sábado, 9 de junho de 2012

MITOLOGIAS DO CÉU - A LUA (5)


SURYA

AGNI



Quando nos aproximamos hoje da literatura sagrada indiana, tanto em sânscrito como nas línguas modernas, como da sua arte em geral, ficamos espantados com o número de referências à Lua, com o grande número de imagens lunares. Sabemos contudo que nos primeiros tempos da civilização hinduísta, no chamado mundo védico, o da supremacia dos cultos solares, não havia nada disso. Os cultos solares, ligados ao fogo (Surya, Indra e Agni), sempre se impuseram, não admitindo concorrência.                                                    


ARIES
As primeiras tribos indo-arianas que chegaram à região do Indus por volta de 2000 aC, como as que se fixaram também na Pérsia, tinham o fogo como elemento central da sua religião. Iniciava-se então a era astrológica de Áries (1662 aC-498 dC), como já se disse. O Sol, sob os nomes de Surya, Savitar e outros, sempre teve um lugar de suprema importância no mundo védico, nenhuma referência se fazendo ao astro lunar; não havia deuses lunares. Nos cultos domésticos, naqueles antigos tempos, também nenhuma referência à Lua. Tudo se concentrava nas oblações ao fogo (agnihotra), ao deus Agni.

TANTRA
No decorrer dos séculos, porém, aos poucos, o princípio feminino, no eterno jogo das polaridades, começou a voltar para ocupar o seu lugar no mundo védico. Esse princípio feminino vai estabelecer as bases daquilo que mais tarde se denominaria tantrismo, sendo uma de suas concepções essenciais, a essencial talvez, a de que o homem tem que ascender através do mundo natural, feminino, e não rejeitá-lo em nome do céu, como o fizeram as três religiões monoteístas patriarcais, judaísmo, cristianismo e islamismo. As Grandes-Mães começaram a voltar, o seu simbolismo, como forças vitais universais.

O culto da shakti, da deusa, da energia feminina, lembro, passou a ocupar um papel de grande importância no Hinduísmo, contrastando bastante com a ênfase patriarcal da tradição védica, profundamente indo-ariana. Esse culto, que toma o nome de Tantra, tem certamente raízes no mundo religioso dos povos subjugados pelas tribos indo-arianas. Tantra quer dizer regra, ritual, tecido, na língua sânscrita. 

As primeiras representações que temos de uma divindade lunar nos mostram um jovem guerreiro montado num antílope; nas mãos ele carrega uma lebre ou uma estampa do animal. Às vezes, vem num carro de três rodas, puxado por “cavalos brancos como as flores do jasmim”, registram os mais antigos textos. Como divindade, o deus lunar ocupava uma posição subalterna no panteão hinduísta. Essa divindade não tinha nome: era chamada simplesmente em sânscrito pelo nome de Chandra, substantivo masculino, ao qual se acrescentou a palavra mas, que traduz uma ideia de medida, de mês, Chandra-mas. Seus outros nomes, menos importantes que o citado, eram também masculinos, Soma (ambrosia) e Indu (gota).

CHANDRA
                                                      
SHIVA

KRISHNA
Embora sendo uma divindade menos importante que as solares, a mitologia que se elabora em torno de Chandra-mas deu origem a muitas histórias, recolhidas pelos Puranas. Muitas delas têm relação com a astrologia, sendo bastante difundidas entre os devotos de Krishna e de Shiva. Numa dessas histórias, por exemplo, se narra a origem mítica da dinastia lunar, tronco familiar de Krishna, avatar de Vishnu; noutras, contam-se lendas sobre o desaparecimento mensal do astro, seus eclipses.
              

BRAHMA
O nascimento da Lua como divindade, chamada Soma, é contado num texto purânico (Harivansa). Atribui-se a paternidade de Chandra-mas ou Soma  a um divino rishi (profeta), de nome Atri. As energias geradas pelo corpo de Atri, que se submeteu a severas penitências, foram para o céu, tomaram forma. Brahma, o pai de todas as coisas, aceitou esta forma e a instalou definitivamente no espaço celeste.
Fixada numa órbita, a Lua começou a circular pelos céus para “o bem de todos os seres, como fonte de fecundidade.” Ela passou a reinar sobre o mundo vegetal. Brahma lhe deu total soberania sobre as sementes, as plantas e as águas. A Lua, como Soma, tornou-se então semente e alimento para os humanos e para os animais. Brahma, o deus criador, lhe deu poderes de multiplicação, para que ela pudesse inclusive reproduzir-se a partir de si mesma (cissiparidade, metástases etc.).

