sábado, 16 de abril de 2011

A COR DA ROMÃ


O filme é de 1968, tendo sido realizado na Armênia pelo diretor Sergei Paradjanov. Foi censurado pelas autoridades soviéticas e proibida a sua exportação. Quando exibido na Europa, somente em 1982, depois do degelo soviético, esteve sempre entre os melhores do ano, principalmente na França, pelo reconhecimento que lhe deu o grupo dos “Cahiers du Cinéma”. O roteiro é do próprio diretor, fazendo parte do texto os poemas de Sayat-Nova, personagem central da história. Atores: Sofiko Chiaureli, Melkon Aleksanyan, Vilen Galstian e outros. A música é de Tigran Mansuryan.
O filme (Selo Lume) é uma biografia poética de Sayat Nova, um bardo armênio, desenvolvida sem maiores precupações de continuidade. Através de uma série de “quadros”, de grande beleza plástica, que vão se sucedendo, o que temos é um cinema de composição alegórica bastante complexa, nela se destacando o espetacular uso da cor. O resultado fílmico é uma espécie de baú de tesouros e relíquias, guardados em um antiquário, que Paradjanov vai retirando e nos mostrando, um incrível acervo de utensílios, figurinos, tapetes, tecidos, ícones, instrumentos, objetos, formas, signos perdidos no tempo.



A literatura armênia, como se sabe, bastante influenciada pelo ideário greco-bizantino e depois pelo cristão (muito presentes na atmosfera do filme), nunca deixou de retratar as sucessivas invasões do país, longos períodos de guerras e conflitos regionais. Entre os séculos XIII e início do séc. XIX, a antiga língua armênia, falada desde os anos 600 aC, que ganhara o status de clássica, entrou em decadência devido a um crescente processo de dialetização, causado por lutas regionais, algo semelhante ao que ocorreu na Europa central (Iugoslávia). No séc. XVIII, os poetas e alguns contadores de histórias do país emigraram. De importante, nesse século, embora considerada como produção de um poeta nunca valorizado oficialmente, foi a obra de um trovador (ashug), Haruthyum Sahakyan, de Tiflis, conhecido pelo nome de Sayat Nova, que viveu entre 1719 e 1795.


Sayat Nova usava nas suas apresentações um instrumento de três cordas chamado kemencha.


Sergei Paradjanov nos conta a vida desse poeta, desde a sua infância, registrando em imagens a sua história amorosa, o seu amor pela irmã (princesa Anna) do rei Heracles II, que o perseguiu, jogando-o no nomadismo, obrigando-o a levar uma vida errante, até a sua morte num mosteiro. Paradjanov foi colher no renascimento literário do séc. XIX, no Cáucaso russo, armênio portanto, a motivação para fazer o filme, apesar do país ter sido dividido entre a Rússia e a Turquia.


Paradjanov deu o tom do filme através da “vida interior” do poeta, tomando como ponto de partida os seus poemas. As imagens são assombrosas, “extremistas”; a movimentação dos atores é composta para se integrar magistralmente ao jogo das imagens. É por elas e pela grande qualidade musical do filme que podemos conhecer a excepcional arte de Paradjanov, um cinema único, que obrigou o uso de superlativos pelos que dele se aproximam. Uma experiência visual única, sem dúvida.


As imagens do filme são intencionalmente desligadas das suas raízes históricas. Ao vê-las, não podemos deixar de lembrar, talvez, muito mais que da pintura, da arte da tapeçaria. Aliás, neste particular, grande foi a influência recebida por Paradjanov da literatura armênia dos primeiros séculos da era cristã.


A concepção geral do filme tem certamente muito a ver com as homilias Hachakapetum (Tapetes), atribuídas a um poeta, Mesrop Machtotz, entre os séculos III e V aC, este último considerado como o “século de ouro” (Oskedar) da literatura armênia.

O barroquismo do filme é outro ponto alto a nos propor constantemente que compartilhemos com o diretor a sua enorme capacidade de transcender aquilo que normalmente se entende como zonas de percepção da realidade física. Não é por outra razão que A Cor da Romã nos lembra também os afrescos medievais; Giotto e Fra Angelico são nomes que nos ocorrem. O aspecto teatral do filme é outro destaque importante a salientar; sua dramaturgia aponta para formas teatrais (autos) da Idade Média, hoje irremediavelmente perdidas para o teatro moderno, mas recapturadas pela arte do diretor.


Paradjanov viveu entre 1924 e 1990. Foi um dos cineastas mais polêmicos da antiga União Soviética. Filho de armênios, vivendo na Georgia, estudou canto, dança e principalmente artes plásticas. Sempre teve problemas com a censura, já que suas obras não se enquadravam nas propostas da estética vigente (realismo soviético). Nem sua vida cabia nos modelos oficiais. Em 1973, Paradjanov se envolveu num rumoroso acontecimento: foi detido pela polícia em razão da sua vida sexual, escandalosa para os padrões da moral da época. O caso ganhou repercussão internacional, pois ele já era conhecido nos meios cultos da Europa por um filme anterior, Shadows of Forgotten Ancestors, mais tarde designado por outro nome.



