quinta-feira, 10 de novembro de 2011

BOCCACCIO E DEMOGORGON : UM CASO LITERÁRIO ?





O Renascimento foi um vasto movimento cultural que alcançou vários países da Europa ocidental entre o final dos séculos XIV e XVI. A palavra renascimento aplica-se porque esse movimento procurou recuperar para o mundo europeu os valores da antiguidade greco-romana há muito esquecidos.


TEMPLO GREGO

Sob o ponto de vista cultural, tal movimento encontrou nas artes e nas letras o seu melhor meio de expressão. Ele começou antes na Itália e depois passou à França. Os países da Europa cristã a esse tempo experimentaram um forte crescimento de sua população depois de um século de epidemias, pestes, fome e guerras, tudo se traduzindo por uma grande expansão econômica e pelo alargamento de suas fronteiras (circum-navegação e aventuras colonialistas).

PANTEÃO ROMANO

Com o progresso material, as mentalidades se transformaram. Temores medievais foram afastados e os homens se lançaram, impulsionados por um espírito de aventura, a valorizar a vida de um modo diferente e a ampliar os seus horizontes intelectuais. Para ratificar o que pensavam e construíam no mundo da cultura os homens desse tempo se voltaram para o mundo greco-romano, redescobrindo os seus valores. 

Tendo como centro irradiador a cidade de Florença, esse movimento recorreu à herança greco-romana para renovar inclusive, completamente, a estética vigente. Alimentava essa febre cultural o pensamento neoplatônico, que entra em moda a partir da academia fundada em Florença por Lourenço de Médicis (fig. esq.), nela pontificando a maior figura do movimento renascentista, Marsilio Ficino, sacerdote, filósofo e humanista.


As ideias do aristotelismo medieval e do geocentrismo ptolomaico foram deixadas de lado. Foi no bojo desse movimento ou por ele influenciado que na Itália e fora dela surgiram, ao longo desse período, entre os sécs. XIV e XVI, figuras como Pic de La Mirandola, Petrarca, Machiavel, Ariosto, Shakespeare, Marlowe, Rabelais, Cervantes, Boccaccio e outros.



Nascido em Florença (1313-1375), filho natural de um mercador toscano e de uma francesa, Giovanni Boccaccio foi enviado a Nápoles para seguir a carreira mais promissora do momento, a de banqueiro. Manifestando, porém, logo na adolescência uma profunda aversão pela profissão do pai, voltou-se para o direito canônico da qual passou logo para as letras. 

Frequentando a refinada corte de Robert d´Anjou (fig. dir.), o jovem Boccaccio tomou gosto pela literatura, pondo-se a escrever obras poéticas, ballatas, cantos in terzine e in ottava rima, obras romanescas em que se misturavam mitos pagãos e lendas cristãs. Robert d`Anjou, rei de Nápoles, protetor de Florença, foi o chefe do partido guelfo na Itália. Acolheu e protegeu em sua corte Boccaccio e Petrarca, tornando-se este, desde 1350, além de amigo, uma espécie de conselheiro de Boccaccio.

A obra mais conhecida de Boccaccio é O Decamerão, como se sabe, um modelo de prosa que influenciou bastante o trabalho de muitos escritores, de modo especial Chaucer, Shakespeare, Margarida de Navarra e La Fontaine. Boccaccio foi biógrafo de Dante (fig. esq.) e, além de outras atividades, dedicou-se até o fim de sua vida, pelo muito que o impressionou, a fazer palestras sobre a obra do poeta, La Divina Commedia em especial. Quando Dante a publicou ela se chamava apenas La Commedia. Foi Boccaccio quem juntou o adjetivo “Divina” ao título.