TEXTOS PURÂNICOS
Outros textos purânicos nos descrevem os ciclos lunares, neles se considerando o minguante como uma verdadeira doença, devido, aliás, a uma maldição que o próprio comportamento do deus gerou. Esta história é uma ilustração de fatos astronômicos, como fácil é de se ver.

O Deus-Lua tinha vinte e sete esposas de grande beleza, todas a ele submetidas. Dentre elas, porém, havia uma, chamada Rohini, que, por ser muito espirituosa e coquete, era a favorita. Seduzido por ela, o Deus-Lua, certa vez, não desejou mais visitar as suas outras esposas. Preso a Rohini, não se decidia. Não podendo suportar por mais tempo a ausência do amado marido, as outras esposas reclamaram ao pai Daksha (competente, inteligente, hábil), que, tomado de cólera diante do procedimento do Deus-Lua, o amaldiçoou. A Lua foi atacada assim por um definhamento progressivo. Emagrecendo dia a dia, o Deus-Lua só resolveu ir a Shiva quando já estava reduzido à metade. A grande divindade, compadecida, não só o curou como lhe deu um lugar sobre a sua própria cabeça.

Retomando o seu antigo aspecto, liberto de sua angústia, o Deus-Lua instalou-se na fronte de Shiva, que, por essa razão, passou a ser chamado de “aquele que tem a Lua como diadema”. Os textos purânicos nos dizem, entretanto, que a solução encontrada por Krishna não foi definitiva. As esposas insistiram no sentido de que o Deus-Lua abandonasse a fronte de Shiva e retomasse as suas funções maritais. Um acordo é então estabelecido: a cada mês, por uma quinzena, o Deus-Lua suportará a maldição de Daksha e na quinzena seguinte, pela benevolência de Shiva, retomará a sua plenitude.

As vinte e sete esposas do Deus-Lua são obviamente as constelações que a Lua visita na sua caminhada mensal, tendo relação direta com a fixação do calendário indiano. Pode-se dizer que não há cerimônia religiosa que não faça referência às fases lunares, o que torna o tempo litúrgico hindu totalmente lunar. Tudo isto veio adquirindo tamanho relevo que as grandes datas religiosas, antes dependentes do Sol, festas solsticiais e equinociais, por exemplo,  perderam sua importância. Isto explica porque a festa do início do ano no calendário religioso hinduísta é uma festa móvel.


DURGA PUJA
SHIVARATRI
      Concretamente, isto significou que a data de qualquer cerimônia passou a ser fixada conforme a presença da Lua nesta ou naquela constelação, conforme uma fase ou outra. As grandes celebrações como Navratri (Grande-Mãe), Durga Puja, Kali Puja, Diwali, Holi, Dassera, o nascimento e a grande noite de Shiva são todas festas móveis, calculadas pelo calendário lunar.  Esta última festa mencionada, Shivaratri (A Noite de Shiva), cai numa noite sem Lua, em fevereiro ou março, data em que a grande divindade realizou o seu tandava, a dança que simboliza o aparecimento das três dinâmicas universais. Em praticamente todos os festivais temos referências à Lua e/ou às grandes deusas.



ANANDA TANDAVA

 Diariamente, em algum lugar da Índia, há um festival. Com um panteão enorme, com milhares de divindades, santos, profetas e gurus e além de não haver contradição entre o sacro e o secular, os festivais são numerosíssimos ainda hoje, apesar de toda a modernização do país. Além de importantes eventos sociais e artísticos, esses festivais põem em relevo um grande número de cultos e de sub-cultos, jogando com um rico substrato de  lendas e eventos históricos. Por quanto tempo mais?


Ao lado deste contexto, das ocasiões solenes, há um grande número de ritos e de observâncias que são ritmados pelo tempo lunar. Muito difundida, por exemplo, em toda a Índia a prática de penitências durante a Lua nova com o objetivo de ser buscada uma proteção. Isto se deve à crença de que nas noites sem Lua nós ficamos desprotegidos. Assim como o Sol é o protetor diurno, a Lua é a protetora noturna. Nas noites sem Lua, conforme o quarto  Veda (Atharva) nos diz, o ser humano pode ficar sem defesa diante dos demônios. Muitos rituais domésticos explicam como essa proteção pode ser conseguida.