Em dezembro de 1973, foi ele internado numa prisão siberiana. Andrei Tarkowski intercedeu a seu favor junto do Comitê Central do partido comunista. Ao mesmo tempo, um grupo eclético de artistas europeus protestou, pedindo a sua libertação. Dentre eles, Françoise Sagan, Jean-Luc Goddard, François Truffaut, Federico Fellini, Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Yves St. Laurent, Louis Aragon e sua mulher Elsa Triolet (russa de nascimento) e outros. Libertado depois de quatro anos, continuou tendo problemas com as autoridades soviéticas.



As imagens que A Cor da Romã nos apresenta estão certamente entre as mais originais que o cinema já produziu, tanto pelo seu padrão estético como pelo seu inusitado. Estão no mesmo nível daquelas que ele nos apresentou em Cavalos de Fogo (acima mencionado com o título em inglês), outro belíssimo filme seu, uma adaptação da história de Romeu e Julieta levada para o cenário dos montes Cárpatos.

A câmera de Paradjanov está em A Cor da Romã sempre voltada para grandes movimentos, com travellings, ângulos “impossíveis”, mergulhos impressionantes. Uma festa para os olhos e para a sensibilidade, sem dúvida. Uma experiência visual radical, como pouquíssimas vezes o cinema apresentou. Paradjanov é um mestre da realização porque sabe, como poucos, lidar com as duas grandes operações da arte de fazer filmes: a filmagem dos planos e a sua montagem. A primeira operação, como sabemos, nos vem da origem do cinema, e vai revelar a familiaridade (ou não) do diretor com a arte daqueles que o precederam. A segunda, hoje, é a arte de fazer do plano mais que uma unidade percebida.



O filme não tem nenhuma mensagem política; é puramente descritivo, sendo a sua linguagem a dos sonhos e a da fantasia, às vezes mesmo de um surrealismo buñuelesco. Um cinema extravagante, “maldito”, em todos os sentidos, não tendo tido jamais qualquer chance comercial. O filme é completamente desconhecido pela maior parte do público e da crítica oficial. Lembro que A Cor da Romã, apesar de tudo, conseguiu clandestinamente furar a barreira da proibição das autoridades soviéticas, tendo chegado a algumas telas ocidentais na década de 1990. “Contrabandeado” para Santos no final da década de 80, foi exibido numa memorável sessão do Clube de Cinema da cidade (sessão que não pode ser divulgada pela imprensa), à qual compareceram muitos dos seus cinquenta e dois associados.

Em 1984, com o chamado degelo político na URSS, Paradjanov, embora com a saúde seriamente abalada, conseguiu, retornar ao cinema. Realizou, com o apoio de alguns georgianos, o multi-premiado filme Legend of Suram Fortress, filmando a seguir Ashik Kerib. Ele dedicou este filme (a história de um trovador errante fixado na cultura do Azerbaijão) ao seu grande amigo Andrei Tarkovski, um dos maiores cineastas de todos os tempos, que também conviveu com muita dificuldade com a estética soviética, e a “todas as crianças do mundo”.

Ao morrer, Paradjanov deixou o inacabado Confissão, que poderia ter sido uma futura obra-prima, na opinião dos que o viram. Sua morte foi lamentada publicamente pelo que havia à época de mais inteligente e realmente importante no cinema e na literatura européia, por Federico Fellini, Tonino Guerra, Marcello Mastroianni, Francesco Rossi, Alberto Moravia, Giulietta Massina, Bernardo Bertolucci, por todo o grupo de diretores ligados aos “Cahiers du Cinéma” etc. “O mundo do cinema perdeu um mágico”, foi a mensagem que enviaram.


Paradjanov, ainda estudante, descobriu o cinema depois de contactos com Andrei Tarkovski (A Infância de Ivan), de conhecer o seu cinema, sempre uma grande inspiração sua. A exploração da literatura poética pelo cinema, uma proposta de Paradjanov, deixou uns poucos seguidores, Theo Anegelopoulos, Nela Tarr, Moshen Makmalbaf (os seus maravilhosos O Silêncio e Um Dia Muito Especial) e poucos outros. Paradjanov faz parte de um pequeno grupo de cineastas que buscou nas artes plásticas grande parte ou mesmo toda a sua motivação, gente como Jean Renoir, Peter Greenaway, Bertrand Tavernier, Jean Delannoy, Masaki Kobayashi.

Sergei Paradjanov, com Artavazd Paleshian (gênio do cinema poético para Sergei) e Mikhail Vartanov (documentarista, falecido em 2009 nos USA, melhor amigo de Sergei), forma a linha de frente do moderno cinema armênio, que existe desde 1923.



                                                        Ciclo de cinema - S.Paulo, 2010 - Lita Projetos Culturais