Em 1360, Boccaccio deu à luz a sua “Genealogia Deorum Gentilium”, publicada sob o patrocínio de Hugo IV, rei de Chipre e de Jerusalém, revisada em 1374. Essa obra é uma espécie de enciclopédia na qual ele procurou estabelecer a complicada genealogia dos deuses da mitologia greco-romana, a partir de trabalhos mais antigos, como o Liber imaginum deorum (séc. XII) e de mitografias editadas pelo Vaticano.

A Genealogia de Boccaccio, escrita em latim, foi dividida em quinze livros, procurando ele dar uma interpretação alegórico-filosófica ao material apresentado. Embora reconheça a dificuldade da empreitada (grande número de versões sobre a mesma divindade e deuses com o mesmo nome), a obra saiu a contento, tornando-se uma fonte de consulta preciosa até o século XIX.

É nessa obra que se encontra uma curiosa história sobre a origem do cosmos e dos deuses, que contraria a versão de todos os escritores, poetas ou não, que trataram desse tema, Homero, Hesíodo, Apolodoro, Alcman, Ovídio e outros. Boccaccio dá a entender que aquilo que o Caos e Geia representam para a versão mitológica mais aceita, a de Hesíodo, (Teogonia), como origem do cosmos e dos deuses, deve ser atribuído a Demogorgon, na realidade para ele a verdadeira origem de tudo. 

Lembremos quanto a esta “heresia”, por exemplo, que Ovídio (Metamorfoses) não segue também a versão canônica hesiódica. Para ele o Caos preexiste, não sendo, porém, os deuses ou a natureza os agentes criadores, mas ordenadores, que separam os elementos confundidos, dando a cada corpo um lugar conveniente no espaço. 

Boécio (séc.V-VI dC), filósofo e político, foi outro que não seguiu a versão hesiódica. Identificou o Caos com Ofion, uma espécie de réptil ctônico, embora muitos mitógrafos considerassem este como posterior, dando-lhe por esposa Eurínome, filha do deus Oceano com a qual governou o mundo antes de Cronos e dos Titãs. Ofion (ophis, serpente) tinha a forma de uma serpente e representava a renovação, como um ser ctônico que era.


Embora a versão defendida por Boécio não possa ser considerada satisfatória por causa de certas razões “cronológicas”, não podemos esquecer que a serpente em quase todas as tradições aparece como o grande ancestral mítico dos deuses e da humanidade. No Egito, por exemplo, segundo a cosmogonia heliopolitana, o demiurgo Atum, representado pela serpente, por cusparadas (saliva) ou masturbação (esperma), criou o mundo, dando vida aos nove deuses primordiais (enéada). Atum significa “aquele que é completo”, “aquele que contém tudo”, a totalidade. Não é por acaso também que entre os mesopotâmicos a deusa cosmogônica, associada ao caos, tem o nome de Tiamat (fig. dir.) e é representada por uma serpente ou por um dragão aquático.

Divindade criadora do cosmos e pai dos deuses, Demogorgon, é mencionado também, certamente com base na obra de Boccaccio, por Leon Hebreo ou Judá Abravanel (Diálogos do Amor), por Ariosto (Orlando Furioso), por Jorge de Montemayor (Os Sete Livros de Diana) e Juan de Mena (Treiscientas). Daí para frente, o nome Demogorgon se ligou a uma tradição literária e iconográfica que chegou a John Milton e a Shelley (fig. dir.). 

Discutida a “existência” de Demogorgon, a questão ganhou alguma luz quando o professor Carlo Landi, de Palermo, em 1930, discorreu numa monografia de 118 páginas sobre as fontes de que Boccaccio se teria servido para colocá-lo no seu Tratado. A primeira seria a obra, desaparecida, de um tal de Theodontius, provavelmente um autor bizantino do séc. VIII. No mesmo artigo, se fala que o Demogorgon, em Theodontius, viria talvez da obra de Ferecides de Siro, filósofo pré-socrático. Outra fonte de Boccaccio seria um poema denominado Protocosmos, de Pronapide de Atenas, também bizantino. Uma terceira fonte estaria em texto (comentário) produzido por Lactancio Placido sobre a Tebaida, de Publius Papinius Statius, poeta mundano do séc. I dC, também autor de Achileida (inacabado). Além destas fontes é de se mencionar a possibilidade de Boccaccio ter se utilizado da obra de Ovídio (Metamorfoses) e recebido informações de seu professor de grego, Leontius Pilatus, que com ele conviveu por três anos, pois nesse período residiu em sua casa.


