segunda-feira, 23 de abril de 2012

DAS FLORES - II


O  ASFÓDELO




A presença de árvores, arbustos, flores e ervas nos mitos comprova, desde a mais remota antiguidade, a importância da ligação entre os seres humanos e o mundo vegetal. Os exemplos, inúmeros, podem ser colhidos em todas as tradições. Uma das mais belas ilustrações dessa ligação, por exemplo, pode ser constatada num baixo-relevo retirado de Farsala (a antiga Phtia homérica, capital do reino dos Mirmidões), hoje no Louvre, no qual Deméter e Perséfone trocam flores amorosamente, pondo-nos diante de temas como morte e renascimento.


DEMÉTER E PERSÉFONE

Os antigos poetas gregos, desde Homero, sempre entenderam que algumas flores tinham um claro sentido funerário, servindo de comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Neste cenário, destacava-se, mais que todas, o asfódelo. Qualquer grego que encontrasse essa flor não só no Keramikos (cemitério de Atenas, na antiguidade) , no Likavitos, o monte dos lobos (de onde se descortina a mais bela visão de Atenas) ou num jardim, num terreno baldio, ao longo de algum caminho, “sentia” ali, de alguma maneira, a presença da morte.


KERAMIKOS
LIKAVITOS

 Com raízes profundas, o ciclo vital dessa flor coincide com o da própria natureza, falando não só da morte, mas, também, de renascimento. Embora não citados no mito, dois tipos de asfódelo podem ser notados hoje, crescendo na paisagem grega naturalmente, dando dois tipos de flores Asphodeline lutea e Asphodeline luburnica, muito usadas na Europa central como flores ornamentais.


HASTULA REGIA
ASPHODELINE LUTEA
                                
Considerada a rainha das flores infernais, o asfódelo, perdendo a sua beleza no outono, dava à paisagem um aspecto meio sombrio, lembrando solidão e tristeza. Conta-nos a mitologia grega que as almas dos mortos que desciam ao Hades, conduzidas por Hermes na sua função de deus psicopompo, depois de atravessar o rio Aqueronte e julgadas, ficavam perambulando por um certo tempo antes de tomar o caminho para um destino final, eterno (Tártaro) ou provisório (Érebo ou Campos Elíseos), num prado coberto de asfódelos.


RIO AQUERONTE

Muitos que se referiram a esta flor aproximaram  etimologicamente seu nome da palavra latina cetro. A origem dessa ligação asfódelo-cetro, parece-me, está numa observação que Plínio, o grande naturalista romano, nos deixou, ao salientar que pela grande importância que a flor tem na mitologia do Hades ela só poderia ter sido criada por uma potência detentora de um cetro, divina. Hastula regia foi a expressão que usou. Em latim, hastula é palavra que designa o machado real, símbolo de poder, que alguns usam para designar também a flor.

O asfódelo faz parte da família das liliáceas. As flores desta família são geralmente bulbosas, contêm alcaloides, com rizomas ricos em fécula, cultivadas como ornamentais e usadas também para a alimentação e a elaboração de medicamentos. Há perto de vinte diferentes tipos de asfódelos, que se distribuem por toda a bacia do Mediterrâneo, sendo também encontradas da Ásia Menor à China.

HOMERO
Homero, na Odisseia, a chamou simplesmente de asfódelo do campo, ligando-a ao rapto de Kore por Hades, deus infernal. Ao aparecer nas margens de muitos rios gregos, foi utilizada poeticamente para representar as almas dos heróis mortos na guerra de Troia. As suas hastes nuas eram usadas para representar os exércitos que lutaram nas guerras e agora vagueavam sem destino às margens do rio Aqueronte, no Hades.

