sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A RELIGIOSIDADE POPULAR


Já há muito que o tema da chamada religião popular vem merecendo a atenção de estudiosos, historiadores, sociólogos, psicólogos, antropólogos, de entidades governamentais ou não, de institutos, de organismos internacionais, de profissionais dos meios de comunicação, de sacerdotes das chamadas religiões oficiais, de políticos, da polícia, todos muito preocupados com os rumos que esse fenômeno religioso tomou. Ao mesmo tempo, pesquisas, exposições, seminários e congressos se realizam constantemente no sentido de discutir, mostrar e expor os seus variados aspectos e seus objetos cultuais, que passaram a ter inclusive valor artístico e de mercado, como os da chamada arte sacra das religiões oficiais.




O que a princípio chama a atenção quando nos voltamos para a religiosidade popular é que ela apresenta sempre uma relação muito estreita entre as suas variadas e complexas manifestações e um ambiente sócio-cultural bem definido, preciso, o que não acontece com as oficiais. Outra característica importante é que ela se afasta, mais ou menos, mas sempre, dos postulados dos grandes sistemas religiosos, tidos tradicionalmente como oficiais, considerando-se inclusive deles independente, embora se valendo muitas vezes de seus elementos (textos, liturgia, hierarquia, nomenclatura, símbolos etc.).



MISSA DO VAQUEIRO - SERRITA, PE

Quanto à conceituação de popular, acredito que podemos partir do que é mais evidente. Popular é o que pertence a um povo, a pessoas que possuem em comum uma língua, uma tradição, uma cultura. A palavra popular pode, entretanto, admitir outros sentidos, e é nesta direção que devemos ir quando nos aproximamos do tema.

Popular é também aquilo que é relativo e pertencente ao povo, especialmente à gente comum, às pessoas mais simples, com pouca ou nenhuma instrução. Algo que prevalece junto às massas, por oposição ao que é valorizado pelas camadas mais privilegiadas da população. Poderemos assim entender o popular da expressão religião popular como a manifestação religiosa das camadas mais baixas ou médio-inferiores da população menos favorecida economicamente e analfabeta ou semianalfabeta.

Achamos que seria possível ainda entender o popular da expressão sem relacioná-lo diretamente com pobreza ou a falta de letras. Entendê-lo, sim, na perspectiva do Folclore, já que praticamente em todas as culturas a Religião caminha com ele, como é o caso, muito evidente para nós, dos povos da América Latina, com as suas expressões religiosas bastante peculiares. Dentre os muitos exemplos que poderiam ser levantados quanto a este particular, lembremos o sentido que em grande parte do México tomam as festas de celebração do Dia dos Mortos, nas quais se misturam crenças religiosas do Cristianismo e tradições pré-hispânicas. 

No Brasil, o maior país católico do mundo, segundo as estatísticas ufanistas, há inegavelmente, ao lado do oficial, um catolicismo sui generis, tradicional, de fundo rural, e outro citadino, impregnados ambos de conteúdos e de expressões que não encontramos no oficial. As contribuições indígena, africana e depois espírita, transformaram o nosso catolicismo popular em algo bem distante dos modelos que encontramos em outros países que também sofreram o processo da colonização como nós. 

A separação entre religiosidade oficial e popular, lembremos, vem desde a antiguidade. Ao lado dos documentos usados normalmente pelos historiadores das religiões do mundo greco-romano (fontes literárias, filosóficas, artísticas etc.), encontramos alguns textos específicos, conhecidos como papiros mágicos e as chamadas defixiones (encantamentos, imprecações etc.), que revelam práticas religiosas, extremamente difundidas, bem diferentes daquelas das camadas superiores da sociedade (a religião do Estado), práticas estendidas desde a Grécia arcaica ao mundo helenístico. 

Citemos, ainda exemplificando, o caso de Moisés entre os judeus. Há, sem dúvida, um Moisés oficial e outro popular. O oficial tem uma biografia bem conhecida. É o maior dos profetas, liderou o êxodo, recebeu o decálogo etc. Os meios judeus helenizados, entretanto, o vêem mais como uma figura popular, explicando que ele era antes de tudo um mago e que nada havia de estranho nisto, pois vivera no Egito, terra da magia, onde foi instruído na sabedoria dos egípcios, sendo poderoso por palavras e por ações. A sua iniciação esotérica lá teria ocorrido, junto aos sábios, na qualidade de protegido de Termutis, filha do Faraó, e também junto de um sacerdote da Midia, que viria a ser o seu sogro. Realizou assim Moisés, em companhia de seu irmão Aarão, prodígios muito conhecidos, conforme descritos no Êxodo. O mesmo, aliás, é dito sobre Jesus em muitas tradições judaicas, nelas se afirmando ser ele um mago que adquirira seus conhecimentos quando de sua estada no Egito, a pátria da magia.

Mesmo o Cristianismo oficial, como alguns estudiosos provaram, não escapou das infiltrações populares, como pode ser atestado por temas, que nele se manifestaram, não presentes no oficial, como os do maravilhoso na vida dos santos (Legenda Áurea), os dos milagres, os das devoções, o do ordálio e outros. No Cristianismo medieval, os dois campos, o oficial e o popular, se encontram muito bem caracterizados, ambos muito significativos com as suas contribuições, apesar de os aspectos deste último terem sido muito combatidos.





