domingo, 11 de novembro de 2012

DOS CABELOS


O corpo de répteis e peixes é escamado, as penas são das aves e os mamíferos em geral e os seres humanos têm cabelos, cinco milhões de fios em média, quanto a estes últimos. Além de usados como símbolo social, eles protegem contra o Sol, raios ultravioletas e aliviam impactos. O cabelo pode ser definido como o conjunto de pelos que cresce nas partes superior e posterior da cabeça humana. A palavra tem origem latina, capillus, capilli, que tanto designava o cabelo humano como o fio de barba ou a cabeleira das plantas e árvores. Cabelo é gramaticalmente um coletivo, sendo a palavra empregada no singular ou no plural.

A grande capacidade que o ser humano tem de criar metáforas nos permite encontrar em nossa língua, por exemplo, referências ao cabelo na relojoaria (molas muito delgadas e espiraladas), na eletricidade (filamentos metálicos delgados). No mundo vegetal, cabelo-de-anjo e cabelo-de-negro são nomes de arbustos. Na arte culinária, dá-se o nome de cabelo-de-anjo à aletria, aquela massa de farinha de trigo, em fios muito delgados, usada em sopas ou em pratos doces, com leite, ovos e açúcar. 

Em Latim, a palavra se ligava também à linguagem augural (capillor, capilloris). No caso, o augúrio obtido pela interpretação da movimentação da ramagem (cabeleira) da árvore consagrada a Júpíter, o Zeus dos latinos, o carvalho. Poeticamente, os vates latinos davam preferência às palavras coma ou crinis para designar cabelo. Coma é cabelo crescido. A palavra veio do grego, kome, komes, designando também a crina de certos animais, como a juba do leão. Na Astronomia, coma é nuvem luminosa de gás e poeira, de aparência tênue e brumosa, que envolve o núcleo de um astro. A palavra é sobretudo aplicada para dar nome à cauda dos cometas, astros que têm uma extensa cauda, muitas vezes de milhões de quilômetros, chamada coma. Crina, aos poucos, passou a ser usada só para dar nome à capilaridade animal.

Os cabelos crescem em vários locais do corpo, cabeça, narinas, orelhas, artelhos, axilas etc. Há povos mais propensos à capilaridade que outros. Os povos mediterrâneos, por exemplo, são muito peludos. Os cabelos, como se sabe, podem ser usados para a classificação das raças humanas. A variação é grande, conforme os grupos étnicos. Hoje, temos seis grandes categorias para a classificação através dos cabelos: liso, ondulado, crespo, frisado ou encorpado, lanudo e encarapinhado. Se formos um pouco além, neste tópico, encontramos cabelo agastado, expressão muito usada no passado para designar o cabelo pixaim, carapinha. Já cabelo bom é o fácil de pentear. 

Na linguagem popular, ter cabelos no peito é sinal de valentia. Os franceses, neste caso, usam a expressão: brave à trois poils. Temperamento e cabelos se associam para nós em expressões como: cabelo nas ventas, que serve para designar pessoa muito enérgica, ativa, irritadiça, valente, mal-humorada. Não fazer bom cabelo é não corresponder ao esperado ou ao exigido, desagradar. Cabelo lambido é cabelo muito fino, liso, de penteado que não segura. Cabelo de fuá é cabelo rebelde. No mais, usamos sem faltar um fio de cabelo para dizer que nada falta ou sem tocar num fio de cabelo para indicar que não são admitidas quaisquer interferências.




No Brasil colonial, os cabelos eram considerados e tratados sob a ótica portuguesa. O primeiro corte de cabelo dos meninos e das meninas devia ser feito por um profissional do sexo masculino. Cachinhos cortados eram dados aos familiares ou guardados em envelopes ou caixinhas como lembrança. Nunca se devia guardar cabelo de quem já morreu, dava azar. Comuns também as promessas de doação dos cabelos aos santos; as chamadas “casas de milagres”, onde se juntavam ex-votos, guardaram muitas cabeleiras. Até início do séc. XX, mesmo nas grandes capitais brasileiras, as mulheres não se atreviam a usar os cabelos soltos. De um modo geral, os cabelos femininos se mantinham presos, puxados para trás, em cocó ou totó (coques). Este penteado encontra o seu modelo provavelmente no tutulus das mulheres romanas, um penteado alto na parte posterior da cabeça.


