quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ÉDIPO, JOCASTA, ANTÍGONA, FREUD E ANNA


A figura de Édipo se situa, na Grécia mítica, na família dos labdácidas, família real de Tebas, sendo ele o centro de um dos grandes ciclos da mitologia, o chamado ciclo tebano. Antes, porém, a origem do nome. Édipo, no grego antigo, quer dizer o de “pés inchados”. Nosso herói faz parte de uma linhagem de personagens que têm os “pés feridos”, os “pés vulneráveis”, personagens que não “pisam” bem no real, que não lidam bem com as coisas concretas. Édipo é aquele que tem dificuldades para pisar na terra, sendo esta, como sabemos, um símbolo da função maternal, princípio passivo, feminino.

A mitologia grega tem vários personagens com problemas semelhantes, nos pés ou nas pernas, Aquiles, Orion, Orestes, Hefesto e outros. O avô de Édipo chamava-se Lábdaco, conhecido como o Coxo. Lembremos que a letra grega “lambda” está na origem deste nome, a sugerir pelo seu desenho uma ideia de anomalia, de falta de firmeza, de pés tortos, cambaios, de desigualdade no caminhar. Laio, pai de Édipo, é conhecido como o torto, o esquerdo, o canhoto. Lábdaco, recordemos, como Penteu, teve seu corpo destroçado pelas mênades de Dioniso porque se opôs à divulgação do culto do filho de Sêmele em Tebas.

Os pés, em antigas tradições, sempre apareceram simbolicamente ligados à alma, ou melhor, ao destino que ela deveria suportar. Os pés, com o seu movimento ambivalente, alternativamente movimentados, impostos ao chão e dele nos retirando, são, ao mesmo tempo, um símbolo de poder, de partida e de chegada, de comando, como de sustentação e de humildade, pois afinal são eles que suportam tudo o que está acima deles, mantendo contacto com a mãe-terra, de onde o homem procurou sempre afastar-se orgulhosamente. Assim como a terra se opõe ao céu, os pés se opõem à cabeça. Desprezados, maltratados, descuidados, os pés nos dizem, todavia, que a cabeça nada é sem eles. Muitas vezes considerados como um símbolo fálico, indicam o ponto de partida, lugar por onde os movimentos se iniciam.

Nesta perspectiva, pés claudicantes, vulneráveis (Jacob, Thor, Hefesto, Talos, Aquiles etc. ) costumam significar um sinal da vitória divina sobre o ego humano, o pé do vencedor sobre a cabeça do vencido. É o que diz a sentença pronunciada no processo entre a mulher e a serpente na Bíblia: Ela te pisará a cabeça e tu armarás traições ao seu calcanhar. (Gênesis, III, 15). O pé magoado, lembre-se, pode ser um sinal de conhecimento, tal como a visão magoada, mas de um conhecimento ativo, já que adquirido na adversidade e submetido a provações. Nos mitos, a ferida no corpo humano tanto marca nele o ponto fraco como indica a presença da força divina. Não é por outra razão, por exemplo, que Aquiles, o de pés miticamente rápidos, perecerá precisamente através deles, que o faziam superar todos os outros homens. É o caso de Édipo, pés deformados, fraqueza de alma, fraqueza que ele procurou compensar externamente por uma afirmação através de sua superioridade orgulhosa e dominadora.


Édipo e a esfinge

Outro aspecto a destacar com relação à linhagem de Édipo é que toda a sua família tem, como se disse, relação com o lado esquerdo, considerado tradicionalmente como o lado ruim. A esquerda é a sinistra, em latim sinister. Sinistro quer dizer infortúnio, dano, perda. A palavra pressagia acontecimentos funestos, infaustos. Esta noção já existia na antiga Grécia, onde o lado direito era, segundo Ésquilo (Agamemnon), símbolo da força, da retidão, da normalidade, do sucesso; os presságios funestos, nos augúrios, apareciam sempre pelo lado esquerdo do céu. Biblicamente, temos o mesmo. A direita corresponde à direção do paraíso e ao lugar dos eleitos no julgamento final, enquanto a esquerda marca a direção do inferno, o lugar dos danados.

O simbolismo da esquerda no mito marca a direção do matriarcado, por oposição ao da direita, direção do patriarcado. Uma das consequências deste entendimento é, por exemplo, a discriminação que sempre envolveu os canhotos. Uma explicação racional para esta discriminação talvez esteja no fato de estatisticamente haver muito mais destros que canhotos, o que sempre foi visto como um afastamento da normalidade. Lembro, não faz muito tempo, nas escolas primárias, em muitas nações desenvolvidas, que se obrigava o canhoto a escrever com a mão direita. Aliás, um dos nomes do Diabo é Canhoto. O lado esquerdo é feminino, lunar, liga-se ao inconsciente, enquanto o direito é masculino, solar, liga-se ao consciente.

Laio, filho de Lábdaco, ainda menor, com a regência do tio, Lico, assumiu então o trono. Assassinado Lico, por questões de disputas internas no reino, Laio, temendo destino igual, fugiu, indo se refugiar na corte de Pélops, rei de Pisa. Bem recebido, traiu contudo as regras da hospitalidade. Sentindo forte atração física por Crisipo, filho de Pélops, então um adolescente, raptou-o.


Morrendo os usurpadores que haviam assassinado Lico, Laio reassumiu o trono de Tebas, levando consigo o jovem e belo Crisipo. Pélops amaldiçoou publicamente o raptor e a deusa Hera, protetora dos amores legítimos, anatematizou a ambos. Crisipo, que correspondera à paixão de Laio, envergonhado, suicidou-se cheio de culpa. Tempos depois, Laio se casou com Jocasta (a que brilha sombriamente), também chamada de Epicasta, tebana de alta linhagem.


Jocasta

Dessa união nasceu Édipo, marcado por terrível maldição. Tebas só se manteria como pólis autônoma e íntegra se Laio morresse sem descendência, dizia uma antiga sentença oracular. A sentença foi reafirmada, com a previsão de que o filho de Laio, ainda no ventre materno, o mataria e causaria a ruína da orgulhosa família dos labdácidas. Laio, apesar dessa advertência, resolveu correr o risco.

Dentre as várias versões sobre o que aconteceu depois do nascimento da criança, ficamos com a da sua exposição. Com os pés fortemente atados e, segundo alguns, também com os calcanhares perfurados, por onde se passou um fio para pendurá-la numa árvore, a criança, com poucos dias de vida, foi abandonada no alto do monte Citeron. Pastores que andavam pela montanha ouviram o choro do menino; recolheram-no e o entregaram através de seus patrões aos reis de Corinto, que não tinham filhos. Recebeu a criança o nome de Édipo, sendo educada na corte como um jovem príncipe, forte, belo, vaidoso, orgulhoso, apesar dos pés “problemáticos”, sem ter a mínima noção de sua origem.

Um dia, num banquete no palácio real, um convidado, embriagado, chamou insultuosamente o jovem príncipe de plastós, postiço, falso filho. Interpelados, os reis de Corinto negaram veementemente o que ele ouvira do bêbado conviva, afirmando que ele era um filho legítimo e muito amado.

A pretexto de procurar uns cavalos que haviam sido roubados dos estábulos reais, Édipo, muito incomodado pelo que ouvira, sem nada comentar saiu do palácio resolvido a investigar a sua origem. Dirigiu-se a Delfos, grande santuário oracular de Apolo. A sibila, consultada, em transe profético, escandalizou os sacerdotes ao declarar que o jovem príncipe mataria o pai e se uniria sexualmente à sua própria mãe.

