segunda-feira, 28 de outubro de 2019

SAPHO E A POESIA GREGA



SAPHO

Para os antigos gregos, a poesia tinha uma origem mítica. Dentre os muitos nomes a serem lembrados, como suas figuras inaugurais, destacamos, como mais representativas, as Musas, as Cárites, Pégaso, Orfeu, Lino e Museu.  As primeiras eram filhas de Zeus e de Mnemósina, a deusa da memória, geradas não só para agradar os deuses olímpicos quando de sua vitória sobre os titãs (Titanomaquia) como para que os humanos jamais se esquecessem de tão auspicioso acontecimento. Inspiradoras dos poetas, as Musas (etimologicamente, a que faz lembrar e a fixar no espírito) ajudavam bastante, ainda que indiretamente, os humanos. Ouvindo-os, embevecidos e extasiados, eles esqueciam as suas inquietações e os seus sofrimentos.  Desde que devidamente cultuadas, as Musas, ressalte-se, estendiam também sua ação protetora a todas as demais produções artísticas dos humanos, à música, à dança, ao teatro, à história etc. 


FONTE DE HIPOCRENE
Muito procurada por artistas havia, numa das vertentes do monte Hélicon, uma fonte cujas águas tinham a propriedade de tanto despertar como de aumentar  a inspiração e a imaginação dos artistas que a procuravam. Era a fonte de Hipocrene ou fonte do cavalo (hippos, cavalo, mais krene, fonte), criada por Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega, símbolo da inspiração superior, filho de Poseidon e da Medusa. Foi junto do Hélicon que se realizou uma famosa competição de cantos corais em que as Musas venceram as Piérides, nove irmãs da Trácia, habilíssimas cantoras, que haviam desafiado as nove filhas de Mnemósina. 


AS   MUSAS  E  AS  PIÉRIDES 

O nome da fonte, ligado às Musas, teve origem num episódio que ficou famoso em toda a Grécia. O monte Héclicon se sentiu tão vaidoso por ter sediado a  importante competição das Musas com as Piérides (etimologicamente, férteis, entumescidas, de vaidade, no caso) que o deus Poseidon resolveu punir a sua soberba (hybris), o seu desmedido orgulho. Mandou que Pégaso o punisse, escoiceando-o. No lugar em que Pégaso o atingiu, começou a jorrar água, ali brotando a famosa fonte. As Piérides foram transformadas pelos deuses em pegas, aves que, segundo Ovídio, simbolizam a inveja, a tagarelice e a presunção.


AS  TRÊS  GRAÇAS
SÉCULO  II,  ESCOLA  ROMANA,  LOUVRE
Quanto às Cárites ou Graças, do grego kháris, encanto, beleza, graça, filhas de Zeus e de Eurínome, elas contribuíam sempre para que a poesia e a arte em geral, inspirada pelas Musas, regozijassem tanto os deuses como os humanos., causando-lhes intensa sensação de prazer. As Cárites eram três: Eufrosina, Aglaia e Talia, nomes que, em grego, significam, respectivamente, brilho, alegria e prazer; triunfo e glória; e abundância, festim e banquete. Normalmente, as Cárites faziam parte também dos cortejos de Apolo, de Palas Athena, de Eros, de Afrodite e de Dioniso. Quanto a Palas Athena, deusa virgem, séria e recatada, muito conhecida por seu denodo bélico, explica-se: com o título de Ergáne, ela é a divindade protetora das mulheres que trabalham na fiação, na tecelagem e nos bordados.  

ORFEU
MÁRMORE  GREGO
De origem trácia, muito cultuado como cantor e poeta, Orfeu era  filho da mais importante das musas, Calíope (a de bela voz), da poesia épica e da lírica, e do rio Eagro. Quando Orfeu se tornou figura central do Orfismo, uma importante seita religiosa da antiga Grécia, a paternidade de Orfeu passou a ser atribuída a Apolo. Cumulado de bens por este último, recebeu dele uma lira de sete cordas à qual acrescentou mais duas para homenagear as nove Musas.

