segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - MERCÚRIO (6)


  
          Entre os celtas da Irlanda e do noroeste da Grã-Bretanha, os                chamados gaélicos, Ogma, também denominado Cermait e 
                 apelidado de “boca de mel”, era o deus da literatura e da
ALFABETO OGÂMICO

eloquência. Era casado com Etan, filha de Diancechet, deus da medicina, com a qual teve vários filhos. Ogma, o que tinha o conhecimento do carvalho, árvore sagrada dos celtas, foi o inventor do famoso alfabeto ogâmico. Este alfabeto espalhou-se pela Escócia, ilha de Man, Gales do Sul, Devonshire e muitos outros lugares. Ogma era também o mais hábil dos deuses do panteão celta-irlandês em todos os tipos de luta.

OGMIOS
Luciano de Samósata deixou entre seus escritos um pequeno texto, Ogmios, sobre o Mercúrio celta. Ele narra que viu o deus sob os traços de um velho encarquilhado e quase calvo, com uma pele de leão nas costas e carregando uma clava, o que o aproximava, nesta imagem, do Hércules grego. Todavia, para Luciano, esse visual seria uma espécie de despiste. Ogmios era representado com umas correntes que, saindo de sua boca, se prendiam às orelhas e corações dos que o escutavam, todos presos a ele. A eloquência, argute loqui na expressão latina, era uma das virtudes mais prezadas pelos celtas. 

TEUTATES
Segundo Júlio Cesar, os celtas, ao adotar os deuses romanos, os punham na seguinte ordem: Mercúrio,Apolo, Júpiter, Marte e Minerva.  Assim descrito, este Ogmios era um herói civilizador, além de deus da eloquência e dos discursos persuasivos. Era uma espécie de avatar do Mercúrio-Teutates. Este último era  uma divindade tribal, que tanto aparecia, conforme as circunstâncias, como deus da guerra como protetor (eliminador) dos seus efeitos. Ao que parece, todas as tribos possuíam o seu Teutates. Em tempos muito remotos a ele se sacrificavam vítimas, afogando-as. Os romanos o associavam também ao seu Marte.  

LUG
 Uma outra divindade do mundo celta, que apresenta traços muito semelhantes aos de Hermes-Mercúrio é Lug, conhecido como mestre de todas as artes. Seria o deus Ogmios de alguns territórios celtas continentais. É de seu nome que deriva o antigo nome de cidades da Gália (França), Lugdunum (hoje Lyon) e Loudun, por exemplo. Lug se mostrava como uma presença omni, sendo encontrados vestígios seus na península ibérica, na Suíça, em toda a França etc. Lug, nas suas histórias, representa muitos papéis, sendo inspiração para o sacerdote druida, para os poetas, para os magos, para os médicos, para os militares e para os viajantes.


Uma curiosidade: em 1634, em Loudun, o padre Urbain Grandier foi queimado vivo em Loudun sob a acusação de manter um pacto
OS DEMÔNIOS DE LOUDUN
com o Diabo. No início dos anos 1950, o escritor inglês Aldous Huxley estudou o caso, publicando o resultado de sua pesquisa num estudo histórico chamado Os Demônios de Loudun (The Devils of Loudun). Por esse estudo, ficamos sabendo que foi a superiora do convento das Ursulinas, na cidade, conhecida como Madre Joana dos Anjos, que acusou o padre Grandier, da Igreja de São Pedro, de praticar feitiçaria, levando o Diabo para dentro do
convento, tudo em meio a muitos  lances de sexo e de intriga política. Em 1960, o diretor polonês Jerzy Kawalerowicz realizou um filme (obra-prima!) sobre essa história. O compositor Krzystof Penderecki, em 1969, transformou a história num espetáculo operístico de nível excepcional com o título The Devils of Loudun (há um DVD dessa ópera editado pela Arthaus Musik). Em 1970, o diretor inglês Ken Russel retomou a história para realizar um filme, The Devils, que causou muita controvérsia.