Aparecendo em tufos, com um odor desagradável, sombreada por traços violáceos, pintalgada, o asfódelo, pelo destino que lhe deram os humanos, reforçava essa associação infernal. As suas raízes, assadas, misturadas com figos, eram usadas na antiguidade como refeição servida quando do falecimento de alguém nos banquetes fúnebres. O costume, aliás, ainda é hoje notado em algumas regiões do interior do país.

Desde o período arcaico da história grega sabia-se da crença segundo a qual as almas dos mortos se alimentavam das raízes dos asfódelos, razão pela qual foram eles muito plantados nos cemitérios. Homero chamou de “desertos de asfódelos” a região habitada pelos mortos. Uma explicação para a proliferação dessas flores na paisagem grega era a de que as ovelhas e cabras costumavam evitá-las por causa de uma certa aspereza. Por isso, onde entrassem a vegetação original degenerava. Na vida do homem grego antigo, o asfódelo, apesar de sua beleza e do seu valor simbólico, era uma planta “ruim”. Florescendo entre abril e agosto, permanecia no outono ressequida, áspera, perdido todo o seu antigo esplendor. Na planície, porque crescia em desordem, os espaços por elas cobertos, depois de agosto, se reduziam a uma grande quantidade de hastes retorcidas, secas, a sugerir o mundo infernal. Entre a beleza e a desolação, lembravam, num primeiro momento, o esplendor de Kore que fora raptada na Sicília, num prado coberto de asphodelus albus, e, noutro, a terrível Senhora do Hades.

DIONISO


Segundo Teócrito (etimologicamente, o que julga as deusas), que viveu entre 315-250 aC, inspirador de Virgílio, o asfódelo tinha relação com o deus Dioniso, dos Mistérios de Elêusis. Nos antigos afrescos do santuário, apareciam coroados com a flor Deméter, Perséfone e o próprio Dioniso. Dentre outras referências míticas sobre  ela, há a que nos informa que no jardim que a deusa Hécate mantinha no Hades, para as suas ervas usadas na feitiçaria, os asfódelos ocupavam grande espaço.

                                                                                                                                                                                     
ASPHODELUS FISTULOSOS

Dentre seus vários tipos que aparecem na paisagem infernal, um dos mais citados é o asphodelus fistulosos, com pétalas elegantemente dispostas, estreitas, valorizadas por seu aspecto decorativo. Faziam parte da vegetação dos Campos Elíseos, lugar, como se sabe, onde as almas ficavam sem nenhum sofrimento aguardando o seu retorno à vida.

EPIMÊNIDES

Um dos mais curiosos registros sobre as virtudes da flor é o que nos dá a conhecer que Epimênides, considerado por muitos como um dos sete sábios gregos, usava-a juntamente com a malva para saciar a sua fome e a sua sede. Quem nos fala disso é Plutarco no seu Banquete dos Sete Sábios. Diógenes de Laércio, por outro lado, afirmava que por ter Epimênides só se alimentado com ervas e raízes teria vivido mais de 150 anos. Nascido em Cnossos, capital do reino de Creta, Epimênides vidente e poeta, é personagem cuja vida transcorre entre o mito e a história, sendo considerado por alguns como um dos fundadores do orfismo, juntamente com Onomácrito.


ILHA DOS MORTOS
Ainda no Hades, o asfódelo era encontrado também na ilha dos Mortos, que ficava no meio do Aqueronte, rio que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos, e que devia ser atravessado pelas almas (eidola). Todavia, aqueles, cuja morte não se revestira de todos os ritos necessários à sua passagem para o Outro Lado, ficavam na ilha, governada pela Medusa. Isto colocava essas almas numa espécie de limbo, um estado entre a vida e a morte do qual jamais conseguiriam sair.

Outra ilha, Ogígia, citada por Homero na Odisseia, onde vivia a ninfa Calipso, é também famosa pelos asfódelos nela encontrados, num bosque sagrado, em meio à sua vegetação. Calipso, nome que etimologicamente lembra ocultação, desaparecimento (kalyptein, cobrir, ocultar, esconder), era aquela que ocultava, que fazia desaparecer, que tirava do convívio humano, uma metáfora do Hades, mais exatamente dos Campos Elíseos.