Todas as fases da Lua são sagradas. O plenilúnio, a mais benéfica delas, é o tempo ideal para se fazer um sacrifício a Ishvara, o deus pessoal. Jejuns, por exemplo, são realizados a partir do quarto dia do minguante. O jejum é realizado por quatro dias, podendo o crente se alimentar frugalmente apenas à noite (uma refeição), depois de ter tomado banho e de ter recitado preces à Lua e ao deus Ganesha, que preside este vrata (austeridade piedosa, prática religiosa, voto).
 
Observâncias como estas são muitas e demonstram o importante papel que a Lua desempenha na vida religiosa do hinduísta, desde os tempos védicos. Depois que o vedismo deu lugar ao Hinduísmo de um modo mais definido, as festas religiosas continuaram a utilizar as fases lunares para as cerimônias e ritos, privilegiando a Lua nova e a Lua cheia. As shraddhas, cerimônias de reafirmação da fé pessoal (“somos a nossa shraddha, dizem os hindus) têm por objetivo dar mais força ao hindu para que ele viva a sua fé mais corretamente, segundo o seu dharma. Estas cerimônias são sempre realizadas na Lua nova ou na quinzena sombria de cada mês. A escolha destas datas não é arbitrária. Para o hindu, a Lua nova é um período perigoso, demônios e almas penadas andam à solta. É também por esta razão que oferendas são feitas aos manes. Os ancestrais, quando apaziguados pela shraddha, dão vida longa, sabedoria, saúde, ajudando na libertação final (moksha). Os sacrifícios feitos em cada noite da quinzena sombria são propícios para a obtenção de um tipo de benefício. Na primeira noite, temos a obtenção da saúde; na segunda noite, prole masculina; na terceira noite, realização das expectativas etc.

O Hinduísmo sempre estabeleceu uma forte ligação entre a Lua e os ancestrais. Ela constitui, às vezes, a sua residência temporária e eles se transformam em “alimento”. Esse alimento é o soma, néctar que dá a imortalidade, isto é, a própria Lua. Antigos textos religiosos (Brihad Aranyaka Upanishad) nos dizem que há três destinos possíveis para os homens depois da morte: a) o dos iniciados, ou seja, aqueles que conquistaram com a sua morte o Sol e por ele o Brahman, lugar de onde não se volta; b) o do ímpio, o daquele que depois de morrer renasce logo, voltando numa forma lamentável; c) o do homem virtuoso e piedoso, que se encaminha para o mundo dos manes, para a Lua, de onde voltará para viver uma nova vida em melhores condições que a anterior, até a libertação final.

Estas ideias fazem da Lua a porta de entrada do céu. Além disso, a Lua é nestas concepções residência dos ancestrais, alimento dos deuses, uma espécie de recipiente cheio de ambrosia, um receptáculo de imortalidade. A Lua míngua e desaparece quando os deuses se alimentam da ambrosia que ela contém. Esta ambrosia é inesgotável porque o Sol “salva” a Lua, fazendo com que as águas dos mares e dos rios voltem a enchê-la. O Sol, como se vê, provoca a evaporação das águas. Estes vapores se transformam no néctar divino. Uma parte é consumida pelos deuses e outra acaba chegando à Terra através dos raios lunares como orvalho fecundante quando das noites de Lua Cheia. Os poetas da Índia sempre ligaram a Lua à fertilidade. Vários textos nos dizem que o deus Soma visita a Terra nas noites de Lua nova para fecundar as águas e as plantas, depositando nelas um germe de imortalidade. 
    
 Quanto ao ritual do casamento, a Lua nele não ocupa uma posição relevante; ao contrário, é até bem modesta a sua presença. Todos os passos desta cerimônia são dominados pelo  fogo, isto é, principalmente pelo deus Agni, masculinos, portanto. Há apenas uma referência breve do marido ao deus Soma, umas poucas palavras apenas, pedindo que ele os livre, o casal, de todo mal.





OSIRIS
Um registro importante nos mitos da Índia referentes à Lua é o de suas manchas, que muito preocuparam os poetas. É deles que vem uma explicação: viram eles nessas manchas, na superfície do astro, o desenho de uma lebre em plena corrida. Esta interpretação é, aliás, encontrada em muitas outras tradições, asteca, chinesa, indo-budista, celta etc. Entre os egípcios, lembremos, Osíris tomava a forma de uma lebre, esquartejada em catorze pedaços por seu irmão Seth (14 é a metade do mês lunar). Ao ser ressuscitado por Ísis e por Toth, o “novo” Osíris será composto por 28 pedaços. O número 28 corresponde ao último pedaço de Osíris, não encontrado, o seu órgão fálico, que Ísis, com as suas mãos, confeccionará. É nessa condição que a plenitude do mês aponta para Ísis, a deusa do astro lunar.