Quando os romanos invadiram a Gália, um panteão antropomorfo se levantou ao lado das divindades locais. A principal tríade gaulesa dessa época era constituida por Esus, Teutates e Taranis. O primeiro (Esus) era considerado, sobretudo pelas tribos do norte da
TARANIS
Gália, a dos Parisi, como a causa primeira, a origem de todas as demais divindades. Era um deus soberano, matador, guerreiro, inspirador de combates. Os inimigos capturados eram sacrificados a ele. Taranis era o deus do trovão e das tempestades, dos relâmpagos e dos raios, no que lembrava muito o Júpiter romano. Teutates, melhor definido, era o deus da tribo, uma espécie de pai, conforme seu nome sugere (touta quer dizer povo). Era, com justiça, o deus nacional dos gauleses. 


Ao lado das divindades acima, Júlio Cesar, nos seus Comentários (De Bello Gallico), nos deixou uma descrição bastante detalhada do Mercúrio dos celtas, para ele, como se disse, dentre as divindades
mais veneradas, a mais importante. Este Mercúrio celta era venerado como o inventor de todas as artes úteis, o protetor das rotas e dos viajantes. Era considerado todo-poderoso nos negócios e nas questões de dinheiro. Seu campo de ação era, contudo, bem mais vasto que o do Mercúrio romano. Não era somente o protetor dos viajantes e dos mercadores, mas, acima de tudo, protegia todas as artes úteis, adquirindo status de deus civilizador por excelência. 

Seu culto era muito difundido. A sua lembrança se perpetuou através de nomes de lugares como Mercurey, Mercueil, Mercoeur, Mirecourt, Montmercre (depois Montmartre). Muitas estátuas foram levantadas em sua honra. Tem-se notícia de uma, de bronze, de quarenta metros de altura, obra do escultou Zenodoro, que lhe custou dois anos de trabalho; encontrava-se num vasto templo nas alturas do Puy de Dôme, no centro da França, região do Auvergne. Uma outra estátua dessa divindade, toda em prata maciça, foi descoberta, enterrada, no solo do jardim de Luxemburgo, em Paris. 


SINAIS CELTAS

Deus da prosperidade financeira, assimilado ao Hermes-Mercúrio greco-romano, o Mercúrio celta era também, parcialmente, uma divindade ligada aos feitos guerreiros. A este título era chamado de Albiorix (rei do mundo) e de Regisamos (o muito real). No geral, era representado sob a aparência de um jovem imberbe, comumente em pé, com os tornozelos alados. Raramente sentado, nu ou vestido com a clâmide, usava sempre o pétaso e carregava o caduceu. Os animais que o simbolizam são o galo e o bode. Às vezes, ao seu lado, uma serpente cornuda. O galo e o bode associados ao Mercúrio celta lembram sempre fertilidade. O galo, além de ave fálica, guerreira, solar, é um símbolo da vigilância (alektryor,  em grego, o que não deita, sempre vigilante). Quanto à serpente cornuda, ela indica o poder de Mercúrio como a divindade que faz a ligação entre o mundo inferior (serpente) e o mundo superior, espiritual (chifre). 
  
O Mercúrio celta tinha como esposa a Rosmerta, deusa da fertilidade e da abundância, sempre representada com uma
ROSMERTA E MERCÚRIO
cornucópia ao seu lado. Nesta representação, Rosmerta tem comumente ao seu lado Mercúrio, que carrega sempre nas mãos uma patera. Várias inscrições sobre Rosmerta foram encontradas na França, na Alemanha, em Luxemburgo, na Bélgica e em outros lugares da Europa central. Rosmerta vem de smert (provedora, curadora), ro (grande, elevada), significando, pois, a grande provedora.

A mitologia dos povos do norte europeu compreende  principalmente a das tradições da península escandinava e da Islândia. Um desdobramento deste tronco é a mitologia germânica. Não há grandes diferenças entre ambas, já que um fundo comum as informa. O modelo hermesiano, muito desenvolvido em outras tradições, como vimos, não teve realce nos povos escandinavos e germânicos.