Lino era também filho de Apolo e de uma princesa de Argos. A ele se atribui a invenção do ritmo e da melodia na música. Foi professor de Hércules, que, num assomo de raiva, porque por ele advertido numa aula, o matou. Quanto a Museu, filho de Eumolpo, é neto de Poseidon. Místico, Museu aparece como o grande inspirado pelas Musas. Nos desdobramentos de sua história, é citado como amigo inseparável de Orfeu. Músico consumado, curava os doentes com a sua arte.  Foi o introdutor dos Mistérios de Elêusis na Ática. 

HOMERO , MUSEU  DO  LOUVRE 
Historicamente, porém, a poesia começou com Homero, autor de A Ilíada e de A Odisseia, entre os séculos IX e VIII aC. Em torno dele, construíram-se e constroem-se até hoje muitas versões sobre o seu nascimento. É a chamada questão homérica, que vem sendo debatida ao longo dos séculos, ainda não encerrada. Num ponto, todos parecem concordar: a epopeia como gênero literário, nas suas formas, a popular e a erudita, vem de Homero. 


FERNANDO   PESSOA
Na origem do nome épico está o verbo poiein, fazer, e epos, inicialmente significando palavra e depois verso. Desde sempre, a epopeia foi considerada como categoria poética essencial, pois é através dela que o poeta alcança (alcançava) o máximo destaque literariamente. De um modo geral, o épico se caracteriza pelo grande envolvimento do poeta com o mundo exterior, uma tendência que pode levá-lo a desenvolver temas nacionais ou universais (o universo inteiro, como Fernando Pessoa nos deixou em A Tabacaria). O poeta ingressa numa dimensão oposta à do lirismo egotista, subjetivo, feminino. O épico é ativo, varonil, exemplar, positivo, fundamenta-se na História, é cósmico. Exprime geralmente ações, feitos gloriosos, que têm um caráter de grandeza, falando sobretudo de heróis.    

A poesia épica, porém, aos poucos, vai dando espaço para que um outro tipo de poesia apareça, a lírica, uma poesia subjetiva, acompanhada de música. A primeira manifestação estilística do lírico é o chamado dístico elegíaco, variedade do hexâmetro épico. Com compassos menores ao invés de períodos longos, o dístico é o meio caminho entre o livre fluxo épico e a monódia lírica. Esta última vem da Anatólia, cantos de morte, de decadência, lamentos. 



Por volta de 600 aC, aparece na ilha de Lesbos um tipo de poesia diferente, talvez originária do folclore, canções que não têm caráter coral nem popular, de cunho universalizante com temas afetivos e sobre a natureza. A fértil ilha de Lesbos, chamada também de Mytilene, por causa de sua capital, fica no mar Egeu, perto da costa anatoliana, na altura de Pérgamo. Na antiguidade, principalmente entre os séculos VII e V aC, foi um importante e ativo centro cultural, com destaque para figuras como o tirano Pittacos (um dos Sete Sábios), o inventivo músico Terpandre, o poeta Alceu e a mais que famosa poetisa de língua grega, Sapho ou Psappho. 

SAPHO
Nascida em Mytilene, ao final do século VII a.C, Sapho era filha de Escamandro e de Cleia, ambos da aristocracia local, produtores de vinho. Pouco se sabe de sua vida pessoal. Passou a maior parte de seu tempo de vida na ilha.  Perdeu o pai aos seis anos, ficando com a mãe e três irmãos. A família de Sapho produzia e comercializava vinho, como se disse, sendo fornecedores de um empório grego no delta do rio Nilo, em Narícrates. Quando um de seus irmãos começou a viver com uma cortesã, Sapho o censurou, pedindo (talvez o seu primeiro texto) que a deusa Afrodite o fizesse retornar à sua dignidade pessoal. 

Lesbos é uma ilha montanhosa, escavada por dois golfos profundos, com vários portos e numerosos vinhedos. Por sua situação geográfica, era muito visitada por comerciantes que iam em direção do oriente, especialmente da Pérsia, o que lhe deu um caráter bastante cosmopolita. Isto explica também as grandes diferenças que encontramos na educação e na posição social da mulher da Grécia continental (Atenas) com relação às daquelas que viviam em algumas ilhas do Egeu, como Creta e Lesbos. Lembre-se que às mulheres gregas, as atenienses da aristocracia ou do povo, estavam destinados os papéis de esposas e/ou mães, nos seus respectivos níveis. A exceção ficava por conta das cortesãs e das concubinas. 