Na Idade Média, por exemplo, a religiosidade feudal propunha um ideal de vida heroico, de proezas ascéticas, de uma luta contra as exigências do corpo físico. As pessoas de origem modesta, que não podiam participar dos ideais da cavalaria ou entrar para o serviço de Deus como monges, não tinham outra saída senão a de uma vida de privações, de muitas dificuldades, rude. Grande parte do Cristianismo popular nesse período optou por esse tipo vida, isto é, cometer violências contra a carne, sempre condenáveis pelos excessos, mas até certo ponto incentivadas pelos meios oficiais e sempre vistos como uma possibilidade de seus praticantes compensarem a sua baixa condição social e as suas intransponíveis deficiências intelectuais. 


 Lembremos o caso dos benandanti, na Itália (Friul), no séc. XVI, adeptos de uma religiosidade não cristã, ligada a antigos cultos de fertilidade e a crenças perigosas no Além. Sob forte pressão da Inquisição, os "andarilhos do bem", num primeiro momento alinhados com o Bem, tornam-se em pouco tempo possessos perigosos, antagonistas que teriam de ser exterminados. Se quisermos mais, não há como deixar de ler o excepcional livro de Carlo Ginzburg, Os Andarilhos do Bem – Feitiçaria e Cultos agrários nos séculos XVI e XVII.

Acreditamos ser necessário também, para uma visão mais abrangente do tema, chamar a atenção para o fato de que os discursos da religião oficial e os da popular se opõem até com hostilidade quando os seus praticantes não sabem ou não conseguem objetivá-los. A razão maior disto prende-se à circunstância de que a noção de fé, em ambos, fica imersa no cotidiano de cada um. Os que se ligam à religião popular procuram sempre humanizar o divino, são mais imediatistas, têm problemas materiais prementes a resolver, sérios, vitais, muitas vezes questões de sobrevivência; precisam sentir o divino mais próximo e, assim, se voltam para aqueles que lhes propõem o aprendizado de técnicas para tanto. Daí o sucesso das chamadas religiões evangélicas, implantadas no Brasil segundo técnicas norte-americanas (a “mass communication” religiosa). 

Os da religião oficial, ou os que embora não muito conscientes seguem o modelo (a maioria), como no caso do nosso país, são naturalmente os detentores do poder político, embora algumas fatias desse poder estejam passando para os evangélicos. Os da religião oficial trabalham com metas mais distantes, não sofrem tanto as pressões materiais como os outros, que são considerados, conforme o caso, sempre diferentes, situados fora da ortodoxia, invejosos, recalcados, suspeitos, quando não perigosos, e até um caso de polícia. 

A distância que a religião popular estabelece com a relação à oficial define o nível da liberdade que ela reivindica. É em função deste nível que encontramos um grande número de templos e de igrejas populares, número que cresce bastante, principalmente nos grandes centros urbanos, uns independentes dos outros, como galhos que se desprenderam do tronco oficial, todos invariavelmente caminhando na direção de um discurso pessoal, muitas vezes conflitante. As formas da religiosidade popular brotam e proliferam a partir desse tronco, o sistema religioso oficial, utilizando no que convier os seus elementos.

Muitos, sem dúvida, consideram essa proliferação como uma degradação da "verdadeira" vida espiritual. A lei fundamental da comunicação de massas talvez pudesse ser aqui invocada para uma tentativa de maior compreensão do fenômeno: em termos de massa, de grande público, quanto mais baixo o nível de uma mensagem, mais ela penetra. O raciocínio também é válido para o proselitismo religioso. De outro lado, podemos colocar também que toda religião procura adquirir um caráter universalizante (urbi et orbe) e, como tal, terá que enfrentar os riscos de desvios e de degradações. É dentro deste enfoque que temos que considerar, ao longo da história religiosa da humanidade, os inúmeros casos de sincretismo que ocorreram e continuam a ocorrer. Lembremos o exemplo do Budismo. Ao deixar de ser a religião oficial da Índia depois da morte do imperador Ashoka, da dinastia Maurya, no século III aC, ele praticamente desapareceu do território indiano. Alcançando a China, levado por seus missionários, o Budismo lá se fundiu com o Taoísmo e ao Confucionismo, transformando-se num credo de forte apelo popular, incorporando crenças mágicas, temas heroicos e o miraculoso. 

Outro aspecto importante é que a religião vencedora reduz sempre as religiões autóctones, indígenas, aborígenes, a religiões populares. Foi o que aconteceu com o Cristianismo quando se impôs, a ferro e fogo, nos territórios que as nações cristãs iam conquistando nos vários continentes, Ásia, África, Américas e Oceania. Quem liquidou o mundo celta, para que o Cristianismo vingasse, foi Carlos Magno, recebendo da Igreja Católica o título de imperador do Ocidente por esse grande serviço prestado.