O panteão escandinavo-germânico nunca teve um número definido
RAGNARÖK (IGREJA DE URNES, SÉC XI)
de divindades. Esse número aumentava ou diminuía conforme os interesses tribais. Certas divindades, poderosas durante um tempo, perdiam o seu status noutro. Outras cresciam em importância e prestígio para logo serem esquecidas. O que caracteriza sobretudo a mitologia dos povos do norte é que seus deuses sempre foram concebidos como uma espécie de seres humanos superiores sujeitos às vicissitudes do destino e à morte. Mais ainda: toda a criação, os céus e a terra, os deuses, os monstros, os gigantes e os seres humanos, todos, ficam sujeitos à destruição (Ragnarök), admitindo-se o renascimento cíclico dos deuses e de uma nova raça em condições mais evoluídas.


As referências ao Hermes escandinavo aparecem nos Edda, nome de antigos textos poéticos que nos descrevem a mitologia dos povos do norte, do séc. XII, islandeses, descobertos em 1643. Sob o nome de Hermod, o Hermes escandinavo é descrito como filho mais novo de Odin e de Frigga, grandes divindades, chamadas Ases, de Asgard, o reino dos deuses, originalmente conhecido como Godheim, ou repouso dos deuses. 

Balder, também filho de Odin e de Frigga, deusa da fecuncidade e do amor, o mais sábio dos Ases, deus solar, o favorito de todos, o
LOKI
bem-amado, belíssimo, teve um dia maus pressentimentos e revelou aos seus pares as suas inquietações. Embora protegido por todos, tornado invulnerável, Balder, por artes do diabólico Loki, foi atingido mortalmente por um galho de agárico (visco), chamado de Misteltein, atirado por Hod, seu irmão, que era cego. Frigga, que havia obtido do mundo natural a promessa de que nada atingiria Balder, esquecera-se de “falar” com o agárico sobre tal promessa. Falara com o reino humano, com o reino
AGÁRICO  (COLHEITA)
animal, com o reino mineral e com o reino vegetal, obtendo de todos a promessa de que nada atingiria Balder, mas esquecera-se do visco. Frigga implorara aos quatro elementos, ao fogo, às águas, aos metais, às doenças e todos haviam prometido que seu filho seria preservado. Do esquecimento de Frigga se valeu Loki para orientar o galho de agárico atirado por Hod. 


Considerado uma panaceia universal, o agárico, segundo o mito, fora semeado por mão divina para nascer agarrado ao carvalho, árvore divina, para se tornar um símbolo de imortalidade. Era colhido no inverno, pois nunca perdia a sua floração; no período hibernal ficava até mais visível, portanto, e seus galhos verdes, suas folhas e os tufos amarelos de suas flores, enlaçados à árvore nua, apresentavam a imagem da vida em meio à natureza morta.


BALDER
 Morto Balder, Frigga perguntou se entre os Ases não haveria um que se dispusesse a descer ao reino de Hel para trazer a alma de Balder de volta. Hermod, seu irmão, saltando sobre Sleipnir, o famoso cavalo divino de seu pai, se pôs logo a caminho. O corpo de Balder foi conduzido pelos demais deuses a uma praia, onde se fez uma fogueira funerária no interior de um barco, ali ancorado, que outrora pertencera ao deus morto. Depositado o cadáver sobre as chamas, Thor, deus das tempestades, elevando solenemente no ar o seu martelo, deu consagração ritual à cremação de Balder, então iniciada, cremação que consumirá também a sua montaria, o seu maravilhoso cavalo. Todos os deuses estavam presentes, assistindo, com muita dor, ao funeral do deus da luz. Ao longe, curiosos, em silêncio, muitos gigantes, vindos das geleiras e das montanhas, também presenciavam a dolorosa cerimônia. 

Enquanto isso, Hermod continuava a sua caminhada por vales profundos e tenebrosos. Cavalgou durante nove dias e noites,
HERMOD
chegando enfim ao rio Gjoll, que margeia o Inferno sobre o qual há uma ponte de ouro que dá acesso ao reino de Hel. Ele ouviu da boca de uma sentinela que Balder atravessara a ponte em companhia de quinhentos homens. Prosseguindo, Hermod chega então às grades que cercam o reino de Hel. Apeando, verifica as tiras de couro que prendem a sela de sua montaria, apertando-as mais; montando, esporeia Sleipnir que, de um salto, passa por cima das grades, sem que seus cascos nelas resvalassem. Entra no palácio de Hel e vê, sentado em lugar de honra, aquele que procura, seu irmão Balder. Não aborda logo os deuses do Inferno. Fica na entrada do grande salão e só no dia seguinte se dirige à deusa Holle.


