sexta-feira, 18 de março de 2011

O EROS FRIO

OS LIBERTINOS


Nascido do Caos, juntamente com Geia, Nix, Érebo e o Tártaro, conforme Hesíodo nos descreve em sua Teogonia, Eros (Cupido ou Amor para os romanos) é a força primordial que vai promover a união das quatro primeiras entidades para que o Cosmos se estabeleça. Eros quer dizer estar inflamado, arder, abrasar. No entender de mitólogos, poetas, filósofos e artistas, Eros é uma força fundamental que provoca não só a constituição do Cosmos como garante a sua continuidade. É pulsão que incita a busca do outro como libido, impelindo à ação, atualizando as virtualidades do ser.

O Eros se confunde com o desejo e é nesta perspectiva que Platão, numa alegoria, como está num de seus diálogos (Simpósio), o vê como filho de Penia (Carência, Pobreza) e de Poros (Artifício, Expediente). Ou seja, uma falta causadora de sofrimento, que, através de um meio, procura satisfação. Representado por um adolescente, sempre inquieto, inconsequente, com arco e flechas, símbolo de seu poder que tudo invade, promove a união de todos os seres, inclusive dos que jamais deveriam ter se unido. Dispara as suas flechas, muitas vezes, com uma venda nos olhos, a esmo, pois o “amor é cego”. Confunde-se Eros com o próprio desejo. Seu objetivo maior é a conquista, a posse, tendo em vista uma plenitude que se esgota no próprio momento em que acontece.

Apressado, inconstante, insatisfeito sempre, uma de suas características mais notáveis é a de procurar presentificar tudo. Para ele, o futuro é o presente, o instante, não sabendo nunca esperar. Seu elemento, como se percebe, é o fogo, que sempre lembra expansão, uma exteriorização dinâmica, incessante. A significação sexual do fogo sempre foi destacada em todas as culturas, não se podendo esquecer que a primeira técnica que o ser humano criou para gerá-lo foi a fricção, um vai-e-vem que é a imagem do próprio ato sexual.

Ao longo dos séculos, por razões sociais, políticas e econômicas, o homem, ao se organizar em sociedades cada vez mais complexas, precisou controlar essa energia, discipliná-la de algum modo, pois, do contrário a vida em sociedade se tornaria impossível. Relações humanas pedem reciprocidade, acordo, atenuação das individualidades. Pessoas em cuja personalidade prepondera o elemento fogo, como se sabe, tendem a se impor naturalmente às demais. É delas serem mais impulsivas, agressivas, terem mais iniciativa. Sem nenhuma contenção, regras, leis, a prevalecer só o Eros, isto é, os desejos unilateralmente, não teremos vida social.

A criação de um padrão de comportamento que colocasse o Eros numa perspectiva de reciprocidade foi então criado. Refiro-me a Afrodite, deusa que, como arquétipo, ligado ao elemento água, tem por função a sublimação das formas eróticas de união, retirando-as de um nível instintivo, para colocá-las numa dimensão especificamente humana. Com Afrodite, a deusa do amor, não mais o desejo unilateral.

Difícil, porém, o controle de Eros por Afrodite. Eros é o desejo que não sabe se esconder, sempre procurando chegar ao seu objetivo, valendo-se de todos os artifícios para tanto. Apesar da vigilância da deusa, incontáveis as ocasiões em que Eros dela escapa. Ao longo da história da humanidade, o diálogo Eros-Afrodite ganhou inúmeras expressões na Arte, na Filosofia, na Política, na Psicologia, conforme as épocas.

No século XVII, na França essencialmente cristã, sob a dinastia dos Bourbon, uma corrente filosófica de livres-pensadores, cuja ideologia fincava as suas raízes no naturalismo pagão da Renascença, assume socialmente o partido de Eros, levando suas propostas éticas e morais às últimas consequências. Audaciosos, eram chamados de libertinos. De início, reprimidos, encontraram logo, por um certo enfraquecimento do poder central do país, ocasião para que as suas idéias viessem à luz.