PÉRICLES   E   ASPÁSIA
As primeiras eram ricas, independentes e belas. Escolhiam os seus homens e dedicavam-se sobremaneira aos prazeres do espírito, como aconteceu com a deslumbrante Aspásia, que escolheu Péricles, a mais importante figura política de Atenas, para viver com ela. Em segundo lugar vinham as concubinas, belas e famosas, mas só para os prazeres da carne. 

A mulher de Mytilene participava da vida da cidade, ruidosa, envolvente à noite; com seu encanto e seu espírito, participava da cultura musical e literária (poética, especialmente) da ilha. Não só havia para ela o dever conjugal, mas  também o direito à amizade do marido e de outros homens. Devido à grande liberdade nos costumes, as mulheres gostavam de se exibir, cantavam e dançavam, enfatizando sempre os traços de sua sensualidade, com suas belas túnicas de púrpura e de seda leve, com seus anéis, pulseiras e braceletes de ouro, perfumes e óleos raros. O papel da mulher da ilha também se ligava ainda à preservação de antigas tradições matriarcais através das quais ela  afirmava seus valores sem rejeitar, necessariamente, a comunidade masculina. 

SAPHO
Oriunda de uma alta aristocracia, a bela, culta e refinadíssima Sapho se casou, ainda jovem, com um rico mercador, bem mais idoso que ela. Teve com ele uma filha, Cleia, mantendo sempre, porém, muita independência com relação ao seu casamento. Por questões políticas que envolveram sua família, recebeu a pena de exílio, passando a viver na Sicília por nove anos, entre 604 e 595 aC. 

Sapho considerava a filha Cleia como “uma flor de ouro”, um crisântemo, em sua vida. E completava: prefiro-a ao reino de Creso (Rei da Líbia, muito rico - 561-546 aC). Sapho, nos seus escritos, descrevia-se como baixa, morena, e lamentava sempre a passagem do tempo. Nasceu no fim do séc. VII e morreu no começo do séc. V aC.  

A ligação de Sapho com as mulheres se deu através de uma lírica muito íntima, pessoal. Abandonadas pelos seus maridos, homens da aristocracia, sempre metidos em guerras, ou a viajar, ampliando os seus negócios, fundou para elas, jovens mulheres da ilha, ao voltar da Sicília, sob a tutela de Afrodite,   uma liga, uma espécie de irmandade, com várias professoras, onde se ministravam não só cursos de poesia, música e dança como se cuidava, em geral, do seu desenvolvimento intelectual. A escola de Sapho, além de buscar um ideal de beleza feminina, procurava fazer com que as mulheres se realizassem totalmente. As jovens se uniriam em casamento um dia e depois seriam mães de família, levando, para a sua nova situação, tudo o que haviam aprendido com Sapho. 

Os antigos gregos davam o nome de thiaso às confrarias como a que Sapho criou. Confrarias voltadas para o culto de um ou mais deuses e para outras atividades, culturais, no caso da de Sapho. Os thiasos, embora sempre tenham existido na vida grega, floresceram mais no chamado período helenístico da história grega (sécs. IV-I aC). Eram honradas no thiaso de Sapho, principalmente, divindades orientais como Adônis, Osíris, Anúbis e Serapis. No mais, nessas confrarias, muitos banquetes, festas e procissões. Não havia distinção de sexo ou de idade, nem de condição social. O thiaso de Sapho era conhecido na ilha e na Grécia continental pelo nome de ”morada das servas das Musas”. 

A poesia de Sapho tanto se destaca pela forma como pela sua temática (a vida afetiva em todas as suas expressões). O himeneu (forma poética muito antiga) Sapho o herdou de antigas tradições encontradas também em Corinto, cidade de Afrodite. Himeneu é um canto composto para a celebração de núpcias. Seus ritmos talvez tenham vindo da Índia. Esse canto de celebração, de poesia rústica, era comum na vida do campo quando da realização das núpcias, nas festas em meio aos vinhedos, com mesa farta, aberta.
BOUQUET   GARNI
A noiva permanecia velada até a sobremesa. Usava uma coroa de mirto, tomilho e sálvia, que formava o que os franceses chamaram depois de bouquet garni, usado também no cozimento de alimentos. A distribuição da bebida obedecia a seguinte regra: 1/3 de vinho + 2/3 de água, pois, ao entardecer “não haveria mais que um dedo de dia”. Daí a pouco a noiva se desvelaria, tirando o véu. A noite chegaria logo e os nubentes iriam para casa. 