Os penteados altos, no nordeste brasileiro, conforme revela Câmara Cascudo, em séculos passados, sempre tiveram que se servir de um vasto arsenal de grampos, fitas, pentes e marrafas. É curiosa a origem deste último nome. Em fins do séc. XVIII, apresentou-se em Lisboa um famoso dançarino italiano de nome Marraffi. Seus cabelos eram longos e muito complicados. Logo se cunhou a palavra marrafa tanto para designar cada uma das partes do cabelo separadas por uma risca central ou por madeixas encaracoladas caídas sobre a testa. Para sustentar tudo isso e outras construções capilares inventou-se um pente que passou a ser usado pelas mulheres, que imitavam os penteados do artista italiano. Com o nome de marrafa esse pente veio para o Brasil. Eram feitos de marfim, chifre, casco de tartaruga etc. Era costume então usar grandes marrafas espetadas na parte posterior da cabeça para segurar os altos penteados. Essas marrafas se tornaram famosas porque, nas missas, impediam a visão de quem estava atrás, mesmo na elevação da hóstia ou do cálice. A grande verve que os brasileiros demonstram quando se trata de pôr apelidos logo as denominou de “Tapa-Cristo”.   

O cabelo é marca exterior de significação muito importante, sendo objeto de muita atenção e de cuidados particulares em muitas tradições e culturas. Os ornamentos que se colocarem nos cabelos devem se adaptar não só às ocasiões em que usados como às aptidões e às funções de quem os ostenta.  Os gregos antigos, por exemplo, cortavam os seus cabelos sobre o túmulo daqueles que choravam em sinal de consagração do vivo à memória do morto. De modo semelhante, no momento de entrar na comunidade humana (cidadania), a cabeleira era sacrificada no altar da infância. Na Odisseia, no canto IV, encontramos: ”A última homenagem que podemos render aos desgraçados mortos é despojarmo-nos de nossa cabeleira sobre seus túmulos”.


                                                                



O cabelo é portador da força e da energia do corpo, já que nasce na cabeça, a sede do poder espiritual. Em contos populares, o cabelo solto indica um espírito livre ou devassidão.  Em certos países do oriente (China) os cabelos desfeitos ou soltos podem indicar luto e também submissão. Certas danças rituais exigiam cabelos soltos. As bruxas, por essa razão, também soltavam seus cabelos, uma indicação de renúncia às limitações e às convenções individuais, da vida comum, cotidiana, ou social. Muitas divindades terríveis da Mitologia grega usam cabelos soltos, a grenha desfeita, emaranhada, enredada. As Górgonas e as Harpias são exemplos. Na Índia, o visual de Shiva se caracteriza muitas vezes pelo cabelo solto. Cabelos desfeitos na Índia, aliás, são atributo de divindades infernais; muitas têm inclusive serpentes como cabelos.

Cabelos e serpentes encontram uma estreita relação no mito grego das Górgonas, da Medusa em especial, monstro infernal que petrificava quem com ela trocasse olhares. Seu visual era terrível, chamando mais a atenção as serpentes que carregava na cabeça à guisa de cabelos. Perseu, grande herói, muito auxiliado pelos deuses, conseguiu matá-la, usando para tanto um escudo polido que lhe dera a deusa Palas Athena.

No século XX, ao final dos de 1970, o visual da Medusa (principalmente com relação aos cabelos desgrenhados) foi adotado como símbolo da libertação da mulher, uma bandeira feminista, que representava todo o seu inconformismo e ira contra a dominação masculina. Como pudemos constatar, em cerca de trinta anos, o simbolismo da Medusa envelheceu bastante, chegando hoje à beira do ridículo, se considerarmos que grande parte do movimento feminino de libertação nos dias atuais (2012) está mais para deusas como Palas Athena e Ártemis, que, como se sabe, têm um forte componente masculino na sua personalidade.

 A cabeleira em muitas tradições sempre foi considerada uma "arma" na medida em que se mostra ou se esconde, presa ou solta, indicando, no primeiro caso, recato, reserva, no segundo, disponibilidade. Muitas ideias de provocação sensual se ligavam ao cabelo solto, podendo significar liberdade de costumes. Maria Madalena sempre apareceu com os seus cabelos longos e soltos, o que pode, no caso, ser interpretado como um abandono a Deus, a um Jesus carnal, melhor dizendo. Por isso costumes religiosos da época sempre consideraram os cabelos femininos soltos como uma provocação sexual. O Cristianismo, nos seus primeiros tempos, pedia às mulheres que ao entrar nas igrejas cobrissem suas cabeças, como sinal de respeito a Deus. As freiras não só o cortavam (será que ainda o fazem?) como o escondiam, deixando-o curto para simbolizar a renúncia à vida humana.