O resto da história é bem conhecido. Édipo, com medo de que a sentença se cumprisse, tomou o sentido contrário de Corinto. No caminho, numa disputa de passagem com um estrangeiro de aparência nobre, que vinha numa carruagem, acompanhado de dois soldados e de um arauto, que o escoltavam, além do cocheiro, Édipo, tomado por grande fúria, matou a todos, com exceção de um soldado da comitiva, que conseguiu escapar. Diz uma versão do mito que Laio voltava de Delfos aonde tinha ido para obter maiores informações sobre a sua descendência. Tirésias, o vidente cego, diz também a mesma versão, o advertira de que deveria, antes de partir, fazer um sacrifício à deusa Hera, a deusa protetora das justas núpcias e da prole legítima.


Por esta passagem do mito, fica claro que Édipo faz parte da galeria dos chamados heróis solares na medida em que se dispôs a ir em busca da luz para triunfar sobre as suas trevas interiores. Uma palavra, um acontecimento qualquer, algo totalmente inusitado, como aconteceu no desfiladeiro, e o herói parte para se envolver numa relação de forças que não entende bem. No fundo, uma compulsão que o levou a se lançar em direção do desconhecido. A psicanálise tem uma explicação para isto: nada é por acaso, mesmo os nossos erros não se inscrevem no plano do fortuito. As coisas nos acontecem antes, sim, em razão de desejos e repressões alojados em lugares muito profundos dentro de nós, lugares onde a luz nunca chegou. Um dia, dessas profundezas algo aflora e temos então o passo inicial de um destino.

Édipo escondeu-se por uns tempos nas montanhas. Enquanto isso, Jocasta assumia provisoriamente o reino de Tebas, aceita a versão de que o marido morrera atacado por “assaltantes”, segundo notícia transmitida mentirosamente pelo soldado fujão. Os deuses, contudo, precisavam fazer a engrenagem do destino funcionar.

Um dia, Édipo resolveu abandonar as montanhas e, afastando-se de Corinto, tomou a direção de Tebas. No caminho, soube que um monstro, Fix, a Esfinge, devorava todos os que se dirigissem ou saíssem de Tebas. Só não o faria se fosse decifrado um enigma que ela propunha, o que nunca acontecera até então. A Esfinge devorava sobretudo os jovens de Tebas, ansiosos por vitórias mundanas, por façanhas, sempre uma maneira de obter renome, fama (kleos).

A palavra Fix (Sphinks) vem de um verbo que traduz a ideia de sufocar, apertar, comprimir. Era um monstro feminino, filha de Tifon e de Équidna, cabeça, rosto e seios de mulher; corpo de leão, patas e cauda, além de asas. Devorava os que não decifrassem os seus enigmas. Seu falar era dissimulado, obscuro, equívoco.
No Egito, as esfinges eram diferentes, velavam sobre as necrópoles, embora também apoiadas no diálogo masculino-feminino, já que foram construídas para celebrar a passagem da era de Virgem (signo feminino) para a era de Leão (signo masculino), como está comprovado por trabalhos de modernos arqueólogos e estudiosos das constelações dos céus. Já na Grécia, eram um símbolo do feminino, destrutivo, pervertido, uma ameaça à ordem patriarcal. Elas só poderiam ser vencidas pelo intelecto, pela sagacidade. Fixadas na base de um rochedo, simbolizavam também a ausência de elevação. Suas asas de nada serviam, se não superado, vencido, seu lado terrestre. Num outro sentido, a esfinge representava a opressão do inconsciente (feminino). Há algo de erótico na figura, como na Sereia, elas atraem sexualmente, são sedutoras. Na medida em que ela se opõe a Apolo, o grande inimigo dos deuses ctônicos, possessos e furiosos, a Esfinge grega é, em suma, afirmação do feminino diante do masculino.

O enigma da Esfinge confunde, põe em evidência a ignorância do mundo masculino (consciente). A Esfinge não transmite nenhum saber, só constata a incapacidade do intelecto masculino. Édipo era indômito, ativo, masculino totalmente. Ele a vence: Impus silêncio à Esfinge, são as suas, palavras. Para um homem poderoso como ele, fixado nas vitórias da sua habilidade mental e da sua força física, um enigma é algo a ser resolvido, a ser dominado, referindo-se antes a “todas as coisas que têm duplo sentido”, oráculos, dilemas, paradoxos, aforismos etc. A tragédia de Édipo foi a de não perceber o duplo sentido ou os vários sentidos que uma coisa pode ter. Ele foi literal, apenas. Intolerante com a ambiguidade, nosso herói só ouviu a metade.

O prêmio para quem vencesse o terrível monstro, como a cidade definira, seria a “mão” da rainha Jocasta, ainda muito jovem e bela. Assim aconteceu; o grande herói se uniu a ela e viveram felizes por um bom tempo, nascendo quatro filhos dessa união, Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene.

Quase vinte anos depois, uma catástrofe se abateu sobre a cidade, a peste. Creonte, irmão de Laio, antigo regente do trono, vai a Delfos e ouve da sibila que a peste era um castigo porque a morte de Laio ainda não havia sido reparada. Os cidadãos vão a Édipo pedir que tome providências. A esse tempo, nosso herói está no auge de sua glória, nada lhe falta, fortuna, força, poder, uma família. Arrogante, como o haviam sido seu avô e seu pai, ele decide apurar o esquecido assassinato de Laio.

TIRÉSIAS

Tirésias, o vidente cego, é mais uma vez convocado, por sugestão de Creonte. Édipo vê nisso um complô para afastá-lo do poder. As Erínias, as grandes divindades da Anankê, voltavam a acionar a terrível engrenagem para o restabelecimento dos limites que haviam sido rompidos. Jocasta intervém, tentando tranquilizar Édipo, pondo em dúvida o saber de Tirésias. Afinal, não dissera o oráculo que Laio seria assassinado pelo próprio filho? Mais ainda, prossegue a rainha, se a criança fora exposta logo ao nascer e Laio, como sabemos, assassinado por bandidos, onde estava a veracidade das afirmações do adivinho? Tirésias desde o início procurara se esquivar do interrogatório. Édipo, contudo, começou a juntar as peças, a ver as coincidências. O pavor e o desespero surgiram quando foi convocado o soldado que tudo presenciou. Édipo começou então a não mais buscar um assassino, mas a buscar-se. Angustiado, rememorou tudo.

Nesse ínterim, um emissário de Corinto (o mesmo que recolhera a criança na montanha) vem anunciar a morte de Pólibo, rei de Corinto, que recebeu Édipo recém-nascido e que o criou como filho. O povo de Corinto, evidentemente sem saber nada disto, mas diante do renome de Édipo, o queria como rei. A alegria renasceu por um momento. Mérope, a esposa de Pólibo, ainda vivia. Jocasta tenta reanimar Édipo: Quanto a ti, não deves temer o conúbio com tua mãe: quantos mortais já não compartilharam em sonhos o leito materno? (Édipo-Rei, 980-982).

Mas Mérope não é mãe de Édipo, intervém o mensageiro. Tudo então parece desabar. Jocasta se retira. Tudo ficou claro num segundo. Édipo prossegue por momentos num doloroso diálogo com o mensageiro e o pastor. Jocasta, diga-se, desde o início da investigação já pressentira tudo. Pediu inclusive a Édipo que a abandonasse. Mas insensível e obstinado ele continuou. As últimas palavras de Jocasta para Édipo foram: Infortunado que és, abandona tudo! Melhor nunca saberes quem és! Desgraçado: este é o teu nome daqui por diante!

Não podemos esquecer que todos os heróis, nas tradições míticas a partir da era de Áries, tendem a ser solares, como promotores da cultura, da civilização, da religião. Fazem parte do seu ofício, no enfrentamento do Mal, tarefas como as de matar monstros, descer às profundezas infernais, ir a lugares de difícil acesso, inacessíveis, longínquos, lutar contra os ímpios e os gentios, exterminar malfeitores, ajudar os fracos e oprimidos, conquistar tesouros, libertar princesas. Ao agir, combatem naturalmente tudo aquilo que se opõe ou impede o luminoso, o fecundo, o fértil, a irradiação da luz. Sua luta é contra o árido, o estéril, o escuro, o improdutivo. Sua guerra contra as forças materiais externas é sempre justa, enquanto interiormente, contra os seus demônios, ela é sempre sagrada.

