segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O RETRATO DE DORIAN GRAY



OSCAR   WILDE

Personagem de um romance de Oscar Wilde, Dorian Gray é um jovem inglês de grande beleza, que vive na alta sociedade vitoriana, período que se estende historicamente de 1837 a 1901, marcado fortemente pelo reinado da rainha Vitória. Este período se caracterizou na Inglaterra, dentre outras coisas, pelo auge de uma revolução industrial, por grande prosperidade e paz e por grandes lucros obtidos pelo país em decorrência da expansão das suas fronteiras, expansão conduzida por uma brutal política de colonização em vários continentes e de transferência de recursos para a metrópole. A sociedade afluente, a middleclass, era moralista, puritana e disciplinada. A referência a coisas do sexo era reprimida. A moral vigente sempre associara o grande interesse que as classes mais baixas demonstravam pela vida sexual a algo animalesco e indigno.


RAINHA VITÓRIA
Ao subir ao trono, a rainha Vitória aderiu politicamente aos costumes burgueses, ou seja, os homens eram os representantes da família no mundo exterior, cabendo às mulheres, socialmente, a guarda da moral, da castidade e a proteção do lar e dos filhos. A prática sexual era recomendada somente para fins reprodutivos. As mulheres nada entendiam de sexo, aconselhando-se que quando o assunto fosse mencionado elas se abstivessem de emitir qualquer opinião. O único “prazer” das mulheres: cuidar da casa, dos filhos, dos animais e dos empregados. Os maridos, geralmente, procuravam a satisfação das suas “necessidades” na rua, de preferência no East End de Londres.

Quando a classe superior, a upperclass, constituída pela nobreza e pela aristocracia, se “sujou” por contactos com a classe média, a abordagem da moral vitoriana tomou caminhos diferentes. Uma duplicidade então se instalou nesse período quanto à vida sexual. No mundo dos ricos e bem nascidos desenvolveram-se na prática atitudes bem diferentes das noções proclamadas oficialmente, delas fazendo parte o adultério, a prostituição e a homossexualidade. A noite ocultava todos os vícios no leste londrino, para onde costumavam ir muitos aristocratas e mesmo homens da classe média endinheirados, lugares onde se aglomeravam os bordéis, inclusive masculinos, as salas de espetáculos, de jogos e os antros das drogas, do ópio em especial.


ANTRO  DE  ÓPIO  EM  LONDRES

É de se lembrar que o nome Dorian, adotado por Wilde para designar o principal personagem da novela tem ligações com o mundo grego, mais exatamente com as tribos de origem indo-europeia que por volta do ano 1.000 aC, invadiram a Grécia, destruíram Micenas e Tirinto, impondo-se ao que sobrara da civilização creto-micênica e instaurando costumes ligados à vida militar, a chamada camaradagem bélica, a nudez do atleta e consolidando a prática da pederastia como método pedagógico. 

O adjetivo dórico sempre traduziu para os antigos gregos tanto uma ideia de poder, de belicosidade, de afirmação social como de rusticidade, de boçalidade e de grosseria, eis que foram eles, os dóricos, que, ao dominar a Grécia, a partir do Peloponeso, na virada do milênio, a mergulharam no que se denominou a idade das trevas, um período marcado pelo fechamento de fronteiras e de grande obscuridade social, cultural e comercial. Tal idade estendeu-se mais ou menos de 1.100 aC até o início do período arcaico, por volta de 900 aC. 

PEDERASTIA  NA  GRÉCIA  ANTIGA (CERÂMICA)

Conhecedor da cultura grega, o que parece ter prevalecido na escolha, por Wilde, do prenome Dorian para o “herói” de sua novela foi sobretudo a ligação dos dóricos com a pederastia, por eles institucionalizada como processo pedagógico. Não escapou da observação de Wilde também que esse tema, já presente entre os aqueus, permearia toda a cultura grega pelos séculos afora, inclusive a filosofia, despontando como suas mais importantes figuras a do erasta (amante) e do eromeno (jovem pupilo). 