 No Velho Testamento, temos o caso de Sansão, líder israelita do período dos Juízes (séc. XII-XI aC). Era um nazirita, dotado de força sobre-humana, mas torturado por intensas paixões sexuais. Seria o libertador dos judeus da opressão dos filisteus. Dalila, descobrindo que seu poder residia nos seus longos cabelos, os cortou enquanto ele dormia e os entregou a seus inimigos. Ela o tornou fraco e vulnerável como qualquer outro homem.

DULCINEA DEL TOBOSO
Por simbolizar as forças instintivas, o cabelo também foi sempre considerado como um poderoso elemento de sedução e de atração sexual na mulher. Sancho Panza descreveu nestes termos a impressão que lhe causara a formosa Dulcinea del Toboso: “Los cabellos sueltos por las espaldas, que son otros tantos rayos de sol que andam jugando com el viento.” Já Camões, no Filodemo, fala de uma dama que nunca espalhara seus cabelos ao vento para nos revelar o quão honrada era. Daí, o sacrifício dos cabelos, voluntariamente assumido, representar uma espécie de castração, de sublimação dos instintos, de renúncia aos valores mundanos. Em alguns países do ocidente, mesmo nos tempos modernos, a cabeleira foi um símbolo de liberdade. Por isso, raspava-se a cabeleira dos escravos e dos prisioneiros. Uma das primeiras providências tomadas pelos carcereiros, ao receber os criminosos condenados nas prisões, consistia exatamente no corte de seus cabelos. Ao mesmo tempo, uma medida tanto profiláctica como socialmente restritiva. É certamente por esta razão que, quando da Liberação francesa em 1945, os cabelos das mulheres que haviam mantido relações sexuais com membros das forças alemãs de ocupação tiveram as suas cabeças raspadas publicamente (ver o filme Hiroshima, mon amour). A chamada tosquia penal, aliás, é antiga. Chamava-se descalvação (descobrir a coroa dos montes, despindo o topo). A expressão “mostrar a calva” tinha o sentido de expor defeitos, crimes. A descalvação era aplicada nos crimes de felonia (deslealdade, traição, perfídia), falsidade, covardia. Casos, por exemplo, de sentinelas dormindo, de cavaleiro que perdeu seu cavalo etc.

Entre os antigos judeus era proibido raspar a barba com lâmina ou cortar o cabelo nos lados da cabeça, junto das orelhas. Para algumas tradições judaicas, o homem sem barba é como um eunuco. Em outras, já se defende que a aparência exterior (com ou sem barba) não determina a religiosidade de ninguém. Entre os islâmicos, o cabelo é o veículo de forças maléficas ou benéficas. É uma espécie de mediação entre o visível e o invisível. Os cabelos devem ser desatados toda vez que o crente desconfia que há algo de mal nele ou à sua volta. Como regra geral, o primeiro corte de cabelo deve ser feito com muita precaução. Segundo o Corão, o pudor recomenda que as mulheres cubram a sua cabeleira. Assim como as unhas, os cabelos podem fazer parte de rituais de feitiçaria (magia simpática), principalmente na feitiçaria amorosa. Entre os islâmicos, é comum a manutenção de um tufo de cabelos, pois por ele o crente poderia ser puxado para cima, para o paraíso. Há registros de que entre os judeus ortodoxos uma mulher jovem deve cortar os cabelos ao casar para evitar que o marido a ache muito atraente e queira fazer sexo com ela por desejo e não para a procriação.


Muitos cabalistas defendem a tese que Deus usa barba e que o homem, por isso, deveria mantê-la sempre grande, mas aparada, praticando assim a imitatio Dei. Embora a ortodoxia judaica defenda o uso da barba, um ditado ídche diz que pode haver um judeu sem barba e uma barba sem judeu. Ou seja, a aparência externa não é critério para se determinar a qualidade da religiosidade de quem quer que seja. A proibição de arredondar as laterais da cabeça através do corte do cabelo, fez com que os judeus adotassem o hábito de deixar crescer longos cachos laterais chamados peot, costume usado especialmente pelos judeus que aceitam mais a influência dos textos cabalísticos.