Ao incorporar os traços acima mencionados e agindo na forma descrita, os heróis de que estamos tratando sempre tiveram muita dificuldade para lidar com o feminino, para se relacionar com a sua “anima”, a personificação, segundo Jung, de todas as tendências psicológicas femininas do psiquismo masculino. O suicídio de Hércules, o sparagmós de Orfeu são exemplos. Mesmo os heróis que se deram um pouco melhor com o feminino, como Ulisses e Perseu, tiveram um final de vida bem melancólico. Édipo não foge à regra. Como herói solar, matador de monstros, vitorioso nas batalhas mundanas que travou, encontrou o seu poente em Jocasta, a Sombria, símbolo do outono, a queda do Sol.

Édipo é, sem dúvida, um herói solar. Na medida em que simboliza o Sol Novo em luta contra o rei do Ano Velho (Laio) e, ao vencê-lo, pelo fato de se casar com a mãe (o poente), ele, depois de romper os muros da infância, procurou, sem saber bem o que fazia, se empenhar numa luta contra os dois guardiões das vias de acesso ao mundo exterior, onde procuraria nascer, adquirir sua autonomia. Saturados de energia masculina, entretanto, os heróis solares da mitologia grega sempre tiveram muita dificuldade para enfrentar quaisquer das formas da Grande-Mãe, fracassando sempre.

Édipo jamais se questionou interiormente. Para ele tudo estava fora, fixando-se na cena mundana de sua existência, palco de suas vitórias. Só começou a se retirar dessa cena nos momentos finais da sua vida, quando, diante dos acontecimentos que precipitara, se mutilou para perder a visão externa e ganhar a visão interna, inciando, quem sabe, uma jornada em direção às regiões onde se localizavam suas reais dificuldades. Muito tarde, porém, para lutar contra esses demônios...

O final é sabido. Diante da tragédia, Jocasta se recolhe aos seus aposentos e se suicida, enforcando-se. Édipo, ofuscado pela verdade, encontrando-a morta, se mutila, arrancando seus próprios olhos com um broche de ouro (perone) retirado da túnica (peplo) de sua mãe, esposa e mãe de seus filhos. Perdia, como se disse, a visão externa para, quem sabe, ganhar a visão interna, que sempre ignorara, ao viver fixado nas suas vitórias no mundo. Trevas externas, luz interna. A ação de reconhecer (anagnosis) começa quando nosso herói adquire a visão interior. Ele foi o que soube e com o saber conquistou o poder; a hipertrofia desse poder sufocou-lhe o saber. O cego agora sabia, mas nada mais podia.

Ai de mim! Tudo se desvendou. Ò luz, oxalá possa contemplar-te pela última vez! Ficou bem claro que eu não deveria ter nascido de quem nasci. Não deveria viver com quem vivo e matei a quem não deveria matar! (Édipo-Rei, 1182-1185). Depois de proferir estas últimas palavras, Édipo pediu que Creonte o exilasse. Dois de seus filhos, como se sabe, Polinice e Etéocles, tentaram expulsá-lo de Tebas. Édipo os amaldiçoou, vaticinando que ambos morreriam, um lutando contra o outro, o que de fato aconteceu.

Amargurado e infeliz, largando tudo, cego e alquebrado, conduzido por Antígona, Édipo desapareceu da vista dos tebanos. Foi mantido pelas filhas e por Creonte numa masmorra por uns tempos. Depois, como um fantasma, guiado por Antígona, a mais velha e a mais forte dos seus filhos, perambulou pelas estradas até chegar a Atenas, onde, recebido por seu rei, Teseu, entregou-se finalmente, em segredo, à morte. Tal aconteceu em Colono, um lugar afastado da cidade, bosque inviolável, junto de um monte rochoso no qual se honrava o deus Poseidon. Sem que ninguém visse, nem Antígona, Édipo despedindo-se dela e de Teseu que ficaram à entrada do bosque, trôpego, claudicante, guiado pelo deus Hermes, o deus psicopompo, foi descendo por uma fenda em direção do interior da terra, que se abriu para recebê-lo.

É preciso acrescentar ainda que na religião da pólis, como no direito grego, quando das ações criminosas, havia que se considerar a questão em conjunto, isto é, se alguém de um “genos” cometia uma falta, a punição recaía sobre os descendentes, principalmente sobre aqueles que estavam em linha troncal (avô, pai, neto etc.). O crime teria que ser reparado, vingado, muitas famílias exterminando-se por isso. O que importa, segundo esse entendimento, presente em toda a tragédia edipiana, é que o individual não pode ser separado do coletivo. Todos, de uma forma ou de outra, pagam pelos crimes dos seus ancestrais. Neste caso, foi através de Édipo e de seus filhos que o “genos” (pessoas ligadas por laços de sangue) dos labdácidas purgou os seus conflitos.

As perguntas então se impõem: por que esse fatalismo em “Édipo-Rei” de Sófocles? Quantos são os punidos sem culpa? Vítimas de Moros, o destino? Serão os decretos dos deuses insondáveis? Causalidade ou acaso? Quem é o delinquente? Cometeu Édipo realmente um pecado? Desprezou as advertências, teria sido este o seu crime? Ou foi seu orgulho? Uma herança dos labdácidas, os “tortos”, da sua imensa hybris, da sua tendência para ultrajar, da sua insolência, da sua autossuficiência? Transmissão da culpa? Será que além das características atávicas, biológicas, das taras, doenças e miasmas, é transmitido também o que os ancestrais praticaram?

Édipo sempre pareceu a Sófocles muito autossuficiente; assim foi apresentado nas três tragédias do ciclo tebano: Edipo-Rei (Laio-Jocasta-Édipo), Edipo em Colono (conflito entre Édipo e os filhos e estes entre si) e Antígona (Creonte-Hemon). Freud interpretou o conflito entre Laio e Édipo como uma rivalidade provocada pelos desejos inconscientes de Édipo, incestuoso com relação a Jocasta. Esta, por seu lado, representaria aquele desejo inconsciente pelo filho, modelo materno que se fixa inclusive sexualmente nele. Daí o ódio do filho contra o pai, o rival. Desde 1897, como se sabe, Freud falava de um conjunto de investimentos amorosos e hostis que toda criança faz sobre os pais. Registrou o processo em si mesmo, descrevendo-nos sentimentos de amor pela mãe e de ciúme do pai, sentimentos que eram “comuns a todas as crianças pequenas”, inclusive com relação às meninas.

Para que tudo isto fique mais claro, entendo que os antecedentes históricos a seguir expostos contribuirão para uma melhor compreensão do destino do nosso trágico herói. Refiro-me à visão do mito e o cenário social da Grécia (Atenas) ao tempo em que se apresentou a tragédia Édipo-Rei. Elementos que nos ajudarão a situar melhor outros personagens que dela participam.

A religião oficial da pólis (Atenas), no período clássico da história grega (quando as tragédias dos principais autores trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes são escritas), era aristocrática. Os deuses gregos atuavam para reprimir a hybris dos que tentassem ir além do seu métron que devia ser encontrado tanto na estratificação social como, e sobretudo, interiormente. Buscar sempre o comedimento, a justa medida. Era a proposta apolínea: equilíbrio e harmonia dos desejos, orientação da vida na direção de uma espiritualização progressiva, graças ao desenvolvimento da consciência. Isto significava, antes de mais nada, respeitar os deuses da pólis. Não é por acaso que Platão, quando enuncia os deveres dos legisladores, era a Apolo que ele os remetia, no sentido de que todos se voltassem para o Senhor do Arco, aquele que devia ditar “as mais importantes, as mais belas, as primeiras das leis” (Platão, A República).