Todos estes nomes foram postos inicialmente em circulação no Renascimento por um esforço conjunto de intelectuais como Petrarca e Boccaccio, estes considerados como “pais” do Humanismo, outro nome do Renascimento. Petrarca, principalmente, como está comprovado, muito se esforçou para recuperar os conteúdos literários originais da antiguidade greco-latina perdidos no fundo de bibliotecas. Ele foi além além dos autores clássicos admitidos, partiu para a livre investigação da natureza física e humana, sem os limites impostos pela autoridade religiosa.

Demogorgon, “horrível por seu nome”, segundo Boccaccio, quer dizer para ele, em latim, “deus da terra”(demon, deus, e gorgon, terra). Ou, para outros, daimon (gênio) e georgos (o que trabalha a terra). É descrito como um ser primitivo, sem origem, pai dos deuses e do universo. Tinha um aspecto sujo, musgoso, disforme, esquálido, vivendo nas entranhas de sua filha, a Terra, no mais profundo do Averno, lago da Itália, na Campania, perto de Nápoles; os antigos habitantes da região, desde os tempos da Magna Grécia, sempre viram esse lago como uma das vias de acesso ao Inferno por causa dos pântanos que o cercavam e de suas emanações sulfurosas. Virgílio o descreveu na Eneida, falando inclusive do antro onde, perto dele, vivia a famosa Sibila de Cumes.

Segundo se depreende do Tratado, Demogorgon, terrível e antiga divindade, já estava esquecida pelos gregos no período arcaico. Essa divindade não foi mencionada por nenhum dos autores que na antiguidade abordaram, poeticamente ou não, a questão cosmogônica, Homero, Hesíodo, Apolodoro, (fig.dir.) Alcman, Ovídio e outros posteriormente. Boccaccio nos informa mais que Demogorgon tinha uma companheira, a Eternidade, deidade preexistente também aos grandes deuses, identificada às vezes como o Tempo.


Diante dos dados disponíveis sobre Demogorgon parece bastante aceitável aproximá-lo das correntes neoplatônicas renascentistas. Essas ideias faziam parte dos studia humaniora. A Itália do desde o Quatroccento havia redescoberto o neoplatonismo, voltando Platão (fig.esq.) a ser discutido. Este movimento ganhará a sua plena expressão com a divulgação, no séc. XV, a partir da Academia de Florença, por Marsilio Ficino, do pensamento do autor dos Diálogos.

O trabalho do prof. Landi, acima mencionado, ao que nos conste, é pioneiro na investigação desse "caso“ literário. Acena também, tomando um outro caminho, com a hipótese de Boccaccio ter se utilizado das ideias platônicas para dar “nascimento” a Demogorgon. A palavra seria a corruptela bizantina de uma outra, grega, muito conhecida, Demiurgo, personagem central na filosofia platônica. Quanto ao nome gorgon (diminutivo de gorgo) como se sabe, tanto significa em grego demônio, monstro (a Górgona), como algo terrível, espantoso, amedrontador.

No que se refere a Theodontius, Boccaccio nos revela que tomou conhecimento dos seus trabalhos sobre mitologia nos textos de Paolo de Perugia, destruídos por sua mulher depois de sua morte. Essa questão das fontes, não só com relação à sua Genealogia, mas com relação a outros textos seus, nunca ficou muito claramente definida. Numa certa altura ele nos revela, queixando-se, de que quando recolheu as informações de Theodontius muita coisa já estava ilegível. Mais ainda: a fonte de Boccaccio para a sua afirmação de que todos os deuses descendem de Demogorgon era um historiador grego, Philochorus, cuja obra se perdera. 