Sabe-se que nos antigos tempos bíblicos, entre os judeus, dava-se o nome de nazirita à pessoa que era abstêmia, não cortava os cabelos e não mantinha, sob qualquer hipótese, contactos com tudo o que significasse morte. O voto nazirita podia ser feito para uma vida inteira, como no caso de Sansão. Hoje em dia, ao que parece, só os falashas, judeus negros da Etiópia, adotam os votos naziritas. Um dos grandes destes votos naziritas foi Simão, chamado de o Justo, antigo líder fariseu, que se encontrou com Alexandre, o Grande, e o impressionou bastante. Consta que em seu reinado sacerdotal ocorreram vários milagres.  

Uma das figuras mais interessantes da crônica judaica, quando se fala de cabelo e barba, é Absalão (etimologicamente, pai da paz). Viveu por volta do séc. X aC). Era filho do rei David e de Maakah. Mandou matar seu meio-irmão Amon, para puni-lo por ter atacado sexualmente sua irmã. Revoltou-se depois contra o pai. A Bíblia o mostra vencido. Ele tentara escapar de seus perseguidores, mas ficou preso pelos cabelos nos galhos de uma árvore; suspenso, viu abrir-se abaixo, sob seus pés, o abismo infernal do Guehinom. Tudo em vão, foi capturado e morto. Absalão, ao que parece, foi morto tanto porque não honrou seu pai como porque cometeu o pecado do orgulho. Diz-se que herdara os longos cabelos de Adão e os mantinha, como nazirita, não por obediência ao voto, mas por orgulho.
   
Apossar-se do cabelo de alguém é adquirir um grande poder sobre essa pessoa, especialmente para fins amorosos. Antigas tradições nos dão fórmulas como esta: “para se fazer amar, basta formar uma pequena trança de cabelos (cinco fios do cabelo do amante e três fios do da amada) e jogá-la ao fogo, pedindo que o Espírito Santo consagre  a união de modo a que os respectivos rins e corações de ambos se juntem. Ao final, agradecer a Deus. Como material para a bruxaria ou a feitiçaria, sempre prevaleceu para o cabelo a lei da contiguidade simpática. Feitiçaria feita com cabelos da cabeça enlouquece ou mata. Os das partes pudendas do homem anulam a virilidade.


Os cabelos compridos podem ser um símbolo de santidade carismática e de força física (Sansão), como no caso da comunidade Khalsa (Sikhs), da Índia. Entre os gauleses e outros grupos celtas, o cabelo comprido era marca de poder real e de independência. O cabelo pode também se revelar como sinal de identificação grupal, como no Japão antigo, onde o penteado do samurai era um privilégio que o consagrava. A perda do apanhado de cabelo (coque) significava para o samurai talvez a pior desonra a que poderia acontecer a alguém. Como sabemos, no Japão, as várias formas de penteado ligam-se estritamente ao simbolismo dos pentes, que mantêm as cabeleiras, e que  indicam, além do vigor do homem, a sua posição social e mesmo espiritual, sendo um elemento de suporte de sua personalidade.

No Cristianismo, o cabelo se associou à virilidade e também a níveis inferiores de existência (a hirsutez em certas correntes artísticas do Cristianismo é diabólica). Os eremitas cristãos, embora tradicionalmente deixassem cabelos e barbas crescidos, muitos, os das ordens do norte da África, seguiam o costume sacerdotal egípcio de raspar a cabeça, como um símbolo de submissão a Deus e de renúncia ao mundo material.  A submissão era também o simbolismo original do rabo-de-cavalo chinês, aproximando-se de uma castração o corte dos cabelos. Entre os gregos antigos, tirar uma madeixa de cabelo a um defunto libertava sua alma no Além. Nas guerras dos índios americanos, temos o famoso escalpo, couro cabeludo arrancado do crânio, troféu de guerra.


Em que pesem as restrições quanto aos cabelos compridos, não podemos esquecer que uma longa cabeleira também podia significar vida recatada. Nada das ostentações do mundo. Neste sentido, João Batista era muito famoso por sua cabeleira. Precursor e arauto de Cristo, foi decapitado a pedido de Salomé, princesa judia, como prêmio. Tendo dançado diante de Herodes Antipas, seu tio, e aconselhada pela mãe, ela pediu, como recompensa, que a cabeça do profeta lhe fosse entregue numa salva de prata. João Batista, como se sabe, foi levado à prisão por haver censurado Herodes Antipas quando ele tomou Herodíades, mulher de seu meio-irmão, como sua mulher.