Esta religião da pólis tinha o nome de olímpica e sua meta era também a de levar o homem à obtenção de um conhecimento contemplativo (gnósis), à purificação da vontade para que o divino fosse recebido (khatarsis) e à consequente libertação do ser para uma vida de imortalidade (athanasia). Tudo muito solene, aristocrático, comedido, cerimonioso, sendo Apolo, em nome de Zeus, a grande divindade operadora desse mundo.

De outro lado, opostas a essas correntes, voltados para mitos naturalistas, cultos agrários, com forte ênfase no feminino, com divindades da vida animal e vegetal, tínhamos os cultos que falavam de morte e de renascimento. Esses cultos se constituíam numa antiga expressão religiosa do mundo grego, que, entre os séculos V e IV aC, começaram a invadir a “pólis”. Associado à deusa Deméter, nos mistérios de Elêusis, Dioniso era a figura central dessas correntes. Ele era o deus da vinha, da parreira, da hera, da pinha, do teatro, da vida que se renovava sempre, o do eterno retorno.

Seus cultos logo se tornaram populares. Todos deles podiam participar, sobretudo os deserdados sociais, as mulheres, os jovens, os estrangeiros, os escravos, os que não tinham vez na pólis, os que viviam na periferia de Atenas, imigrantes, formando cinturões de pobreza e miséria. A proposta de Dioniso era a da supressão das interdições, o apagamento dos limites, a liberação das forças vitais, tudo provocado por seus ritos orgiásticos, para que os que deles participassem chegassem ao êxtase (esvaziamento interior) e deste ao entusiasmo (Deus em nós). Dioniso era a catábase, a descida, a viagem infernal e o renascimento sob uma outra forma de vida.

O choque entre as duas concepções era violento. A religião olímpica se sentiu ameaçada, a estrutura político-social da cidade-estado grega começou a desmoronar, um processo que terminaria com a invasão e o domínio da Grécia pelos macedônicos. Apolo era a harmonia, a luz, o controle das pulsões. Dioniso propunha a liberação das interdições, era a transgressão, a supressão dos condicionamentos. Daí o confronto com os lemas délficos apolíneos: nada em excesso, conhece-te a ti mesmo. O ekstasis dionisíaco era uma espécie de superação da condição humana. O simples mortal tornava-se um anér, uma espécie de herói que ultrapassava o seu métron ao tentar competir com os deuses ou mesmo se colocar acima deles.
Este rompimento de limites era a hybris, uma desmedida, uma insolência, uma violência que devia provocar inevitavelmente a reação divina, o ciúme divino, a nêmesis. O anér, ultrapassado o seu métron, tornava-se um êmulo dos deuses. A punição era imediata. Os deuses lançavam contra ele a anoia, a irracionalidade, personificada às vezes pela deusa Até (O Erro) ou, noutras vezes, por Lyssa (A Loucura). Tudo o que o homem fizesse então nesse estado seria realizado contra si mesmo. O conceito de vingança divina tomava entre os gregos, no mito, o nome de Anankê, representado pelas deusas citadas e por muitas outras, como as Erínias, as Keres, as Harpias, que obrigavam os que haviam rompido o métron a pagar por isso. Algo parecido com a doutrina hinduísta do karma.

O quadro do elemento trágico (tragédia=canto do bode) se configura: anthropos (homem), rompimento do métron (medida), anér (herói), hybris (orgulho, desmedida), hamartia (expressão física da hybris, violência). No sentido contrário de tudo isto, Anankê, a reação divina contra aquele que ultrapassava seus limites. No mito, a mãe da Hybris é Koros, o desdém, a desconsideração, o menoscabo, o desapreço, sentimentos dos quais os heróis gregos e, em especial, os labdácidas estavam saturados.

O Estado logo percebeu o perigo das festas populares dionisíacas, os espetáculos teatrais oriundos dos cultos do deus da vinha (tragédia e comédia). O governo da pólis entendeu as estreitas relações entre a religião e o teatro; o gênero teatral mais perigoso para a pólis era a tragédia. Para conter os transbordamentos dionisíacos, apoderou-se o governo deste elemento, encampando-o, procurando torná-lo um apêndice da religião oficial, um instrumento pedagógico para melhor pressionar e educar as massas. Daí, a institucionalização do teatro, os festivais, os prêmios, as honrarias, as láureas etc.

Aristóteles (384-322 aC) é o grande teórico do trágico. Para ele, a tragédia era imitação (mimesis) da vida, com linguagem própria, por meio de atores (hypokrysia, em grego, é fingimento; hypokrytès era o ator de Dioniso que, no teatro, simulava personagens, ditos e atitudes que não eram suas, mas de outrem). Graças ao temor e à piedade que o tema produzia através da ação dramática, gerava-se a purificação das emoções, a catarse. No epílogo, a tragédia produzia compaixão e temor com relação ao destino do herói trágico, alguém que havia ultrapassado determinados limites. Com isto, evidenciava-se o seu erro (hamartia), o seu equívoco, o seu descontrole. A desgraça que o atingia poderia alcançar qualquer um que também ousasse...

Sófocles (Colono, 496-Atenas, 406), por ordem cronológica, é considerado como o segundo grande trágico grego. Antes dele, Ésquilo, depois dele, Eurípedes. Sófocles aparece no período mais brilhante da vida ateniense. De família rica, foi militar, mantendo relações muito chegadas com Péricles, Fídias, Heródoto e outros importantes nomes da política e da cultura. Muito aberto às idéias novas, acolheu-as sempre. Sua vida sentimental foi complicada. Como era costume no seu tempo, gostava também de rapazes. Alguns biógrafos nos revelam que morreu assassinado. Mudou a técnica teatral em muitos pontos. Grande “operário” do teatro, tinha o apelido de “Abelha Ática”. Sua técnica teatral era perfeita. Das 126 peças que escreveu, 72 foram vencedoras de certames teatrais. Só 7 nos chegaram: Ajax, Antígona, Édipo-Rei, Electra, As Traquínias, Filocteto e Édipo em Colono. Sua tragédia paradigmática é Édipo-Rei, fundamento da Psicanálise freudiana.

Em Sófocles, o tema central é o da luta do herói contra a fatalidade, o das suas pressões psicológicas, a oscilação entre a glória e a perdição. Por isso, o herói como autor do seu destino; um teatro de escolhas, profundamente existencial, “sartreano”. O homem responsável. Sófocles cria o teatro da “situação” humana e não o da “condição” humana. Teatro antropocêntrico, os deuses agem à distância, através de oráculos ou adivinhos. A fé está mais no individual que no coletivo, ao contrário de Ésquilo. Em Sófocles, temos o logos socrático iluminando (ou não) o homem. Nele o que importa são os fatos, a hybris, a catástrofe. Só os atos contam, teatro de krisis, portanto, de escolhas e de um ethos. Seus personagens vão a extremos, indo de um lado para outro. Sempre uma confrontação com o sofrimento e a pergunta: como aceitá-lo? Do pathos ao ethos. Será que para compreender é preciso sofrer?

Homero, como se sabe, cita Jocasta na Odisseia. Sófocles retoma a história alguns séculos mais tarde. De onde teria vindo Édipo? Da própria Grécia, do Egito, de Creta, da Ásia Menor? Uma hipótese curiosa, não acolhida evidentemente pelos estudiosos acadêmicos da tragédia grega, foi a que um independent scholar, Immanuel Velikovsky (1895-1979), médico, erudito, ex-aluno de Freud, apresentou numa polêmica obra, Édipo e Akheneton.

Para ele a figura de Édipo teria como modelo o famoso faraó egípcio, cujos problemas familiares seriam também muito semelhantes aos do Édipo de Sófocles. O local dos acontecimentos no Egito e na Grécia tinha o mesmo nome, Tebas, e a Esfinge estava presente nas duas histórias. Além de muitos outros elementos em comum, Akhenaton, por exemplo, segundo Velikovsky, desposara a mãe, gerara uma descendência; teria ficado cego, como Édipo; e uma de suas filhas morrera como Antígona...