É entre os chamados “mundanos”, aristocratas cultos e viajados, que esta moda se manifesta inicialmente. Famosa era, ao tempo, Ninon de Lanclos, que pontificava nos salões, por sua declaração pública de que era um “ser sem alma”. Ninon (1616-1707) era bela, culta, amante de poderosas figuras do país. A nobreza e a elite do dinheiro, em grande parte, ridicularizavam as cerimônias cristãs, os “bons costumes”. Espirituosos, lidos, cultos, sofisticados, os grandes senhores e senhoras eram livres tanto intelectualmente quanto com relação às suas atitudes e comportamento. Um exemplo disto esta na descrição que Sganarello, personagem de D.Juan, peça de um dos maiores gênios do teatro de todos os tempos, Molière, faz de seu mestre.


Na Filosofia, esse movimento, chamado “Incredulidade” ou “Libertinagem”, se manifestou menos abertamente, menos escandalosamente. Era mais intelectual, ficava no campo das idéias, no fundo, porém, tão ou mais destrutivo para os padrões do tempo que a sua forma mais aberta, aristocrática. Os pensadores do movimento propunham que se submetessem ao livre exame as verdades reveladas pela religião e tudo aquilo que delas decorresse socialmente. Incrédulos, céticos, formavam o grupo dos “libertinos eruditos”. Faziam parte do grupo, dentre outros, Gassendi, Théophile de Viau e Saint-Évremond. Montaigne, Bayle e Fontenelle também poderiam ser nele incluídos no grupo.

MOLIÈRE
O D.Juan de Molière é apresentado normalmente como um dos modelos do libertino. No séc. XVIII, a Libertinagem desenvolverá uma estética com base numa filosofia naturalista e imoralista, cujos melhores exemplos são o Marquês de Sade e Pierre Choderlos de Laclos. Filosoficamente, à época, a palavra libertino designava um ser livre e que fazia disso o seu modo de ser. Posteriormente, logo, num ambiente mais “popular”, tomaria o sentido de conduta desregrada, desavergonhada, depravada.

No séc. XVII, a divisa desses seres libertos era Vivre comme des dieux. Blasfemadores, agressivos, muitos entregavam-se a um epicurismo de baixo nível. Sua meta era de fazer do mundo um paraíso onde tudo fosse possível. Para os seus inimigos, os bien pensants, de idéias conformistas e tradicionais, eram uns insubmissos, uns criminosos. O que os libertinos mais buscavam eram comportamentos que contrariassem as regras morais e políticas. Todos os recursos poderiam ser usados para tanto, esperteza, trapaça, uso de máscaras e, quando conviesse, conforme as circunstâncias, parecer uma coisa e ser outra, sempre tendo em vista o prazer final. É numa sociedade controlada, como a francesa, que esse modo de ser aparece no séc. XVII e vai se desenvolver no séc. XVIII. Deboche, insensibilidade, insubmissão.

No séc. XVII, libertino é o que está pronto a se bater, a acabar até na prisão, a ser atirado até às fogueiras, para afirmar a sua liberdade de pensar. Pensar contra o poder dominante, a religião católica monoteísta que legisla, dirige e condena. Depois, como se verá, a Libertinagem se estenderá à vida cotidiana, às relações sociais, aos costumes, chegando-se logo à licenciosidade e desta à licença sexual. Sempre, uma maneira de pensar e agir contra o pensamento e a ordem dominantes.

Um dos aspectos que a Libertinagem toma é o Preciosismo, um fenômeno tanto social como moral e artístico (literário), já presente na primeira metade do séc. XVII. Este fenômeno se revela através de uma atividade mundana incessante nos salões aristocráticos, em meio a recepções, festas, grandes acontecimentos. Conversação elegante, quase sempre superficial, galanteria. O Preciosismo como movimento é uma reação social contra o mundo anterior, grosseiro, quase que todo voltado, entre as elites mais conservadoras, para prazeres esportivos, caçadas, cavalos.


O movimento se opõe à natureza bruta, à vulgaridade do instinto. Para tanto, colocará em moda um vocabulário de palavras afetadas, uma polidez complicada, perfumes esquisitos, ritualismo. A grande ocupação era o amor, superior, onde os sentidos não entravam muito. Era, no fundo, mais o desejo de distinção aristocrática pela linguagem. Afastar as palavras e expressões populares, os termos vulgares, empregar eufemismos, perífrases, o pensamento mais sutil.