Apaixonada por Ulisses, tentando fazê-lo esquecer Ítaca, a bela Calipso desejava retê-lo, dando-lhe em troca a imortalidade. Na tradição mítica, muitas ilhas, como se sabe, eram habitadas por

ULISSES E CALIPSO
mulheres que possuíam poderes temíveis, associados aos mistérios e à magia. Separadas do todo, as ilhas eram, ao mesmo tempo, promessa de vida paradisíaca e vida infernal.

Além do mais, Calipso era uma fiandeira, como as Moiras; passava os seus dias a fiar, em companhia de várias ninfas, que cantarolavam docemente. O canto, no mito, é um dos grandes artifícios da sedução. Lembre-seque as Sereias eram chamadas de as “crueis cantoras” porque causam a perdição de todos os navegadores. A vida e a morte estão intimamente ligadas à ideia de fiar, de tecer. Não é por acaso que falamos em tecidos do corpo. Vida tanto é tecido como trama.

Homero nos deixou claro que o maior bem dos heróis da Idade do Bronze era o prazer de sua timé, da consideração pública. Não lhe interessava uma consciência tranquila, mas, sim, acima de tudo, o reconhecimento e o respeito da opinião pública, baseada na sua arete, habilidade guerreira. No caso de Ulisses, algo mais, a sua grande astúcia e prudência, polymetis. Ficar em Ogígia, para Ulisses, era morrer, virar uma sombra, skia, como os mortos do Hades.
 
CALÍMACO
VICTOR   HUGO
Dentre os poetas gregos, além de Homero, atraídos pelo asfódelo, não podemos esquecer um dos melhores, Calímaco (315-240 aC), que, em Alexandria, pontificou na corte dos Ptolomeus. Mais perto de nós, dentre outros, no século XVIII, citemos André Chénier (filho de mãe grega); no séc. XIX, Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Leconte de Lisle e Gabriel Dannunzio; no séc. XX, o grego Georges Séféris (muito influenciado pelo simbolismo francês; Jorge Luiz Borges, William Carlos Williams e Allen Ginsberg.
Todos, de uma forma ou de outra, foram      atacados pela mesma doença que vitimou
VIRGINIA  WOOLF
GEORGES   SÉFÉRIS
Virginia Woolf a maior vítima e seu andrógino personagem Orlando, como ela o descreve na sua novela de mesmo nome, doença provocada, segundo o texto, “por um germe que se dizia nutrido do pólen do asfódelo, soprado da Grécia ou da Itália, e de natureza tão fatal que fazia tremer a mão pronta a ferir, nublava o olhar que procurava a presa e tolhia a língua que declarava amor. Era da fatal natureza dessa moléstia substituir a realidade por um fantasma, de modo que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons – prataria, lençaria, casas, criados, tapetes, leitos em profusão – com o simples abrir de um livro, ficava com toda essa vasta acumulação reduzida a nevoeiro (Orlando, trad. de Cecília Meireles).”
 


ROBERT ALTMAN
Por fim, não podemos esquecer de uma    das maiores vítimas do “germe do pólen do asfódelo”, o cineasta americano Robert Altman,
ASPHODEL
que com seu derradeiro filme, A Última Noite, obra-prima de sensibilidade e inteligência, nos deixou uma das melhores “leituras” do Hades grego e da famosa flor. A crítica cinematográfica oficial, no geral muito desinformada, não alcançou, digamos, o ângulo mítico do filme e o sentido do personagem Asphodel, o Anjo da Morte, representado por Virginia Madsen. A critíca americana viu no personagem apenas uma “dangerous woman”, no que foi seguida pela crítica brasileira. Dois meses depois de terminado o filme, Robert Altman faleceu (20/11/2006).