domingo, 28 de março de 2021

OS MONSTROS - V

 

ESFINGE  DO PALÁCIO DO BELVEDERE  DE  VIENA

A Esfinge faz parte daquela família de monstros formada pelo humano e pelo animal. A palavra esfinge vem do grego, do verbo sphinguein, apertar, constranger, sufocar, um monstro cuja característica principal é a de oprimir, atormentar, abater. Sua forma mais antiga parece vir do Egito, conforme imagens encontradas isoladamente ou em obeliscos e pirâmides. 

Embora o modelo clássico seja formado por uma mulher (cabeça) e por um corpo de animal (leão), sua forma admitia muitas variações no mundo antigo. Podiam ser encontradas Esfinges com cabeças de homem (androsphinx), com cabeças de carneiro (criosphinx) e com cabeças de falcão (hieracosphinx), ou com cabeças de faraós, do deus Amun e do deus Horus.

ESFINGE  COM  CABEÇA  DE  CARNEIRO

As Esfinges, lembremos, eram também encontradas em outras tradições, oriundas principalmente de cultos solares indo-europeus ligados aos pontos cardeais, como a babilônica, a assíria, a persa, a fenícia e a hitita, nelas aparecendo na parte inferior, além do leão, o touro ou a águia. Entre os egípcios, as Esfinges eram as senhoras dos segredos, guardando as necrópoles e os mistérios da existência, servindo de advertência àqueles que, desejando ter acesso a uma vida superior, deveriam renunciar ao conhecimento profano.

Nas Esfinges onde o touro aparecia, seus flancos, para muitos, representavam a matéria corporal, a nutrição abdominal, a inércia, a vida da sensualidade, a linfa. A cabeça humana da esfinge, nessa composição, representava já o espírito imaterial, sede do pensamento, mas preso ao saber terrestre e ao elemento terra. As garras e os membros dos animais representavam o fogo devorador, o vigor ativo e a energia unificadora que punha em ação os instintos e as resoluções voluntárias, com maior ou menor intensidade. 

QUATRO ELEMENTOS
Sob o ponto de vista da teoria dos elementos (fogo, terra, ar e água), o touro é terra, lunar, símbolo da fecundidade e aparece associado às divindades atmosféricas; seu mugido, nesse sentido, lembrava furacões, tempestades, enquanto seus chifres os crescentes lunares. Já a águia é ar, com as suas asas e seu olhar que tudo percebe, é símbolo da divindade sempre vigilante em todas as antigas civilizações. O leão, por sua vez, representa, dentre outras coisas, o poder destruidor do Sol, tão necessário para manter a harmonia do universo, como seu poder gerador.  

Temperamento, como sabemos, é índole, propensão, constituição psicofísica particular, conjunto de características vitais. Cada temperamento se relaciona com um ou mais elementos fundamentais da vida universal (fogo, terra, ar e água) dando-nos uma ideia do caráter (etimologicamente, coisa gravada) daquele que o ou os ostenta. No geral, temos mais de um elemento que costumam atuar em conflito.  Neste sentido, temperamento é dosagem. Nos humanos, por exemplo,  a dominante fogo (masculina) produz o tipo colérico, que se caracteriza pela atividade, pela determinação ou impetuosidade. Suas resoluções são rápidas e tendem a descarregar suas emoções em atos, palavras ou manifestações grandiosas. O tipo fogo mais puro é lacônico e costuma reduzir a sua sociabilidade a um meio para alcançar os seus fins. 

A dominante terra (feminina) produz o tipo melancólico, de temperamento introvertido, analítico, desconfiado, minucioso. A sociabilidade não é o seu forte, fazendo, por isso, amigos com certa ou muita dificuldade. Costuma ceder ao pessimismo, apresentando aversão por pessoas que têm pontos diferentes dos seus. Perfeccionista, precisa de muitos dados e informações para tomar decisões. Psiquicamente é o que podemos chamar de um ruminante.

A dominante ar, considerada masculina, produz o tipo normalmente vivo, ativo mentalmente, agitado. Tem facilidade de expressão, comunica-se com relativa facilidade. Pode ser inconstante e oscilar entre a atividade mental exuberante e a indolência. Estabelece muitos contactos, mas geralmente não os aprofunda. Sua noção de espaço não é muito boa, atrasando-se com frequência. Nas religiões, liga-se à manifestação do chamado sopro divino, sendo, como tal, um símbolo de espiritualização.  

A água, elemento feminino como a terra, é uma força original adaptável e calma geralmente, tendo relação com o norte, com o frio, com a pureza, indicando, nos sonhos, a necessidade de regeneração, de esquecimento do passado. É símbolo do inconsciente. É nesta perspectiva que sonhos com banhos podem significar a necessidade de mudanças ou da companhia de pessoas dinâmicas e realizadoras. O tipo água é muito sensível, sentindo sempre mais do que consegue expressar. Teme o perigo, mas pode produzi-lo pela imaginação. Nos tipos inferiores, faltando o entusiasmo, a lentidão e a dispersão predominam.  

Cada temperamento, como se viu, corresponde a um dos quatro elementos e tem relação com características físicas, morais e psíquicas. Os estudiosos da ciência do temperamento na antiguidade nos diziam que é mais importante conhecer o temperamento de alguém do que simplesmente julgá-lo. 