A.  CHARLES   SWINBURNE
Sapho criou a chamada ode sáfica: três versos, cada um com onze sílabas, hendecassílabos, seguidos de um quarto verso de cinco sílabas. Vários poetas tentaram usar esse modelo. Só dois conseguiram alguma coisa: Charles A. Swinburne (1837-1909), inglês, refinado e culto, iniciado na
EZRA   POUND
literatura francesa e italiana, e Ezra Pound (1875-1972),norte-americano, medievalista, grande nome da poesia do séc. XX. Outros poetas se aproximaram da ode sáfica, que guardava uma certa relação  com a linguagem épica.  Uma aproximação pode ser feita, por exemplo, com Homero, quando o poeta nos conta da chegada de Andrômaca, vinda de Tebas, a Troia, para desposar Heitor. As odes sáficas, neste sentido, embora pareçam imitar Homero, têm vida própria, sua linguagem, no dialeto eólio, é própria, a frase é curta, musical e líquidos os sons das vogais. 

O padrão básico dos poemas amorosos de Sapho, dedicados às jovens amigas do seu thiaso, são as suas experiências pessoais reveladas ao som da lira e da flauta. Tom elevado, amoroso, generoso. Espírito aberto. Uma das formas poéticas usadas é o epitalâmio, canto nupcial através do qual se narra a escolha da noiva, tudo com imagens sadias, frescas. Sapho não esquece inclusive de prestar tributo às eternas candidatas ao noivado, não mais muito novas (acima dos vinte anos) que vão “ficando”: A donzela é como uma maçã rosada num ramo alto; os apanhadores não se esqueceram dela, não, não se esqueceram: o que não conseguiram foi chegar a ela. Sapho fala também do perigo que ronda as noivas: Noiva que não consegue se concentrar no fuso, só tem pensamentos para o mundo ausente. 

SOLON , MÁRMORE
Tudo direto, simples, descomplicado. Não foi por acaso que Platão a chamou de a décima musa e que Plutarco fala dela como enigma e maravilha. Sapho evitou sempre o demasiadamente elaborado, o confuso a título de invenção; muito citada por isso por gramáticos, oradores, literatos e gente do teatro. Sólon, um dos Sete Sábios, disse que não poderia morrer em paz enquanto não conseguisse memorizar os seus versos. Lucrécio, Catulo, Ovídio e Horácio a imitaram. Racine, Baudelaire e Boileau foram tocados por ela. De Sapho: Tu podes esquecer, mas deixa-me dizer o seguinte: alguém, no futuro, há de pensar em nós.

Consta que Sapho teria recusado o amor de Alceu, poeta grego dos maiores. Sobre sua vida afetiva, há uma história que corre desde a antiguidade, a de seu amor desesperado por Phaon (nome grego que lembra a cor acinzentada, escura, da lã) e de seu suicídio na ilha Leucade, ilha jônica. Lenda? Fantasia? Uma tentativa de se provar que Sapho tinha outra opção que não só a homossexual? Dizia a história que os amantes infelizes se lançavam de um penhasco na ilha. Phaon
HERÓIDES
era um herói de Lesbos. Antes fora um barqueiro velho e feio. Um dia, Afrodite, como anciã, em visita aos humanos, pediu-lhe condução e ele a atendeu. A deusa lhe deu então um bálsamo para ser usado todo dia. Tornou-se o velho barqueiro jovem e belíssimo. Todas as mulheres se apaixonaram por ele, inclusive Sapho. Após uma breve e tumultuada ligação com ele, ela se suicidou, depois de abandonada. Ovídio, nas Heróides, descreve essa paixão.