As religiões dos povos conquistados receberam nomes como primitivas, bárbaras, infantis, sendo inclusive todas satanizadas. 

Acontece que no mundo religioso é comum que, passado o primeiro momento de implantação da religião vencedora, os cultos oprimidos, se não exterminados, com o tempo, não só se infiltram na religião vencedora como acabam sobrevivendo e conquistando uma certa autonomia. Esta autonomia pode ser exemplificada com o Vodu haitiano, com o Candomblé e com a Umbanda brasileiros, como os temos hoje, por sua vez influenciados também por elementos da antiga religião vencedora, como é mais o caso do último citado. 

No Brasil, temos, por exemplo, na Macumba, um sincretismo variadíssimo, aparecendo o Nagô como seu tronco principal, nele se integrando cultos de outras vertentes africanas, mais as contribuições ameríndias, católicas e espíritas. Por isso, comuns, dentre outras, nos terreiros, imagens da Virgem Maria, de Santo Antonio, de São Miguel e de São Jorge, e, ao lado, orixás e práticas espíritas.


                                                                             REISADO - FEIRA DE SANTANA

Assim, é comum que as religiões de povos conquistados a partir do século XVI tenham passado a se constituir em religiões de oprimidos, sobretudo socialmente, de fundo popular. É, no geral, através delas, que os vencidos procurarão manter um mínimo de sua identidade, sendo elas muitas vezes o único elemento passível de preservação, diante do processo de desculturação que os vencedores sempre impõem aos vencidos. Às vezes, essa afirmação religiosa toma na história de alguns países uma feição trágica, como é o caso do ocorrido na China com a seita dos Tai-Ping. No século XIX, esta seita procurou preservar a integridade da sua postura religiosa quando da chegada dos invasores europeus. No fundo, esta postura foi considerada um veemente protesto contra a posição das elites confucianas, uma traição nacional, que haviam entregue o país aos europeus (Inglaterra). Satanizada, a seita foi totalmente exterminada.

As chamadas religiões populares devem ser encaradas como uma tentativa de se viver de modo mais simples e direto a relação com o divino. São, assim, mais imediatistas. Os motivos parecem óbvios: a maior parte dos fundamentos das religiões oficiais, questões teológicas e metafísicas principalmente, além das grandes complicações litúrgicas, passam longe das camadas populares. Para o homem do povo, tudo isso é muito abstrato e dogmático. As religiões populares, de um modo geral, colocam no primeiro plano, com muita ênfase, questões afetivas, emocionais, no lugar de formulações mais lógicas, discursos metafísicos sempre de difícil compreensão. Os sacerdotes e operadores das religiões populares falam de modo direto, objetivo, usando a linguagem do seu público. Com isto, fica favorecida a penetração do sagrado na vida diária.

As religiões populares que ganham públicos cada vez maiores nos centros urbanos, todas montadas a partir do discurso cristão, tornam o divino mais próximo, dando-lhe poderes e qualidades quase humanos, mas sempre superiores. Com misturas estapafúrdias do Antigo e do Novo Testamento, todas procuram fazer de Jesus uma espécie de avatar, como na concepção hinduísta. Fica deste modo mais fácil aderir a um deus próximo, "quase como a gente", do que a um deus distante, sem dúvida. O discurso da religião popular, nos grandes centros urbanos, enfatiza muito mais a fé no poder divino do que acentua definições sobre ele. Por isso, o divino, nesse discurso, pode intervir diretamente nos negócios humanos.

O continente latino-americano é um terreno particularmente rico para pesquisas sobre as chamadas religiões populares. Diante do total desinteresse das elites, mergulhadas na corrupção (grandes bancos, redes de comunicação, jornais, políticos, magistratura etc., etc.) em resolver realmente os problemas que afligem as populações mais carentes (desemprego, analfabetismo, fome, violência, droga, doença), por um lado, e da impotência das instituições sociais, mantidas apenas pro forma, por outro, as relações dessas populações com o divino se colocarão sempre sob o signo da afetividade. Talvez o recado mais direto das religiões populares seja o de que a transcendência deva ser vivida aqui e agora. Transcendência não para fora do mundo, para uma vida depois da morte.
 
Daí a eficiência procurada: tirar um infeliz da droga, curar o alcoolismo do outro, ajudar o desempregado a conseguir um emprego, tirar o desvalorizado socialmente de situações de alienação e de pobreza. Seu discurso evita, por isso, temas escatológicos, nada de se falar de morte ou do fim do mundo. Ao contrário, intentar sempre inserir o crente no processo social, valorizando-o inclusive como um ser econômico, como os da religião oficial. "Se Deus está conosco...", tudo é possível. Esse é o discurso. "Deus é fiel". A proposta é clara: uma felicidade bem terrena, consumista, sucesso profissional e familiar (este se possível), saúde (à custa de "milagre", se for o caso), vida material em ordem. Até que se constate que nem sempre (ou sempre) conquistas materiais não são sinônimo de felicidade. Contudo, se tal acontecer, sempre restará o consolo de que é preferível viver a infelicidade com algum conforto material do que sem nenhum.