Na literatura, de modo especial na poesia, procurar sempre a perfeição da forma. Como gêneros, o epigrama, o madrigal, o soneto, o rondó e uma intensa troca de correspondência epistolar. Usar antíteses, jogo de palavras, metáforas ricas, alusões, símiles, assonâncias. Tudo muito recherché (rococó), abstrato, nada que machucasse o ouvido. Sempre, por outro lado, a ameaça do exagero, da afetação, do artificial, do pedante. Todo esse movimento se volta também contra as expressões artísticas inspiradas pelo catolicismo.

É certo que São Francisco de Sales e que São Vicente de Paula, já no séc.XVI, haviam tentado uma reforma da Igreja Católica, de suas ordens monásticas, como haviam procurado melhorar o sacerdócio como instituição, promovendo a educação dos padres, incentivando o seu aperfeiçoamento moral, pedindo uma caridade mais ativa. Mas isto foi muito pouco, quase nada. O que havia no séc. XVII, por parte do mundo cristão, era tradicionalismo, conservadorismo, visão estreita dos problemas sociais do tempo.

Além do mais, não podemos esquecer que apesar das tentativas de reforma ou de remodelação da vida social e dos costumes, os aristocratas, principalmente os seus representantes masculinos, na sua grande maioria, permaneciam fixados no seu egoísmo, agressivos, indiferentes, voltados para as suas prerrogativas de machos, apoiados pela Igreja. Os jovens da nobreza passavam algum tempo nos salões, mas grande parte do ano ficavam presos à vida militar, tendo como diversão lutas de espada e cavalos. O Preciosismo era uma espécie de ângulo feminino desse mundo em ação. Molière, em A Escola de Mulheres falará disso.

É neste mundo que a corrente livre-pensadora ganha força do séc. XVII para o XVIII, atualizando o paganismo renascentista e anunciando o movimento filosófico da Enciclopédia. Embora a audácia dos libertinos no começo do séc.XVII tenha sido reprimida até com mortes, o movimento tomou corpo, firmando-se. Um dos lemas do movimento era “A possibilidade de ensinar os homens a serem felizes.”

Charles Sorel, romancista e polígrafo do século, diz “encontrei um meio de os fazer viver como deuses, se seguirem o meu conselho.” Para isto era preciso fazer tábula rasa das crenças comuns e não ter por valor moral senão a generosidade da alma. Ou seja, amar os prazeres do amor, viver uma experiência de voluptuosidade dentro das relações de amizade.


O movimento se reúne em torno de centros como aquele idealizado por Rabelais no seu Gargantua, a “Abadia de Thélème”, uma comunidade que tinha por divisa Fay ce que voudras (fazei o que quiserdes).


Os libertinos do século passaram então a se reunir em torno de um centro que recebeu o nome de “Académie Putéane”. No plano da afetividade, evocar a felicidade, que significará viver num mundo que não conheça a posse do outro nem a ambição. Um verdadeiro libertino não poderia tolerar que os dogmas se sobrepusessem à experiência nem que as paixões à razão. As paixões transformavam o prazer em tormento.

O séc.XVIII é de agitação social, de perturbações políticas, de crises na economia. Como sempre, nesses períodos, os salões aristocráticos resplandecem, a sociedade se torna mais mundana, brilhante. A conquista amorosa tem agora um novo código. As relações amorosas viram um jogo dramático. É a libertinagem como proposta total de vida. Nesse sentido, dois escritores se destacarão no século, ambos ligados à vida militar. Um é Donatien Alphonse François, conhecido como o Marquês de Sade (1740-1814), dono de uma biografia repleta de escândalos. Radicalmente subversivo, contesta todo o sistema baseado no princípio da autoridade em nome de uma vontade de poder que se exerce pela violência em todos os sentidos, inclusive sexual.



A libertinagem de Sade, vivida inicialmente como privilégio aristocrático, recrudesceu a partir de 1768. Depois de uma série de escândalos e de condenações, Sade foi encarcerado e condenado à morte. Fugiu da prisão e novos escândalos o obrigaram a fugir para a Itália. Retornando à França por causa da mãe, moribunda, foi preso. Escreveu vários textos, como o Diálogo entre um Padre e um Moribundo, Os Infortúnios da Virtude, Justine, Cento e Vinte e Oito Dias de Sodoma, A Nova Justine, História Secreta de Isabel da Baviera e outros. Num certo sentido, a obra de Sade poderia ser ligada à Filosofia, pois ele se destaca, dentre os escritores libertinos, por colocar questões e teses sobre a subversão social muito mais pela violência do que pela via sexual.