Nas três mencionadas tragédias de Sófocles merece atenção o grande destaque que é dado ao conflito entre pais e filhos, o questionamento da autoridade paterna e da ordem patriarcal. Todos, de uma forma ou de outra, atacam uma ordem social e religiosa baseada nos poderes e privilégios do pai, Laio, Creonte, Édipo, aspecto muito importante, ao que parece minimizado pelos que, com base em Freud, se fixaram apenas numa leitura psicanalítica e tão só numa das peças da trilogia de Sófocles, a primeira.

A rebelião do filho contra o pai, contra a sua autoridade, a união de Édipo com Jocasta, tudo é sem dúvida um símbolo da vitória do filho que ocupa o lugar paterno e que assume os seus privilégios. No fundo, o que o jovem macho rebelde deseja é ser também um patriarca. Freud definiu, como se sabe, que esse impulso contra o pai costuma aparecer entre a idade de 3 a 5 anos nos pequenos machos. É preciso destruir a figura e possuir a mãe para chegar à maturidade. Em Édipo os arquétipos do herói e do rei se confundem, ambos projeção do eu superior. Seus desejos de autonomia, de conhecimento integral, de autoridade acabaram não se realizando, pois no inconsciente de Édipo havia muito mais demônios que tesouros.

Já Jocasta, embora tenha sido citada em Homero, na Odisseia (canto XI; Ulisses viu a bela Epicasta, outro nome de Jocasta, no Hades), sua figura só se define para nós com Sófocles. Ela representa o princípio feminino maternal que está interessado em apoiar o ego do filho (complexo de Jocasta?). Tenta encobrir a verdade, proteger, procurando impedir a conscientização do filho. Freud em 1897, numa carta ao amigo Fliess, escreveu: Ocorreu-me um único pensamento de validade geral. Encontrei também em mim o enamorar-me pela minha mãe e ciúme contra o pai e tenho isto como fato geral na tenra infância. Se isto for assim, entende-se a empolgante força do Édipo-Rei; a saga grega expressa a compulsão que todos reconhecem, pois experimentam em si a existência dela. Todos já fomos, em embrião e na fantasia, esse tal Édipo, mas, diante da realização do sonho trazido para a realidade, todos se horrorizam com a soma de repressão que separa a condição infantil da atual.

A trilogia de Sófocles, além do ângulo freudiano, nos põe diante de um processo de individuação arquetípica em que o mundo interior e o exterior do ser humano precisam encontrar um ponto médio. Ao se afirmar, o ser humano não pode esquecer que seu mundo interior governa, em variados graus de intensidade e em diferentes fases, a sua vida. Édipo se mostrou, sempre, excessivamente extrovertido, toda a ênfase de sua personalidade estava voltada para a sua vida no mundo, para as suas vitórias, para as suas conquistas.




Mais ainda: a trilogia sofocleana, além de descrever uma luta entre o poder paterno e o filho, é uma demonstração de poder da ordem matriarcal sobre a ordem patriarcal vencedora. Édipo é um herói do mundo patriarcal que vira um joguete das forças matriarcais ctônicas. Diante dessas forças, o poder mental, o que chamamos de vida consciente, fracassa. A história do desventurado Édipo nos sugere que por trás das afirmações do mundo masculino e de seus valores existia antes dele, como tudo indica, em tempos muito remotos, a-históricos, uma força político-social centrada no mundo da mulher. Esta força, que alguns designam como matriarcado, teria como componentes a maternidade, o amor, a fraternidade, a igualdade, a predominância dos valores tribais sobre os individuais.

Tudo isto deu à mulher uma valorização religiosa, a consagração das grandes-mães. Nesse mundo, as relações sexuais eram promíscuas e, por isso mesmo, indiscutível o parentesco matrilinear. Sabia-se quem era a mãe, não o pai. Assim sendo, só à mulher se podia atribuir a consanguinidade. Era ela, por isso, e só ela, a legisladora. Essa supremacia se expressava não só na vida social (a ginecocracia cretense é um exemplo), mas, sobretudo, religiosamente. As religiões celestes, uranianas, patriarcais, teriam sido precedidas por estas, as femininas. No patriarcado, as virtudes femininas foram substituídas pelo “Eros” e pelo “Logos”. No matriarcado, o apanágio amoroso estava na sua universalidade.

A cultura matriarcal se caracterizou pela importância dada aos laços de sangue, pelos vínculos estreitos com o solo, com a Terra-Mãe, com a língua materna, pela aceitação dos fenômenos naturais. O patriarcado se distinguirá por um alegado respeito à lei e à ordem, dos mais fortes, evidentemente, pelo predomínio do racional, pela ação sobre a natureza e pela tentativa de domínio dos fenômenos naturais.

Nas sociedades matriarcais, predominavam a igualdade, a fraternidade; nas patriarcais, obediência à autoridade, a uma ordem hierárquica. O matriarcado é universalista, o patriarcado impõe fronteiras, muros, separações. A família matriarcal é aberta, receptiva, a patriarcal é fechada, individualizada. Numa predomina o caos, a liberdade, a natureza; na outra, a limitação, a hierarquia, a ordem, o logos. Vencida a mulher, o patriarcado se impôs socialmente. O sistema vencedor é caracterizado pela monogamia (em relação à mulher), pelo monoteísmo, pela autoridade indiscutível do pai de família e pela posição preponderante do homem na hierarquia social. A religião vai refletir esse estado de coisas. Deuses celestes, supremos, que fecundam como princípio ativo; o feminino, rebaixado, satanizado, passivo, gerador e dependente daquele. Nesta perspectiva, a mitologia grega será um reflexo deste conflito entre divindades patriarcais e divindades matriarcais, que a trilogia de Sófocles refletirá soberbamente.

A figura materna assume por isso um valor muito grande nesse contexto. É a primeira forma que assume, no ser humano, a experiência anímica, do inconsciente. Nascer é sair dela, morrer é retornar a ela, à Mãe-Terra. Abrigo, segurança, calor, ternura, alimento, é também risco de opressão, de estreitamento, de castração e morte. A generosidade materna pode se voltar contra qualquer tentativa de independência do filho. O filho, por seu lado, pode assumir uma atitude involutiva com relação à sua independência, fixando-se na mãe, que continua a exercer uma fascinação inconsciente (um dos exemplos é a famosa enkrateia de Afrodite) que vai ameaçar o desenvolvimento do ser e a conquista de uma individualidade. A mãe, neste papel, identificar-se-á assim como um não-ser, tentador, mas perigoso, inspirando temor, mas sempre poderosa pela dominação inconsciente que exerce.


Jocasta, a “sombria”, nos diz que nesse cenário a mãe é sempre anterior ao filho. Ou seja, a mulher é, o homem será. O homem é um vir-a-ser. Com relação à mãe, o princípio masculino está sempre em segundo plano. Nesse sentido é que Jocasta é uma das projeções da Grande-Mãe. Sua poderosa força magnética é uma espécie de chamamento para o retorno, uma volta a um estado de entrega total. A Grande-Mãe contém, circunda, envolve, nutre, sustenta, alimenta. Nela, na mãe, não há luta ou escolhas. Seu papel será sempre o mesmo, representando por isso um estado primordial, paradisíaco, edênico.

Os gregos usam as palavras anosios ou synousia, o que é ímpio, sacrílego, para se referir ao que os latinos chamam de incesto (etimologicamente, não casto, não puro, impudico), relação sexual entre parentes (consanguíneos ou afins) dentro dos graus em que a lei, a moral e a religião condenam ou proíbem a união. Segundo Freud, com a sua teoria da sexualidade infantil, o incesto é até certo ponto um acontecimento, uma fase normal na vida da criança. O problema, porém, é quando essa tendência se prolonga, atuando regressivamente, traduzindo-se por uma espécie de autismo. Muitos adultos desenvolvem essa atitude, esse deixar-se tomar inconscientemente, mergulhando no que poderíamos chamar de nostalgia do incesto, fixando-se na figura materna ou paterna.