 A cor dos cabelos também chegou a participar de um simbolismo próprio: cabelos ruivos, afogueados, podiam indicar em algumas culturas associações demoníacas; o cabelo loiro, o poder solar ou régio; o cabelo preto, autoridade terrestre. A fisiognomonia ou fisiognomia (antiga arte indiana e chinesas de conhecer o caráter de uma pessoa pelas suas feições) defende, por exemplo, ideias de que pela elasticidade dos cabelos é possível se falar do caráter de uma pessoa. Vindo para o ocidente, esta arte caiu nas mãos de correntes “científicas” lombrosianas, degenerando-se.

Os penteados e cortes de cabelo sempre tiveram muita importância na história da humanidade. Eram muito conhecidos certos tipos de toucados femininos chamados trunfas. O nome se aplicava a turbantes compostos de faixas ou contas enroladas na cabeça como a touca mourisca de várias nações orientais e usadas por antigos sacerdotes. Às vezes, trunfa designava também porção de cabelos apanhados e presos no alto da cabeça. Dava-se o nome ainda à cabeleira desgrenhada, desalinhada, sinônimo de guedelhas, grenha e gaforinha. Da esfera capilar, o nome trunfa passou a designar tudo o que era atrevido, arrogante. Quando queríamos conter alguém, pedindo-lhe mais educação, diziamos-lhe que baixasse a trunfa. Neste item, é de se mencionar os rastafáris (seita religiosa jamaicana de origem africana que crê no retorno dos negros de todo o mundo à África). Eles usam o cabelo com um penteado especial (cachos como cabos de alta tensão e de ligação com o Paraíso). Os rastafáris acreditavam (acreditam) que Hailé Selassie (1892-1975), imperador da Etiópia, era um novo messias.

O cabelo pode ser símbolo visível do arrojo pessoal, do destemor. Neste sentido, eram comuns os cachos usados por valentões, como, por exemplo, os cangaceiros brasileiros, que orgulhosamente os ostentavam. Famoso foi o corte de cabelo feminino à la garçonne, que, por volta de 1920, causou furor, pois era muito semelhante ao corte masculino da época: orelhas descobertas, pequena costeleta e nuca desfiada. Marcou época (depois da primeira guerra mundial) o romance Victor Marguerite, que fixou esse tipo feminino, depois levado para o cinema por Jean de Limur, em 1936.


LOUISE BROOKS

Amor e cabelos sempre caminharam juntos. Uma das anotações mais escandalosas sobre esta relação é a de que os cavaleiros medievais, a serviço do rei da Igreja, costumavam carregar consigo, junto do peito, num escapulário, como um precioso talismã, um cacho dos cabelos pubianos de suas amadas. Um pouco mais perto de nós, não esqueçamos que George Sand, pseudônimo de Aurore Dupin, no séc. XIX, ofereceu a sua cabeleira ao poeta Alfred de Musset, como símbolo de dedicação sexual. No Romance de Tristão e Isolda, o primeiro diz à segunda que certo dia duas andorinhas voaram até Tintagel para levar fios de seus cabelos. Disse mais: acreditou que eles anunciavam a paz e o amor. Por isso, continuou, atravessou os mares, enfrentou um monstro e seu veneno. Pediu que a jovem notasse que entre os fios de ouro de seu casaco havia fios de seu cabelo ali costurados; a cor dos fios de ouro se estragara, mas não o dourado dos fios de seu cabelo. A jovem tomou o casaco de Tristão e vendo nele os fios de seu cabelo, depois de longo silêncio, beijou o jovem em sinal de paz.


                                                


Na literatura, o cabelo aparece em muitas histórias. Uma das mais interessantes é um conto de O. Henry, escritor norte-americano que viveu entre o fim do séc.XIX e o XX. Intitulada, The Gift of the Magi, a história foi parar no cinema com quatro outras, do mesmo autor, fazendo parte do filme O.Henry´s Full House, 1.952. Quem dirigiu este episódio foi Henry King e nele trabalharam Jeanne Crain e Farley Granger. Os dois amantes trocam presentes nas festas de fim de ano. Ela, para comprar o presente para ele, vendeu os seus maravilhosos cabelos. Ele, por sua vez, sem nada saber, deu-lhe de presente uma belíssima marrafa, quase uma joia, para que seus cabelos tivessem maior realce.