Muitos acreditam que Demogorgon não passou de uma invenção de Boccaccio, o que talvez seja até muito possível. Para nós, esta impressão se justifica não só se considerarmos o acima exposto como se tivermos em mente o grande sans façon com que ele sempre se aproximou da mitologia grega e de seus personagens, intervindo, mudando situações. Citemos, como exemplo, a informação que nos deixou sobre Ariadne (fig. esq.), a princesa cretense, que teria sido abandonada por Teseu em Naxos por ter se embriagado. Boccaccio não se preocupava muito com a “verdade histórica”, sempre sacrificada ou distorcida, quando conveniente, para justificar as suas afirmações. Aliás, nisto poderá muito bem ter seguido Platão que desfigurou muitos mitos gregos para que coubessem procustianamente no seu “leito”.

Uma observação final: o prof. Landi, se admitida a existência de Theodontius, suspeita de que ele teria se inspirado em Ferecides de Siro para definir a figura de Demogorgon como criador do universo. No nosso entender, há duas maneiras de nos aproximarmos dessa figura. Uma delas é a de o considerarmos como filósofo pré-socrático. 

Os dados de sua biografia são escassos. Sabe-se que nasceu em Siro, uma das ilhas Cíclades, e que era aleijado. Diógenes de Laércio, vulgarizador da filosofia grega, o considerou no seu akmé (esplendor) ao tempo da quinquagésima nona olimpíada (por volta de 540 aC). Atribui-se a Ferecides a autoria de um livro, Pentemychos (Nas Cinco Cavidades ou Nas Cinco Cavernas).

Segundo uma tradição muito divulgada, a merecer crédito, Pitágoras teria sido discípulo dele. Ao tomar conhecimento de que ele estava morrendo, Pitágoras (fig. dir.)teria ido da Itália para Delos para assisti-lo nos seus últimos momentos e cuidar do seu enterro, tudo confirmado por vários depoimentos (Pseudo-Alexandre, Diodoro da Sicília, Aristóxeno e Plotino). Cícero afirma (Tusculanas, prosa filosófica) que Ferecides foi o primeiro a afirmar que as almas dos homens eram eternas e a ensinar a doutrina da metempsicose. 

Os fragmentos e testemunhos que nos chegaram de Ferecides nos informam que para ele havia uma tríade primordial, formada por Zas, Cronos (fig.esq.) e Ctonia, três princípios universais (tas treis prôtas aschas). Cronos produziu por seu próprio sêmen o fogo, o sopro e a água, que foram repartidos por cinco recantos (pente mychois), formando-se uma outra descendência de vários deuses. Um outro papiro encontrado descreve as bodas sagradas de Zas (Zeus?) e Ctonia, estratificando-se o mundo. 

As especulações posteriores sobre o legado de Ferecides (Probo, Hérmias, Sexto Empírico, Aristóteles e outros) tornam muito difícil uma conciliação sobre tudo o que ele deixou. De todas as afirmações de Ferecides sobram três, que podem ser levadas em consideração: 1) as potências ou princípios por ele mencionados existem desde sempre; 2) o universo é produto de uma união, Zas e Ctonia; 3) Cronos (Tempo) produziu o fogo, o ar e a água. O número privilegiado de Ferecides é o cinco: enquanto Cronos produz o três (fogo, ar e água), Zas (Zeus?) e Ctonia produzem o dois e através dele geram Geia e o Oceano.Tudo o que temos de Ferecides, até prova em contrário, é muito pouco para se chegar à figura de Demogorgon. 

A segunda maneira de nos aproximarmos do filósofo de Siro é ficar longe dos que o adotaram como "ocultista, esotérico", uma mistura, como disse Aristóteles, de teologia, filosofia e mitologia. Nada mais.