ÉSQUINES
Não escapou também certamente ao conhecimento de Wilde um fato escandaloso ocorrido séculos mais tarde (período helenístico) entre os antigos gregos, quando nos aventuramos no mundo da pederastia daqueles tempos, o do destino de Timarco. Em 345 aC, Demóstenes e Timarco acusaram Ésquines de ter sido corrompido por Felipe da Macedônia. Numa peça oratória das mais brilhantes, Contra Timarco, que a história conserva, Ésquines foi à réplica, declarando que Timarco nada poderia falar, pois era famoso por sua depravação, muito conhecido, na sua juventude, como erasta (amante) de muitos eromenos  (pupilos) nos meios portuários do Pireu. A argumentação de Ésquines foi acatada e Timarco teve a sua palavra cassada, tendo, além disso, pela pena da atimia, perdido os seus direitos cívicos. Estávamos a esse tempo no chamado período helenístico da história grega, período em que a instituição da pederastia já ganhara fortes contornos de devassidão. 

Dorian Gray foi influenciado por um aristocrata cínico e decadente, lorde Henry Wotton. Arrogante, debochado, libertino, defensor de uma filosofia de vida hedonista, lord Henry Wotton representa, sem dúvida, a postura crítica de Wilde diante dos hipócritas valores da sociedade vitoriana da sua época. Wilde-Wotton tentou se colocar na sua novela, acima de tudo, como um iniciador, um pedagogo, conduzindo um ritual que deveria assegurar, com muito prazer, uma feliz passagem de seu pupilo de uma idade “terna” para outra mais “viril”. O drama de Wilde foi o de ele ter pretendido viver ostensivamente uma instituição iniciática indo-europeia, onde a relação homossexual erasta-eromeno era, digamos, obrigatória, num mundo cujas concepções dominantes a rejeitavam, não realmente, mas apenas na aparência. 


EDIÇÃO ANTIGA
Tanto isto é verdadeiro se atentarmos para o fato de que uma boa parte dos estudos sobre a homossexualidade grega foi escrita em língua inglesa durante o período vitoriano. Os departamentos de língua e de literatura grega em universidades inglesas foram, durante o período vitoriano, e mesmo depois, um refúgio mais ou menos seguro para muitos homossexuais que não queriam maiores aborrecimentos nem ousavam afrontar a sociedade. Wilde era realmente “demais” para seu tempo. Mais: para uma sociedade que precisava manter as aparências, afirmações como esta de Wilde: Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito, eram profundamente provocativas, perigosas.

O   RETRATO
Fascinado pelas palavras de lord Henry, Dorian é tomado por uma ideia, a de que seu retrato, que acabara de ser pintado, iria envelhecer no seu lugar. Foi o que aconteceu. À medida que o tempo passava, Dorian permanecia jovem e belo. Seu retrato, contudo, desfigurando-se, ia incorporando as perversões e crimes que ele cometia. 

Quando Dorian Gray percebeu que o seu desejo fora atendido, que o retrato envelhecia e ele não, trancou-o numa sala de sua casa, impedindo que qualquer pessoa o visse. Um dia, porém, acabou mostrando-o ao seu próprio autor, o pintor Basil Hallward. Com receio de que seu segredo se tornasse público, não teve outra alternativa senão matá-lo.

DORIAN  GRAY


O tempo foi passando, as perversões de Dorian se avolumando. Não as suportando mais, certo dia, numa crise de fúria, com a faca com a qual matara o pintor, apunhalou a tela, gesto que também provocou a sua morte. Enquanto isso, amigos que haviam se apossado de uma chave do quarto onde estava o retrato, conseguiram nele entrar, juntamente com os empregados da casa. Encontram no chão, morto, com o rosto completamente deformado, um velho decrépito, cheio de rugas, uma figura asquerosa. Pelos anéis na mão do velho, reconhecem os serviçais que quem ali jazia era o patrão. Ao lado, o retrato de Dorian Gray recuperara a sua esplêndida beleza.

O romance de Wilde reúne vários temas que sempre chocaram a sociedade londrina, temas que começaram a entrar em moda em meados do século XIX, vida passional, sexo e suas perversões, crimes, homossexualidade, droga (eram famosos os antros de ópio em Londres, muito frequentados pela elite social), prostituição. Quanto à literatura, as “novidades” aprofundavam o esteticismo, o dandismo e o hedonismo, atuando como seu porta-voz o debochado lorde Wotton. As propostas, diluídas nas falas dos personagens, defendiam tanto o culto da beleza como uma forma de resistência ao puritanismo e à hipocrisia da sociedade vitoriana, apontando para uma entrega aos prazeres dos sentidos considerados como bem supremo. 

