge vinha lutar contra a Coca. Como variantes do Bicho-Papão temos no nosso folclore o Homem do Saco e a Cuca, representações associadas, sempre tendo a função de assustar ou mesmo devorar as crianças desobedientes, monstros que encheram de terror muitas noites infantis. Educação, respeito e obediência aos pais e aos adultos eram, em antigos tempos, o melhor remédio para evitar a visita desses monstros.

A Cuca é uma versão feminina do Bicho-Papão. Durma, meu benzinho, que a Cuca logo vem era um dos versos das velhas cantigas de ninar. É interessante observar que o medo infundido pela Cuca às crianças também podia vitimar os adultos. Em Portugal e no Brasil colonial circulava, nos meios populares adultos, a frase: Eu cá não tenho medo de Cucas! e tomava-se uma talagada de boa cachaça: matava-se o bicho.

COCA
A origem dessa expressão se prende a motivos medicinais. Isto é, tomar uma bebida alcoólica forte para matar qualquer bicho (agente patológico) que estivesse alojado no corpo. Dizia-se, segundo uma história do séc. XVI vinda da França, que uma mulher morrera e se constatara, aberto o seu peito, que havia um verme grudado ao seu coração. A única maneira de matá-lo foi a de se colocar sobre ele um pedaço de pão embebido em vinho. A partir de então, dizem,  os médicos recomendaram que todo o jejum, pelas manhãs, fosse quebrado, além do pão, também com  vinho. 

Os beberrões logo adotaram a ideia, matando o  bicho a qualquer hora do dia, substituindo-se o vinho pela cachaça. E como bicho poderia ser também o Bicho-Papão, a prática pegou. No mundo da cachaça, são equivalentes a matar o bicho expressões como morder a batata, acender a lamparina, alertar as ideias, mudar de camisa, salgar o galo.

É em antigas cantigas de ninar e acalantos, entoados para para fazer as crianças dormirem, que encontramos as melhores referências a esses monstros. Chamadas berceuses na França e ninnananna na Itália, essas cantigas têm como personagens importantes o Bicho-Papão e a Cuca, além de referências religiosas a anjos (entidades protetoras), a pais ausentes e a entidades míticas do sono como João Pestana.  

JOÃO PESTANA
O João Pestana merece referência especial. É uma entidade mítica que personifica o sono que está para chegar. É muito tímido e assustadiço, só se aproximando quando tudo está quieto e silencioso. Ao menor barulho, ele se afasta, foge. Quando ele chega, as pálpebras (pestanas) se fecham; por isso, nunca ninguém o viu. No folclore português, de onde o herdamos, ele é parente do Pedro Chosco, que põe pequeninos grãos de areia nos olhos das crianças para que elas durmam. Este personagem, no mundo anglo-saxão, chama-se  Sandman.

Todos são temas de cantigas de embalar em muitas línguas. João Pestana costuma trazer muita ansiedade já que ele compete com entidades poderosas como a Cuca e o Bicho-Papão. Monteiro Lobato, em seu livro O Saci, diz que a Cuca tem cara de jacaré e só dorme uma noite a cada sete anos. Quando enraivecida, solta urros que podem ser ouvidos a léguas de distância. 

Dentre todas estas entidades a que talvez se aproxime mais da Lâmia no nosso folclore seja a Cabra-Cabriola, que não é propriamente uma cabra, mas um monstro gigantesco com dentes agudíssimos, que solta fogo pelos olhos e pelas narinas. Ela costuma andar perdida pelas noites, invadindo as casas e devorando indiscriminadamente todas as crianças que encontra.