Esse apego ganha expressões muito variadas. A união com a mãe, por exemplo, pode se tornar apego excessivo à terra, exaltação de desejos terrestres, dos quais, como vimos, Édipo se tornou prisioneiro. O incesto, que pode tomar vários caminhos, não só o sexual, é uma espécie de nó no psiquismo, uma parada no desenvolvimento moral, uma regressão, válida a observação para indivíduos, grupos humanos ou sociedades (incesto social).

No mundo patriarcal, o elemento masculino achou que podia se gerar sozinho, excluindo o feminino, sem a participação da Grande-Mãe, como temos nas várias formas do “machismo religioso” das três principais religiões patriarcais do mundo moderno, judaísmo e suas dissidências, cristianismo e islamismo. Excluída, satanizada, vilipendiada, a Grande-Mãe sempre esteve lá, contudo, sempre presente, atuando subterraneamente, solapando o orgulhoso edifício patriarcal, construído em nome de Deus, na base de guerras, matança, escravatura, exploração, devastação, corrupção e degradação do meio natural.

A partir do final do séc. XVIII, a destruição da polaridade masculina e, consequentemente, da feminina e do sistema patriarcal como um todo vem se acelerando. Vários acontecimentos estão aí para no-lo provar, através de inúmeros exemplos constatados na vida social, política e artística das nações, (confusão sexual, era de Aquário, direito de minorias, movimento GLSB etc.) com as suas respectivas repercussões no campo do Direito, da Psicologia, da Medicina, da Filosofia, da Economia, da Religião etc. Tudo fazendo pendant com as catástrofes que se avolumam no meio natural,

Quando todos os fatos são expostos, Édipo, finalmente, ao invés de assumir o que fizera, rejeita-os, se auto mutila, cegando-se. Este gesto, expressão de seu desespero paroxístico, é uma recusa de ver. A culpa é recalcada. O remorso pânico não pode se tornar arrependimento. A cegueira vaidosa é completa, a luz se apaga.

A ação do ego, para se separar dos pais, é sempre um ato criador, uma batalha. A ameaça da castração maternal é, contudo, permanente. O mito de Édipo tem sem dúvida um lugar importante na história do ser humano, na sua luta para a conquista de uma consciência. Neste sentido, ele é exemplar. Mas o que o torna um herói é a vitória sobre a Esfinge. Ao vencê-la, ele assume um destino. A esfinge é, como Jocasta, um dos aspectos da Grande-Mãe, que governa com a participação do Pai. Ao derrotar a Esfinge, Édipo assume inteiramente o elemento masculino de sua personalidade. Derrota e subjuga o feminino. Será doravante, com a sua vitória, aquele que só obedece a si mesmo, um ser autárquico, autossuficiente, característica da felicidade (eudaimonia) como uma meta da vida humana, como dizia Aristóteles na Ética a Nicômaco.

Seu fim, no bosque sagrado das Eumênides, as Benfeitoras, grandes representantes do poder matriarcal, encerrou a sua caminhada, fechando o círculo do destino. A Grande-Mãe retomou finalmente seu filho fálico. Um destino que está além do controle humano, nas mãos dos deuses implacáveis? Será que todos temos um Édipo dentro de nós?

Para Freud, a vivência edipiana é intrínseca à natureza humana do ponto de vista psicanalítico, tanto nos grupos humanos primitivos como nas sociedades modernas. Édipo ocupa um lugar fundamental na vida de Freud, que com ele se identifica. As analogias são muitas: Édipo decifrando o enigma da Esfinge, Freud decifrando a mente humana. Freud descobrindo o complexo em si mesmo, seus conflitos com os pais, e dando alcance universal à ideia. Édipo assumindo o trono de Tebas e a resistência da aristocracia tebana equivalem analogicamente à sua soberania no mundo psicanalítico e a reação do sistema médico oficial que enfrentou em Viena. Édipo expulso de Tebas, e Freud exilado de Viena, velho e alquebrado, conduzido pela filha Anna. O próprio Freud, aliás, proclama essa identificação numa de suas cartas: Embora amparado pela minha fiel Anna-Antígona não estou apto para a viagem.

O homem moderno, como Édipo, procura ver o mundo e as suas coisas só através do aparente, do fenomênico. Confunde o real com o concreto, o verdadeiro com o lógico. Continua preso à grande ilusão de ter que ver para crer (a ciência), não percebendo que grande parte do que é real nós não vemos, é invisível, que é preciso, por isso, ir além dos sentidos e da mente.

A história de Édipo se espalhou a partir de Colono. Os habitantes do lugar sempre disseram que Édipo foi a mais infeliz das criaturas, aquele que se mutilou quando contemplou a verdade. Quando Teseu o recebeu era um mendigo. Os latinos, mais tarde, colocaram no local por onde julgam que Édipo desceu às profundezas da Terra, uma pedra esculpida com os seguintes dizeres: Mater Genuit, Mater Recepit.

Édipo em Colono foi a última tragédia de Sófocles, já quase com noventa anos, escrita perto de sua morte. O Édipo que Sófocles apresenta em sua última obra é muito diferente daquele que aparece em Édipo-Rei. Quase trinta anos separam uma tragédia da outra. Édipo, nesta última, se denomina um mendigo. Pouco antes de morrer, dizia: Peço pouco e me dão menos ainda, e esse pouco me satisfaz. Teria nosso herói aprendido alguma coisa?



A Édipo em Colono (morte de Édipo) segue-se logicamente Antígona, considerada por muitos estudiosos como a peça de Sófocles de maior elevação moral. Após a morte do pai, Édipo, as irmãs Antígona e Ismene presenciaram em Tebas à luta travada entre seus dois irmãos, Polinice (em grego, o cheio de aversão, o querelante) e Etéocles (em grego, o renomado, o glorioso) que em duelo fratricida se mataram. Para cúmulo, Creonte, o tio, irmão de Jocasta, que assumira o reino de Tebas depois da morte de Laio, o rei, ordenou que se desse sepultura ao cadáver de Etéocles, por ter combatido gloriosamente pela pátria, e que se expusesse às aves de rapina o corpo de Polinice, que morrera como rebelde.

Para os gregos, deixar um corpo insepulto era fazer andar a sua alma errando por cem anos à beira do rio infernal Estige e pecar contra as divindades do Hades. Por isso, Antígona, depois de discutir o caso com Ismene, resolveu, sozinha, dar sepultura ao corpo do irmão. Surpreendida quando o fazia, é presa e condenada pelo tio à morte. Com remorsos, Ismene quer compartilhar o destino da irmã. Antígona, porém, rejeita Ismene com altivez. Hemon, filho de Creonte, noivo de Antígona, tenta demover o pai da decisão tomada. Discutem. Não o conseguindo, retira-se precipitadamente. Antígona é levada e encerrada no túmulo dos labdácidas para ali morrer lentamente.

Creonte, entretanto, aterrorizado diante dos males que o vidente Tirésias lhe prediz, revoga a ordem e manda soltar Antígona. Era tarde, ela se enforcara. Hemon ao tomar conhecimento do ocorrido suicida-se também, o mesmo fazendo sua mãe, a rainha Eurídice, desesperada com a morte do filho. Creonte desmorona sob o peso da desgraça insuportável.

A maior parte dos estudiosos que se voltaram para essa tragédia de Sófocles sempre procuraram caracterizá-la como um drama entre o religioso e o político. O conflito entre os costumes imemoriais (enterrar os mortos) e as leis da pólis. A filha de Édipo é vista como uma heroína que enfrenta sozinha a tirania, defendendo a liberdade em nome de leis religiosas, inalienáveis, imprescritíveis, leis não escritas (agraphos nomos vencendo a athemistia, a ausência de justiça).