ALBERT   LEWIN
Em 1944, o romance de Oscar Wilde, mais um sucesso de público do que de crítica, foi transposto para o cinema, pela MGM, realizando-se o filme com a direção e roteiro de Albert Lewin e fotografia de Harry Strading. Nos principais papéis, temos Hurd Hatfield (Dorian Gray), Georde Sanders (lorde Henry Wotton), Donna Reed (Gladys), Peter Lawford (David Stone) e Angela Lansbury (Sybil Vane).

A adaptação do romance para o cinema foi feita pelo próprio diretor do filme, o que os grandes estúdios não permitiam normalmente. Contudo, Lewin, nascido nos USA, de família judia russa, tornara-se não só diretor, mas um produtor e roteirista de reconhecida competência. Seus primeiros trabalhos no cinema datam de 1942, assumindo ele logo depois a função de diretor e/ou de roteirista, sempre demonstrando aspirações culturais e literárias superiores na escolha e no tratamento dos seus temas. 


GEORGES  SANDERS
O Retrato de Dorian Gray é um filme do qual extraímos, sem dúvida, muitas possibilidades de leitura, tantas que podemos considerá-lo como um  roman à clé. Lewin, com seu grande talento e cultura, certamente sabia disso e captou com muita arte o ambiente da Inglaterra vitoriana aprisionada por inúmeros tabus morais e pela hipocrisia. Soube Lewin, magistralmente, também, manter no seu filme as tiradas irônicas e os epigramas de Oscar Wilde através de lord Wotton, soberbamente interpretado por George Sanders, um ator wildeano. 

POSTER DO FILME
A importância de O Retrato de Dorian Gray avulta por nos ter confirmado o quanto gente como Lewin faz falta ao cinema, principalmente ao cinema americano. Formado em literatura britânica pela universidade de Harvard, membro da sua Sociedade de Poesia, o libriano Lewin (nascido em 23 de setembro de 1894), apaixonado pelo expressionismo alemão, foi um poderoso sopro de cultura, de refinamento e de bom gosto que animou o cinema americano por algum tempo. Quanto ao que aqui se coloca, basta lembrar que os três primeiros filmes de Lewin tiveram os seus roteiros baseados em Somerset Maughan (Um Gosto e Seis Vinténs, 1942), Oscal Wilde (O Retrato de Dorian Gray, 1945) e Guy de Maupassant (O Homem sem Coração, 1947).


PATRICK  BRION
Considerado muito culto pelos chefões da MGM para ocupar um lugar mais importante no cinema, Lewin conseguiu, malgré tout, deixar nele a sua marca, trabalhando como produtor, orientando roteiros, escolhendo bons diretores de arte e fotógrafos, cercando-se de grandes atores (tinha especial predileção por George Sanders e soube reconhecer o
BERTRAND TAVERNIER
talento da então jovem Angela Lansbury). Não é por acaso que gente que vê o cinema não só pelo Box Office reconhece sua importância como o fizeram  o francês Patrick Brion (grande figura da história do cinema) na biografia de Lewin que escreveu,
Un Esthète à Hollywood (2002) ou os também franceses Jean Pierre Coursodon e Bertrand Tavernier em 50 Ans de Cinéma Américain, ali registrando a dificuldade de Lewin para viver a sua verdade e de se realizar culturalmente num ambiente dominado pelo dinheiro. 

A narração de O Retrato de Dorian Gray filme é linear, muito simples, seguindo Lewin de maneira fiel a história, procurando sempre evitar, contudo, que seu filme se contaminasse pela publicidade escandalosa que cercava a vida de Oscar Wilde e da qual se valeram as filmagens posteriores da mesma história, de nível muito inferior.  


O  RETRATO  DE  DORIAN  GRAY

O filme de Lewin é extremamente bem cuidado não só com relação à direção de atores, mas sobretudo com relação aos cenários, com notáveis toques decadentistas na direção de arte, pelas inúmeras sugestões apresentadas com relação ao passado, tanto na arquitetura de interiores como com relação aos figurinos. Quanto à música, Lewin pegou firme, dando-nos Chopin e Beethoven. Um detalhe interessante foi o uso que Lewin fez da cor, algo inédito, no que se refere aos planos do retrato de Dorian, num tempo em que praticamente todos os filmes eram rodados em branco e preto, um luxo para a época. 