As perucas em Roma gozaram de muita fama. As mulheres, usando-as, satisfaziam um grande desejo, o de se tornarem loiras. No mais, em várias culturas antigas e até os tempos modernos, o uso da peruca, conforme a época e o lugar ,foi justificado como sinônimo de elegância, como proteção contra o frio ou por motivos religiosos. Por exemplo, o uso de perucas por mulheres judias é ainda explicado pela sua ortodoxia religiosa como um sinal de recato, uma afirmação de que ela não está disponível, uma barreira entre ela e os que possam cobiçá-la. A peruca entrou em desuso a partir do final do séc. XVIII, depois da Revolução Francesa. A importante profissão de peruqueiro, que teve seu auge no séc. XVII, na França principalmente, desapareceu hoje. Ela sobrevive ridiculamente em alguns tribunais ingleses, não constando para nós que tenha sido abolido o seu uso.

Uma antiga tradição nos fala que os carecas são mais sensuais que os cabeludos, por causa do alto teor de testosterona de seu sangue. Por isso, não há castrados nem eunucos carecas. Como as mulheres possuem geralmente a carne mais macia que os homens, elas acentuam isso se depilando. Na linguagem amorosa, só podem entrar em nossos cabelos pessoas muito especiais e escolhidas. Cabelos soltos, “destravados”, por isso, nos manuais amorosos, só no quarto. Talvez seja por essa razão que as mulheres “sérias e virtuosas” ainda usem sprays para manter seus endurecidos penteados sempre armados, sem um fio de cabelo fora do lugar.

Uma ligação do cabelo às ervas é feita em muitas tradições simbólicas, considerando-se as ervas (vegetação) como a cabeleira da terra. Nos povos de forte tradição agrária, a imagem tem analogia com as plantas utilizadas como alimento, razão pela qual destacamos o cuidado que em tais sociedades primitivas o cabelo merece. A ideia do crescimento das ervas é associada a uma ascensão. O céu derrama as águas, as chuvas fecundantes, fazendo com que as ervas se estendam e se elevem para ele.  

Uma tradição importante é a que liga os cabelos e as unhas ao poder vital e à força do homem, neles se concentrando as virtudes e propriedades do ser. Para muitos, essa tradição está na base do culto das relíquias de santos e o costume de conservar, como lembrança, uma mecha de cabelos que tenha pertencido a um ente amado ou os primeiros dentes de leite de uma criança.

Antigas tradições nos dizem que cortar os cabelos entre a Lua nova e o Plenilúnio reforça a sua vitalidade. Mais, segundo essa tradição, o melhor momento para o corte estava no terceiro dia que antecedia a Lua cheia. Cortes entre esta Lua e o Novilúnio enfraqueciam os cabelos. Uma das melhores datas para se cortar o cabelo (conselho aplicável sobretudo às mulheres), segundo tradições do interior da França, nos diz que uma cabeleira se manterá abundante e bela se a cortamos um ou dois centímetros por ano, sempre na véspera do dia de São João.
 
      A mitologia é muito rica em histórias sobre cabelos. Uma delas, que se situa entre a história e a mitologia, nos diz que a mulher de Ptolomeu Evergeta III, de nome Berenice (etimologicamente, a portadora da vitória), ele da família greco-macedônica dos Ptolomeus que governou o Egito, sacrificou seus cabelos a Afrodite para que seu marido saísse vitorioso quando de uma expedição à Síria. Levados ao templo da deusa, os cabelos desapareceram. Um astrônomo, Conon de Samos, afirmava que eles haviam sido transformados em constelação e lhes deu o nome de “Coma Berenice” (17º de Virgem a 12º de Libra). O poeta Calímaco (315-240 aC) escreveu, em grego, um poema sobre a história de Berenice, mais tarde (alguns séculos depois) adaptado para o latim por Catulo.


Uma observação final: pena que não tenhamos, como os animais mamíferos, aqueles pelos rijos que crescem especialmente à volta do focinho, as chamadas vibrissas, tão úteis para ajudá-los a se locomover no escuro, como no caso dos gatos. No ser humano, as vibrissas se transformaram em pelos do nariz, úteis, sem dúvida, mas muito prosaicas.