ANDRÔMACA
1853 ,  JOSÉ  VILCHES
Os versos de Sapho dedicados às suas jovens amigas do seu thiaso sempre causaram escândalo, pois, no fundo, tratavam da emancipação da mulher eólia. A eólia é uma das grandes raças gregas ao lado da dórica e da jônica. O nome eólia significa “misturados". A proposta que fica dos versos sáficos é a de que a mulher grega não pode ficar presa ao gineceu (Atenas) nem à palestra (Esparta). O que deve lhe caber é um papel independente e digno numa vida social saturada de machismo como a grega. Essa independência aparece através da figura de Andrômaca (a que luta contra ou como homem), símbolo do amor conjugal, mulher de Heitor. Buscar a integridade, a dignidade, na beleza dos gestos, nas atitudes, no olhar, no sorriso, na postura. Acima de tudo, beleza como reflexo de uma disciplina interior. 

A vida de Sapho foi transformada em deboche pela misoginia ática, tanto socialmente como por muitos de seus escritores, os comediógrafos especialmente (Aristófanes). Todos desejosos de conter o movimento feminista tanto na Grécia continental como nas ilhas. Daí terem cunhado eles o nome de lésbica para designar a mulher homossexual. O verbo lesbiazein vai significar todas as audácias sexuais da mulher. Outra palavra ligada a Sapho é o verbo tribein (esfregar), de onde saíram tribadismo, tríbade, para designar a mulher que se satisfaz sexualmente se esfregando com outras.

Sapho, nesta perspectiva, tentou juntar Afrodite e Eros; de um lado, a graça feminina, a ternura, a elegância nas posturas; de outro, o ardor e a paixão.  Este veio da poesia sáfica se integra à sua lírica, uma poesia do  eu, subjetiva, dos estados interiores da alma. Pouco ou nada com relação ao exterior. Poesia confessional, na primeira pessoa, intimista, dela fazendo parte também as inquietações e os conflitos íntimos. 


UGO FÓSCOLO
A poesia de Sapho enriquece o lirismo de todos os tempos. A literatura moderna lhe rendeu tributo não só como uma grande amorosa, mas, sobretudo, como uma excepcional artífice de versos. Três nomes se inspiram nela diretamente: Ugo Fóscolo (1778-1827), veneziano por parte do pai e grego por parte da mãe. Um representante da sensibilidade pré-romântica, do culto à beleza antiga e aos mortos, com versos de grande plasticidade. 

GIACOMO   LEOPARDI
Outro foi Giacomo Leopardi (1798-1837), jovem conde, de saúde delicada, erudito precocemente, pessimista, que viveu solitariamente em meio às suas desilusões amorosas. Mais perto de nós, não podemos esquecer. Alphonse Daudet (1840-1897), feliz na sua infância provençal, depois uma vítima da ruína dos pais. E mais Marcel Pagnol (1895-1974), nome do naturalismo francês. 


MARCEL  PAGNOL

ALPHONSE  DAUDET


Safo viveu num ambiente em que não se admitiam artifícios e convenções. Trata dos eternos temas amorosos: dor da separação, recordação dos amores passados, doação, integração, plenitude, através de precisas metáforas e imagens. Seus cantos vão para Afrodite, para que ela desate as cadeias do desejo. É como Sapho diz: distante do objeto amado, seu peito emudece, seus olhos ficam obscurecidos, os ouvidos zumbem: tanto superas as mulheres da Lídia, quanto, depois do crepúsculo, a Lua de dedos róseos supera as estrelas. O orvalho derrama então seu lenitivo e florescem a rosa, a branda erva e o rebento das trevas. 

Há também os prazeres mais serenos. Sapho canta a natureza, a água que corre, o luar, as estrelas, a estrela vespertina que convida ao regresso do gado, que devolve o sono maternal ao cabrito e à criança. A Lua, as Plêiades, astros e sofrimento de amor. Ela foi a primeira a explorar estas regiões. Descreve também os passos de Eros. 

Já houve quem dissesse que a poesia de Sapho poderia ser chamada de fisiológica por ela preencher seu campo da consciência com sensações puras. Ela não explica, não embeleza nada, não justifica nada. Sente e registra. Daí a relação entre sensação e consumação do ser pela paixão, tudo implicado uma experiência amorosa total, descrita por imagens da natureza: Eros agitou minha alma, como o vento da montanha se abate sobre o carvalho.