A sabedoria antiga retirava do enigma da esfinge as quatro regras fundamentais da conduta humana: 1) saber com a inteligência do cérebro humano; 2) querer com o vigor do leão; 3) ousar ou se elevar com o poder audacioso das asas da águia; 4) se calar com a força massiva e concentrada do touro. 

ESFINGE  DE  GIZÉ

A grande Esfinge de Gizé, no Egito, é sem dúvida o mais antigo e conhecido desses monumentos compostos, inclusive pelo tamanho. Tem cerca de 74 m. de comprimento; sua face tem 4 m. de altura. Até bem pouco tempo, sempre se acreditou que esse monumento havia sido construído entre os anos de 2.528 - 2.520 aC., durante o reinado do faraó Radjedef, sucessor do faraó Khufu, construtor da grande pirâmide. Está hoje provado, porém, que a esfinge egípcia é um monumento astrológico, como outros de natureza megalítica, encontrados em várias partes do mundo. Ela foi construída entre os anos 10.000 - 8.000 aC, para marcar a  passagem da era astrológica de Virgem para Leão. 


ESFINGES   FUNERÁRIAS

No mundo grego, as Esfinges, por influência egípcia e oriental (Síria e Fenícia),  começaram a ser usadas como monumentos funerários. Sob a forma de uma mulher alada, seios túmidos, sorriso misterioso, projetada para frente, presa a uma coluna, guardavam passagens e desfiladeiros. Propunham elas enigmas (enigma, em grego, é fala obscura, equívoca) aos que passavam, devorando todos aqueles que não os resolvessem. 

Segundo este entendimento, formulariam as Esfinges gregas, de modo ambíguo, o enigma da vida, que só poderia ser vencido pela inteligência. Mas a grande perversão da vitória pela inteligência estava no fato de que ela não bastava, de que ela era sempre precária e efêmera, uma vitória onde a elevação não entrava, pois ela é em si mesma ausência de transcendência. Por isso, vencer a esfinge, símbolo da vaidade destrutiva, era mergulhar no abismo.  


ESFINGE ( FERNAND  KHNOFF, 1858 - 1921 ).

As Esfinges, na Grécia, tornaram-se monstros sedutores e, como tal, foram erotizadas. Perderam as características de guardiãs de necrópoles para adquirir uma outra função, pela qual se tornaram muito conhecidas. Prometiam ao vencedor sexo e elevação, uma contradição, uma elevação falsa, porém, que não podiam dar porque fixadas à terra. Suas propostas, como cruéis cantoras (no que se igualavam às sereias) eram de uma  plenitude maligna, infernal.

ÉDIPO  E  A  ESFINGE
As Esfinges gregas, como sua longa crônica nos informa, numa leitura superficial, desavisada, falam, num primeiro momento, de vitórias exteriores. Por isso, atraíam tanto a juventude, ávida de glórias mundanas, momentâneas, que julgava poder vencê-la com a sua destreza física. Numa leitura mais consequente do mito,  porém, Fix, a Esfinge, diz que não podemos nos contentar com as vitórias exteriores, baseadas apenas na na cólera guerreira ou na inteligência, com as quais Édipo, por exemplo, se contentou. As grandes vitórias deverão se concentrar sempre na vida interior, pois implicam geralmente em transformações ou em redimensionamentos da  personalidade. A vitória sobre a Esfinge, neste sentido, não pode ser quantificada. O que a Esfinge sugere, nessa leitura, é que devemos ser verdadeiros com o nosso eu interior, mutante, por que só ele é real. 

O que a esfinge nos propõe no fundo, também, é uma luta permanente que devemos travar contra a queda, contra a banalização, contra a acomodação, baseada em vitórias físicas e mentais desprovidas de elevação. A vitória sobre a Esfinge deve ser uma vitória sobre o permanente em nós, ou seja, uma vitória sobre a morte, sobre os acréscimos que trazemos para dentro do nosso ser ou que sobre (dentro dele) ele depositamos.

A vitória sobre a esfinge é a descoberta de que permanecer é morrer. Só uma coisa morta pode ser permanente. Os oceanos estão aí nos dizendo que vida é fluxo e refluxo. Sem fluxo e refluxo não há vida. Tudo vive através da mudança, isto é, ir de uma polaridade a outra, é alternância constante, pois só assim poderemos nos tornar mais vivos e renovados.

MUSEU  DO  TEMPLO  DE
APOLO , DELFOS
A vitória sobre a Esfinge não pode ser obtida pela ciência, pela mente, já que a ciência é o conhecimento de tudo o que é externo; ela afasta a ideia de autoconhecimento. As bibliotecas e hoje a Internet, por exemplo, estão repletas de informações; podemos recolher nelas todas as informações do mundo, mas continuaremos ignorantes porque o conhecimento real consiste em se alcançar níveis mais altos de ser e ser mais não é ser mais informado, ter mais informações. Todo crescimento interior significa que estamos dando à luz a nós mesmos. Este processo deve ser contínuo e nunca deverá chegar a um fim, é interminável. Além do mais, é doloroso, trabalhoso, porque não há nem nunca houve crescimento sem sofrimento.