Ao lado das deusas que habitavam as regiões luminosas do céu, os escandinavos e germânicos tinham Holle como deusa do Inferno.
HERMOD NO INFERNO
Lembre-se que o Inferno para os escandinavos e germânicos, antes de sua conversão ao cristianismo, era um lugar subterrâneo onde iam residir aqueles que haviam cessado de viver. Hermod pediu aos deuses do Inferno que autorizassem o retorno de seu irmão. Eles concordaram, desde que este fosse o desejo de todas as coisas da terra que Balder retorne ao convívio dos Ases. Hermod voltou e deu a notícia aos seus pares, que então passaram a convocar todos os seres e coisas da Terra para que manifestassem tal desejo. Pedras, animais, homens, metais, vegetais, todos manifestaram seu grande pesar pela morte de Balder e  seu desejo de logo tê-lo de volta. 


Em meio a essa unanimidade universal, os deuses de Asgard notaram na caverna de uma montanha que uma giganta de nome Thokk se recusara a pedir o retorno de Balder. Ora, como logo se descobrirá esta giganta não era outra senão Loki, que, disfarçado, descobrira um meio de tornar o retorno de Balder impossível. 


As atribuições de Hermod se fixaram na mitologia escandinava e germânica principalmente através da função de mensageiro de Odin (Wodan) e de condutor das almas (psicopompo) ao mundo infernal. Nesta última função, era Hermod reconhecido por seu bastão (gambateim), que, na sua mão, se transformava em símbolo do viajante e do guia, protetor dos inúmeros perigos que as almas podem encontrar na sua viagem para o Inferno. Os antigos germânicos, no que lembram os chineses, possuíam uma arte divinatória chamada palomancia, realizada com o auxílio de dois pequenos bastões, um indicando um sentido favorável e outro desfavorável, com relação ao caminho a ser tomado. Lançados juntos, o bastão que caía em cima do outro era um indicador de caminho livre de obstáculos. 


  Hermod, como Mercúrio, tinha poucas funções.
BRAGE
Como explicar esta “pobreza”  se o comparamos com Hermes-Mercúrio? Dois fatores pesam; a) a complexidade político-social do mundo greco-romano, a exigir “mais” de seu deuses; b) o fato de outras divindades no panteão dos povos do norte terem assumido funções que, no panteão helênico e romano, eram da alçada de Hermes-Mercúrio. Balder e Brage, por exemplo, cuidavam em grande parte da comunicação, especialmente o último, de quem dependia a beleza da palavra. 


As terapias pela palavra, vinculadas à área médica, dependiam de Eira, deusa da medicina. E assim por diante... Ao fechar este capítulo sobre Mercúrio, não podemos deixar de ressaltar que Hermes é a única divindade que poderá nos falar da realidade do homem, consciente/inconsciente,  em  sua totalidade. A Galáxia de Gutenberg se concretizou com os telefones celulares e a Internet. Vivemos hoje numa “aldeia global”, efetivamente, com a comunicação bidirecional entre pessoas que esses meios de comunicação vieram a possibilitar. 
GUTENBERG


Sob o ponto de vista da saúde mental, entretanto, entendo que a Galáxia Eletrônica não pode continuar a ser considerada segundo a lógica aristotélica tradicional, base da lógica matemática do neopositivismo. Esta base lógica criou um mundo esquizoide no qual a loucura e/ou o suicídio vêm sendo vividos como as únicas saídas. Isto está claro quando temos diante de nós as tradicionais forças bipolares de pensamento, ou seja, “isto ou aquilo”. Assim agindo, não fazemos mais que acentuar ou, na pior das hipóteses, sofrer ou tolerar as contradições, nem, por outro lado, reduzindo-as ou as superando.