DORIAN  E  GLADYS
Quanto à direção, para a concepção geral do filme, é de se destacar que Lewin conseguiu traduzir, como poucas vezes vimos no cinema, a atmosfera que Wilde havia criado para situar o seu romance, da qual fizeram parte, além dos traços decadentistas apontados (não só na direção de arte),  temas como os do narcisismo, hedonismo e esteticismo, muito presentes, aliás, na arte das últimas décadas do séc. XIX. 


À   MEIA   LUZ 
Outra “ousadia” de Lewin foi a escolha de Angela Lansbury para o papel de Sybil, apenas uma iniciante à época, revelada em Gaslight (À Meia-Luz), filme de Ceorge Cukor, com Ingrid Bergman e Charles Boyer nos principais papéis. A grande escolha do filme, entretanto, foi a de George Sanders, à época o mais completo e preparado ator para representar personagens como Lord Henry.  Um papel no qual Sanders realmente se superou com relação ao que fizera e talvez com relação com o que viria a fazer mais tarde. Uma curiosidade com relação à escolha do ator para o papel de Dorian Gray: Greta Garbo, famosíssima atriz, teve o seu nome cogitado seriamente para assumi-lo. Entretanto, o escolhido, por seu belo rosto e ambiguidade física, foi Hurd Hartfield, na época totalmente desconhecido. 

Merece especial destaque, para se compreender melhor tanto o romance de Wilde como o filme, foi o que à época da publicação do romance se deu o nome de duplicidade, palavra que caracterizava a vida dupla que muitos aristocratas levavam, indo procurar “diversão” nos bas-fonds da cidade. Há, no livro, na boca de um aristocrata, frases como esta: O crime pertence exclusivamente às ordens inferiores...Eu deveria imaginar que o crime era para eles o que a arte é para nós, simplesmente um método de obtenção de sensações extraordinárias. 


Dorian Gray é um personagem duplo, um esteta refinado e um devasso cujas ações levaram-no ao crime. Não é por acaso, aliás, que Oscar Wilde sempre foi um admirador de obras que tratam do aspecto duplo da natureza humana, como O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, Às Avessas, de J.K. Huysmans, Fausto, de Goethe, e outros.


PLATÃO
Um tema de Platão, de quem Wilde era profundo conhecedor, costuma ser invocado para que o alcance de O Retrato ganhe ainda maior dimensão. Referimo-nos à A República, onde dois personagens, Glauco e Adimanto, apresentam o mito de O Anel de Giges,  por meio do qual Giges fez-se invisível e adquiriu grande fortuna. Eles, então, perguntam provocativamente a Sócrates: Se alguém possuir tal anel, por que deveria agir com justiça? Sócrates responde que, embora ninguém possa ver o corpo, a alma ficará sempre desfigurada pelos males que alguém cometer em vida. Esta é uma das leituras de O Retrato, que podemos resumir através da expressão “vender a alma ao Diabo” para obter vantagens, poderes especiais etc.

ALEXANDR   SOKUROV
Quanto à ideia acima, não podemos esquecer que um dos maiores nomes do cinema atual, Alexandr Sokurov, fez uma tetralogia na qual explorou magistralmente o tema. Falo aqui dos filmes Moloch (1999), Taurus (2001), O Sol (2005) e Fausto (2011), que constituem a chamada tetralogia do poder, sobre três figuras históricas do séc. XX, Hitler, Lenin e Hiroito e uma do séc. XVI, Fausto, que “venderam a sua alma ao Diabo”.


FAUSTO   ENTREGA   SUA   ALMA

A história de Dorian Gray, ganha outra dimensão ao nos permitir ligá-la também a muitas outras da literatura, como as de Ulisses (Homero) e de Tannhäuser (Wagner), além naturalmente das de Fausto (Goethe, Thomas Mann ou Sokurov), já citadas, e de outras, inclusive a de Fernando Pessoa, quando pensamos no tema dos heterônimos. Em todas, mais ou menos claramente, temos a capitulação de um personagem diante de um duplo ou da tentação, da conquista de alguma coisa (imortalidade, poder, conhecimento, beleza, arte etc.) pela entrega da sua alma ao Demo.