Antígona é admirada por ter se insurgido contra as arbitrariedades do tio, que contrariam o direito natural da família, e por defender a consciência religiosa contra a opressão do Estado. Esta abordagem, muito comentada por filósofos, escritores, juristas, mitólogos, psicólogos e por críticos do teatro em geral, gregos ou não, ao longo de séculos, é, digamos, uma espécie de interpretação oficial, “humanista”, que poderá prevalecer quando nos aproximamos dessa tragédia.

Se ficarmos só com esse entendimento, acredito, correremos certamente o risco de nos fixarmos num clichê: o conflito entre o Bem (Antígona, a liberdade individual) e o Mal (Creonte, o Estado). Ora, fixarmo-nos desse modo simplista nessa dicotomia seria esquecer a recomendação que os próprios gregos, desde a época em que a sua literatura começou a registrar os mitos, pondo fim à tradição oral, nos deixaram: ao abordar os mitos, é preciso usar a hyponoia, técnica hermenêutica que nos permite descobrir nos textos os vários sentidos ocultos, até aparentemente menos relevantes, que eles guardam, às vezes em profundas camadas, muito diferentes dos sentidos da “superfície”. Além do mais, polarizar os personagens seria simplificar bastante a arte sofocleana, a sua linguagem, muito matizada, toda cheia de ambiguidades, de sentidos dúbios, de enigmas.

Em primeiro lugar, é preciso ir às etimologias dos principais personagens. Antígona significa “aquela que se coloca diante de sua família” (anti, face, a, diante de, e goné, nascimento,origem). Ou seja, “aquela que se pretende melhor do que a sua família”, “que está acima do meio em que aparece.” Não é possível, aliás, outra interpretação para o nome de nossa heroína se observarmos com atenção como Sófocles a construiu como personagem. Chamada por alguns de “a mártir do paganismo”, numa tentativa de compará-la às virgens mártires do cristianismo, Antígona está certamente bem longe de um ser angelical.

Para deixar logo de lado esta ideia, em Antígona há uma altivez e uma autoconfiança que destoam bastante do conceito cristão de humildade. Há em nossa heroína, pelo contrário, muita presunção, uma confiança excessiva nas suas próprias forças. Embora se refira às leis de Zeus e dos deuses subterrâneos para contestar o édito de Creonte, o regente do reino, ela, na prática, só parece confiar, isto sim, nas suas próprias forças. Se a compararmos com Ismene, mais acentuados ficam nela os traços de insubmissão e mesmo os da truculência herdados de seu pai. Desde o início da tragédia (prólogo) ela fala com grande altivez, procurando colocar-se acima de Creonte.

A diferença quanto às origens de Antígona e de Creonte também, acredito, poderá aqui ser invocada para explicar sua postura desafiadora. Antígona é da raça de Lábdaco, de Laio e de Édipo, uma descendente dos labdácidas, portanto, linhagem real orgulhosa e maldita, marcada por taras, anomalias e miasmas, como o patronímico sugere. Laio, pai de Édipo, avô de Antígona, por exemplo, como já se viu, além de introdutor mítico da pederastia na Hélade, era sacrílego. Desde Cadmo, o fundador de Tebas, aliás, tronco ancestral dos labdácidas, os pecados, na família, contra as divindades, eram comuns.

Creonte (kreon, em grego, palavra que lembra soberania, poder,“aquele que se identifica com o poder”), ao contrário, vem de uma família socialmente inferior. Podemos admitir, visivelmente, pelo texto de Sófocles, o quanto Creonte foi tentado, sem dúvida, pela ideia de um golpe para assumir o poder. Há inclusive uma versão do mito que nos informa que Creonte manobrou politicamente para que Etéocles não entregasse o poder ao irmão, como o deveria fazer. Como se depreende de seu difícil diálogo com o filho, Creonte era um burocrata apegado ao poder.

Ao final, Creonte, com o cadáver do filho nos braços, purga a sua hybris: Ó delitos da mente doente, teimosia mortal! De um mesmo sangue oriundos são a vítima e o réu que aqui vedes: ó loucura das leis que ditei! Ó, filho imaturo, que a morte, ai de mim!, imatura levou, não por teu, mas por meu desatino! Hemon vem de haima, sangue, em grego (o nome funciona mais como adjetivo, sanguinolento, o que provoca sangue). Noivo de Antígona, ao que parece mais novo do que ela, rebela-se contra o pai, mas fracassa. Embora alguns o vejam como destemido, é uma figura sem muito “peso” na tragédia sofocleana. Apunhalou-se sobre o cadáver de Antígona.

O que temos que considerar também é que Creonte tinha graves problemas de Estado a resolver (problemas com Argos) e que Antígona, certa na sua posição de defensora das leis divinas, anteriores às dos homens, mas inábil ao defendê-las, era um obstáculo, um desafio perigoso, que poderia fazê-lo perder o controle da situação política de Tebas.

De qualquer modo, pela biografia de Creonte, não podemos considerá-lo, pelo menos à primeira vista, como alguém com pendores de usurpador. Oscilando entre a fraqueza e o oportunismo, pela sua linhagem ele está fora do círculo real; é mais um funcionário altamente qualificado, um regente, no caso, com sérios problemas políticos internos e externos para resolver.

Antígona, no prólogo, trata-o com muita desconsideração, ao chamá-lo desdenhosa e ironicamente de “o grande Creonte”, como que a sublinhar a distância que havia entre ambos. Mais ainda: há a questão da fixação de Antígona no irmão morto, algo que parece beirar a necrofilia e/ou o incesto, o que parece não ter passado desapercebido ao próprio Creonte.

Este traço do caráter de Antígona, muito significativo a meu ver, me permitiu, quando dela tratei mais longamente em outras oportunidades, vê-la, juntamente com Electra, outra figura feminina trágica, como personagens que, no mito grego, dão o primeiro revestimento a um poderoso arquétipo: o das filhas fixadas na figura paterna. Antígona fixada em Édipo e Electra (vide a tragédia de mesmo nome de Eurípedes) fixada em Agamemnon, são ambas extremamente rebeldes. É delas que saem para a Psicologia os complexos de Antígona e de Electra.

Uma explicação que me parece bastante plausível para essa fixação na figura do pai, como a temos em Antígona e Electra, é que se essa figura num primeiro momento reprime os esforços de emancipação, limita, mantém na dependência, ela pode, noutras circunstâncias, como é o caso aqui, se revestir de transcendência, confundindo-se seu simbolismo com o do céu, de um poder divino. Dentro deste enfoque, o pai é muito menos fecundador, genitor (no que se iguala à mãe como geradora), e mais, muito mais, um doador das leis, fonte institucional. Não é por outra razão que no texto de Sófocles não encontramos referências de Antígona a Hemon, seu primo e noivo. Édipo era insubstituível, ele está por trás de Antígona o tempo todo. O pai, para Antígona, era não só o ser que ela queria ter e possuir, o que ela mais queria era com ele se identificar, uma imagem de transcendência.

Outro aspecto importante: o grande problema é que Antígona pretendeu desempenhar um papel masculino num mundo que só dava à mulher papéis de esposa e mãe, tanto no mito como na vida social. Precisamos entender que religião olímpica e patriarcado caminham juntos na Grécia. A única realização possível para uma mulher, socialmente, na “pólis” clássica, era a de levar uma vida exemplar de esposa e mãe ao lado do homem que vivia sua vida de cidadão na agora. Essa é a vida que Péricles, rei de Atenas, por exemplo, aconselhava, como epitáphios, às viúvas dos atenienses caídos em combate: “A glória (kleos) dos homens é palavra viva, levada aos ouvidos da posteridade pelas mil vozes da Fama. Morto o marido, resta às mulheres não dar aos homens assunto para falarem delas, quer no tom de censura, quer no de elogio; a glória das mulheres é não ter glória.” A morte do homem, ao contrário, era sempre heroica, viril, cívica.