O maior expoente da Libertinagem no século é, entretanto, Pierre Choderlos de Laclos (1741-1823). Oficial do exército, estrategista, questionou toda autoridade em proveito do prazer. Sua obra mais conhecida, As Ligações Perigosas, é um verdadeiro tratado do Mal. Seus personagens são inesquecíveis, Valmont, Mme. de Merteuil, Mme. de Tourvel... Sempre, nele, os tormentos da paixão de um lado, e, de outro, a vida racional, o “Eros frio”.

Para Laclos, a principal regra no jogo da Libertinagem, na síntese feita por Roger Vailland (Laclos par lui-même) é a observância da sua máxima e estrita virtude: “Sempre em ação, sempre seduzindo, nunca seduzido.” A seguir, as regras: 1) a escolha deve ser sempre meritória; 2) a sedução-ação, como na caça com cães, deve dar todas as chances à mulher a ser perseguida; 3) quanto à queda, executar esta etapa com muita clareza e sem muitas fioritúre, floreios, variações; 4) na ruptura, o mérito está no éclatant (brilhante). Ou seja, romper em grande estilo. Esta etapa é sempre um grande desafio para o libertino, nada de ternuras, romper de tal modo que a vítima deva procurar a morte, real ou simbólica.

Como corolários, a Libertinagem: 1) deve ser o contrário do amor-paixão. O contrário, por exemplo, de La Princesse de Clèves ou de Manon Lescaut. No entender do libertino, o amante apaixonado não escolhe. O deus Eros lança a sua flecha e ele capitula. Esse coup de foudre para um verdadeiro libertino é sempre muito vulgar. 2) O libertino não deve ser um coureur, isto é, não deve viver de um lado para outro, excitando-se por qualquer mulher. O “alvo” deve ter valor, sua conquista deve ser meritória (mulheres que são monumentos de virtude). Por isso, o alvo deve ser escolhido livremente, com muita calma, com a devida apreciação e avaliação. 3) A Libertinagem caminha no sentido contrário do amor erótico. Sexo é termo da biologia (não foi por acaso que uma sociedade tão imatura e primária como a norte-americana inventou essa idiota palavra, sexy, algo impensável para o libertino). O libertino jamais usa a palavra sexo. 4) A Libertinagem exige longa formação, exercício permanente, aperfeiçoamento constante. 5) A execução deve ser magistral, nada de pedantismo, orgulho, ufanismo. A arte pode admitir a cumplicidade, a mais terna das ligações para um verdadeiro libertino.

A Marquesa de Merteuil explica, na sua carta 81, com autoridade marcial, que a educação libertina procura dar à pessoa o controle do seu ego. Para ser um libertino, devemos aprender a dominar as nossas emoções, tornarmo-nos mestres dos nossos sentimentos. A paixão sempre é um elemento perturbador do jogo libertino. A agitação é também inimiga da volúpia. O sonho de muitos libertinos: permanecer em liberdade, apenas algumas amizades escolhidas, não se dispersar. Procurar então a “honesta” volúpia, de modo a esperar serenamente a morte. O libertino não vê nenhum proveito na mortificação dos sentidos. Por isso, sente grande felicidade ao usar formas variadas de prazer. Uma citação muito difundida: “O sábio dos estoicos é um virtuoso insensível; o dos epicuristas, um voluptuoso imóvel.” Para o libertino, o primeiro está na dor sem dor; o outro saboreia a volúpia sem volúpia. E, arrematando: “Todo solitário é sempre uma figura sinistra.”

Nada, por isso, de enfeitar, alongar muito o jogo. Tudo rápido, eficaz. O libertino lembra que uma palavra pode assegurar uma reputação ou levar à ruína. A paixão subjuga, escraviza. Coloca quem a sente num estado de sofrimento. Todo apaixonado é um abatido. Escolher, pois, livremente o objeto da chama. Por isso, sempre sujeito, nunca objeto. Autodomínio completo. Buscar a aquisição de novas técnicas, usar muita criatividade, lucidez acima de tudo. Enfim, nada de ilusões ou vaidade com relação às vitórias.