Esta repercussão dos sentimentos no funcionamento do corpo, em Sapho, pertence ao mesmo tempo ao psíquico como ao físico. Há aqui certas alterações, distúrbios de funções orgânicas e corporais que têm um caráter quase patológico. Lembramo-nos de Fedra, na tragédia Hipólito, quando viu seu enteado: 

            Eu o vi: corei, empalideci ao vê-lo
            Uma perturbação se eleva em minha alma perdida
            Meus olhos não viam mais, não podia falar
            Senti todo meu corpo tremer e arder.

Para Psafo, toda paixão tem um objeto. Ei-la descrita: silêncio da noite. Luz dos astros. Na obscuridade, os reflexos luminosos adquirem um valor muito grande, a audição se torna mais aguda. O mundo interior das lembranças, dos lamentos, da saudade, dos desejos, liberado pelo silêncio noturno. A Lua, não mais um ponto de referência, um símbolo. Onde estará Arignota? A Lua se pôs e as Plêiades; é meia-noite. A hora passa, durmo só.

Em Lesbos, além da comunidade de Sapho, havia também uma escola de jovens rapazes sob a proteção de Ares, deus do combate, das lutas, da guerra. Ele era o amante de Afrodite; sua força brutal era contrabalançada pelo poder de sedução (enkrateia) da deusa. Hoje, o que temos, sem Afrodite, é apenas o lado militar, destrutivo, brutal, sem o outro pólo. Na medida em que pressões religiosas judaico-cristãs e islâmicas se impuseram, tornou-se difícil conceber
APOLO
(MÁRMORE, M. VATICANO)
essa união entre Ares e Afrodite. Essa dualidade, na melhor das hipóteses, foi substituída progressivamente pela ideia de paz e de um amor absoluto. Criamos um quadro falso, acreditando que o conflito poderia ser excluído. Qualquer pessoa mais atenta sabe que sem Afrodite não há Ares e vice-versa. O ódio e o amor são regidos no corpo humano pelos mesmos complexos musculares. O deus guerreiro que está hoje em moda não é Ares, mas Apolo, distante e frio. Apolo não é físico nem instintivo como Ares, é muito mais cerebral, lida com dinheiro, ciência, tecnologia, celulares, computadores. Sua violência é abstrata, mata de longe. Reprimido, Ares dá lugar a outras formas de violência que explodem descontroladamente nas ruas e nas casas. Tudo porque desconhecemos Afrodite. O que temos hoje no que diz respeito ao feminino, à mulher, não tem nada a ver com a deusa.

Sapho não era exclusão do masculino, mas uma via para as mulheres, tão importante quanto a outra. Com o mundo grego de Atenas e depois com as religiões oficiais, todas as formas de autoridade (intelectual) se tornaram exclusivamente masculinas. A importância excessiva do masculino gerou aquilo que chamamos de homossexualismo psíquico. O homem ocidental, orientado para uma carreira, deixa o amor em segundo plano. A homossexualidade psíquica é hoje tão grande quanto a física na Grécia antiga. A virilidade masculina vai toda para a ambição, para a competição, para relacionamentos masculinos, para esportes, radicais de preferência, atingindo inclusive as mulheres. Sempre que o trabalho e a carreira levam tudo, Afrodite é ofendida e vai cobrar!

PLATÃO
Sapho é universal. Sua pedagogia procurou unir tudo. Foi o preconceito que levou o mundo grego e, depois, as religiões patriarcais a verem em Sapho só lesbianismo. Platão, embora admirasse Sapho, rebaixou Afrodite, como Freud o fez, só privilegiando o Eros. A audácia de Sapho foi enorme. Antes de aparecer o eu dos filósofos ela ampliou a consciência humana. 


AFRODITE  URÂNIA
Deu nome e descreveu a algo que se vivia, mas que se desconhecia. Sapho nos fala de uma Afrodite corpórea e espiritual, divina e material. A Afrodite do quadril adorável e da Afrodite urânia, sublime, etérea. Sapho procurou valorizar a mulher de um ponto de vista físico, psicológico, social, cultural e religioso.