Mesmo na tragédia, que, segundo Heródoto, parece confundir as fronteiras do masculino e do feminino, a morte das mulheres é desprovida de andreia (coragem, de andros, homem, enquanto apanágio masculino). Elas não morrem pelo gládio. Elas se suicidam, esta a morte por elas escolhida sob o peso de um infortúnio sem saída. Preferem o enforcamento, que é sempre marca infamante, hedionda, mácula máxima que alguém inflige a si mesmo. O enforcamento é morte de mulher, a morte de Jocasta, de Fedra, de Antígona (Medeia é a grande exceção, a que, em vez de se suicidar, mata). No caso desta última, pior ainda, pois a corda, meio mais adequado para o enforcamento, é substituída pelo laço do seu véu, um dos adornos com que se cobrem as mulheres e que são emblemas do seu sexo. Véus, cintos e faixas, recursos femininos da sedução do masculino, que se transformam então em armadilhas de morte para aquelas que os usam...

Ao longo da tragédia, o raciocínio de Antígona sofre obnubilações desconcertantes. Ela diz que nunca faria pelos seus filhos, se os tivesse, nem pelo marido, o que fizera pelo irmão. A argumentação que usa é fútil: se tivesse marido e este morresse, poderia arranjar outro; se perdesse um filho, poderia vir a ter outro de qualquer homem. Mas agora, que lhe morreram o pai e a mãe, já não pode ter mais irmãos (905-912). Ela, que recorrera aos deuses, nos quais confiara e pelos quais arrostara com a própria morte, diz De que me serve a mim, desgraçada, levantar os olhos aos deuses? (921-922).

Estranha a conduta de Antígona, uma conduta descontrolada, que beira muitas vezes a alienação mental. Causas? Seu sofrimento, seu caráter de índole intratável, o conflito de deveres e valores que ela arma, seu martírio, suas boas intenções, sua falta de prudência, a sentença brutal de Creonte, seu desvario, seu gesto (suicídio), para não ter que assumir o papel de filha epiclera, sua altivez? O próprio Sófocles parece, percebendo a sucessão de erros e da sua inabilidade condução da ação, apressou o desfecho trágico da sua peça, mas deixando para mim, suficientemente claro, o seu enfado com o que aconteceu. Com poucos versos ele arremata tudo, tudo muito rápido e contido. Umas poucas palavras apenas para a morte da heroína. O mensageiro conta à rainha Eurídice: “No interior do túmulo vimo-la suspensa pelo pescoço, presa pelo laço de tecido fino” (1221-1222). Nada mais.

Muitos acham que Antígona se situa acima dos erros do pai e do ódio que envenenou a vida de Édipo e a de seus irmãos. Nesse sentido, ela seria a representante do poder da recusa e da legitimidade da revolta diante de qualquer poder tirânico e político. O grande duelo verbal que ela trava com Creonte, no meu entender, não permite que cheguemos a tanto. Embora ela “acerte” com relação ao motivo maior (o inaceitável procedimento de Etéocles), ela erra, a meu ver, na condução do assunto. O diálogo de Hemon com o pai, por outro lado, nos põe diante do insolúvel conflito entre o poder da pólis e os direitos individuais. Hemon diz ao pai que a cidade chora a sorte da jovem inocente e nobre (Antígona), condenada a uma morte ignominiosa, por haver cumprido uma meritória ação: a de não deixar que o irmão, morto na luta, insepulto, fosse entregue aos cães e às aves de rapina.

O que parece, diante do exposto, é que a luta fratricida entre Polinice e Etéocles foi uma sucessão de erros de ambas as partes. Os fatos são os seguintes: descoberto o incesto de Édipo, os dois irmãos expulsaram de Tebas o pai e irmão. Édipo os amaldiçoou. Os dois príncipes resolveram governar alternativamente a “pólis”. Etéocles foi o primeiro a assumir o poder. Findo o prazo estipulado de um ano, não quis entregar o poder. Polinice se compôs com o reino de Argos. Depois de várias “démarches”, entraram os irmãos em luta, morrendo ambos, aliás como Édipo previra. Creonte, novamente na função de regente, mandou que se organizassem os funerais para Etéocles e proibiu que se desse sepultura a Polinice.

Antígona é a oposição entre dois conceitos jurídicos: athemistia (a decisão política de Creonte) de um lado e themis ou nomos, de outro, esta a sua postura, que representa as antigas tradições, as leis não escritas, da antiga religião, anteriores às da pólis. Nesse contexto, os conceitos de justiça decorrem dos cultos da deusa Themis, que antes governava os oráculos e os ritos. Neste sentido, Themis é a deusa a que os latinos atribuirão o fas, a expressão da vontade divina, a lei religiosa, o direito divino, por oposição ao jus (ius), a coação, o direito profano.


Antígona inspirou diversos autores depois de Sófocles. Afora os que escreveram sobre a peça, mencionemos: em 1533, Alamani traduziu a tragédia para o italiano; em 1573, Baïf o faz para o francês; Jean de Rotrou (1637), na França, nos deu uma Antígona resignada; Vittorio Alfieri publica o texto (tradução) na Itália, em 1783; Jean Cocteau (1927) e Jean Anouilh (1944) usam o tema na França, o mesmo fazendo Bertolt Brecht na Alemanha, em 1948, segundo tradução de Hölderlin.

A história de Antígona começou a ser politizada a partir do séc. XIX. O poeta Gérard de Nerval viu na tragédia de Sófocles uma luta da consciência contra a força e a sabedoria contestável dos poderosos. Jean Anouilh deu um tom político a Antígona. Mais recentemente, tivemos a montagem do Living Theatre.

Antígona marcou presença no teatro e na TV, deslocando-se toda a ênfase para uma questão muito importante nos tempos modernos: a base social das leis e o direito de se desobedecê-las. Todas as minorias, desde então, se apoderam do tema em várias lugares do mundo, transformando Antígona num personagem meio “hiposo”.

Resta-me ao final voltar a Freud, que, de certo modo, “assumiu” o papel de Édipo, conforme as analogias acima expostas. Ao proclamar sua filha Anna como “sua” Antígona, Freud não fez mais do que as confirmar. Alguns dados biográficos de Anna (1895-1982), retirados do insuspeito Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, servirão, acredito, para nos dar uma visão bastante interessante dos pontos em que o relacionamento entre ambos (Freud-Anna) “reproduz” e se “afasta” do mito, principalmente quanto à personalidade da filha, que tem arquetipicamente muito mais a ver com o complexo de Héstia do que com o de Antígona.


Anna e Freud

Segundo o referido Dicionário e sua biografia oficial, Anna foi o sexto e último filho de Freud, uma filha não desejada tanto pelo pai como pela mãe, que sempre preferiram os outros. Deprimida e insegura, não era, ao que parece, muito brilhante intelectualmente. Não podendo estudar medicina, profissão masculina para seu pai, tornou-se professora de crianças e filha dedicada, assumindo, como está no referido Dicionário, o papel de Antígona (?) da casa paterna, como discípula, confidente e enfermeira, depois da morte prematura de uma das irmãs e do casamento da outra, as preferidas do pai.

Freud nunca deixou que homens se aproximasse de Anna. Até a morte, ela cuidou de crianças, escreveu sobre psicanálise infantil, além de ter cuidado da publicação das obras do pai, envolvendo-se depois com o movimento psicanalítico institucionalmente. Numa declaração a Lou Andreas-Salomé, Freud confessou que seus sentimentos com relação à filha eram tão poderosos que de duas coisas não podia abrir mão na vida, o vício de fumar (os seus famosos charutos) e a ligação que mantinha com a "sua" Antígona, que, afinal, não passava de uma Héstia...










Héstia