Temos necessidade urgente de uma nova lógica que não nos coloque, como a vigente, diante de “isto ou aquilo”, do “bom e do mau”, do “útil e do inútil”. A lógica com a qual estamos vivendo é doentia, patológica. No plano pessoal e social só conseguiremos estabelecer uma nova lógica, adequada aos novos tempos, se libertarmos o “nosso” Hermes do domínio que sobre ele exercem, como disse, Zeus, Hefesto e Ares.


HEFESTO

Esta nova lógica, acredito, poderia ser sintetizada pela seguinte expressão: “escolher não é renunciar” ou, de outro modo, “escolher é integrar”. Nesta perspectiva, escolher quererá dizer enriquecimento, integração do que não temos ao que temos. Esta “nova” lógica tem por base um fato fundamental: nossa cultura é cada vez mais “imagem e som” e cada vez menos “palavras”. A visão e a audição têm um valor integrativo maior que o da palavra falada e da escrita (o desta ainda menor). Só deste modo Hermes e Urano poderão nos conduzir para os novos tempos que estão se abrindo para a Humanidade...  
  
As ideias acima expostas me vieram ao ler a correspondência trocada entre Thomas Mann e Karl Kerényi sobre questões da

mitologia grega. O primeiro considerava o “Hermético” (melhor seria dizer hermesiano) como a terceira via a ser acrescentada ao dualismo Apolo-Dioniso que Nietzsche havia trazido para a cultura histórica. Afirmava Mann que o “Hermético” era uma qualidade específica da natureza, das realizações e dos padrões existenciais dos seres humanos, nos quais podiam ser encontrados traços de astúcia, velhacaria, esperteza, de savoir vivre.

A grande característica de Hermes para Kerényi era, sem dúvida, o seu lado estradeiro, a sua permanente disposição para andar, característica que Jean-Paul Sartre, como um bom geminiano, colocará, na sua obra, como um valor “filosófico”. Kerényi, por exemplo, usava muito a palavra grega hermaion para designar aquilo que lhe chegava às mãos inesperadamente, um artigo, um livro, um texto qualquer de seu interesse. Nesse sentido, hermaion era também um encontro com pessoas interessantes, sempre na rua, numa praça, num teatro, numa livraria, algo inesperado. É nesta perspectiva que Hermes, para Mann e para Kerényi, pode desempenhar um papel importante na vida humana ao levar as pessoas para a “estrada”, lembrando que vida é caminho e que é nele que temos que fazer as nossas escolhas. 


HERMES
O que acontece no universo, segundo o pensamento hermesiano, sempre nos aparece como perda ou ganho ou tudo se compensando como nos deixa claro a doutrina hermética através dos seus sete princípios fundamentais. Hermes é assim uma forma de existência na qual as transformações são incessantes, como, aliás, a própria forma do mercúrio como metal sugere. Por esta movimentação e rapidez, Hermes é o princípio da inconstância, das trocas, das ligações e das adaptações, razão pela qual sua atividade é muitas vezes considerada reprovável moralmente sob o ponto de vista humano. Ao se afastar da vida instintiva e ser pouco afeito à vida dos sentidos, ele é sempre  internamente no ser humano a base do seu edifício racional. É a partir de sua natureza dual, que Hermes lida com os princípios contrários e complementares, luz-trevas, direita-esquerda, masculino-feminino, permitindo assim o desenvolvimento da inteligência, pela qual o homem pode passar do simplesmente ser ao existir. 

E por esta razão que Hermes pouco tem a ver com a “Ilíada”, poema no qual a figura dominante é Aquiles, grande herói e o maior dos guerreiros gregos. Nada tão distante do mundo heroico
ULISSES
como Hermes. O mundo de Hermes está na Odisseia, que não é um poema heroico. A Odisseia é um poema sobre a vida, mas sobre um tipo de vida em que a morte está permanentemente presente. A rigor, Ulisses não é um viajante, palavra que usamos para designar aquele que desloca para um lugar determinado. Viagem é o ato de partir de um lugar para outro e o resultado desse ato. Ulisses é mais um caminhante, para ele não há metas, ele flutua, inteiramente absorvido pelo movimento. É por isso que Hermes, a divindade de Ulisses, tem os apelidos de Enodios e de Hodios, o dos caminhos.