terça-feira, 23 de agosto de 2011

O OLHO

A raiz é oc, que dá em Latim oculum, olho em Português. Qualquer objeto em forma de olho é ocelado, pequeno olho, também significando mancha arredondada que lembra olho. O verbo inocular vem da raiz oc (olho), no sentido de fazer entrar, enxertar, cobrir de borbulhas, de olhos. Escritores latinos (Plauto) usavam o adjetivo oculissimus, isto é, amado, querido, como a menina dos olhos, para falar dos amigos mais chegados.

“Sabeis por que choram os olhos? Porque vêem”. (Pe. Antônio Vieira)

Órgão da visão, nos animais e humanos, nos dá o mais importante dos sentidos, simbolicamente associado à luz e à inteligência perspicaz. O olho sempre foi considerado como um órgão receptivo e também como emissor. Nesta última função emite “raios” como expressão de um poder espiritual superior. Atribuem-se aos olhos de algumas criaturas malignas, de feiticeiros, de mágicos, o poder de paralisar ou petrificar as pessoas. Um exemplo é o da Medusa, demônio feminino da mitologia grega, uma das três Górgonas. A Medusa tinha a cabeça enrolada de serpentes, presas pontiagudas como as do javali, mãos de bronze, asas de ouro, que lhe permitiam voar. Transformava em pedra quem a olhasse. Nas lendas célticas, encontramos o rei Balor, possuidor igualmente de um olhar maléfico.

As vibrações que um olho maléfico emite recebem em todas as culturas a designação de “mau-olhado”, o famoso malocchio dos italianos, também chamado de afito, jetatura (do verbo gettare, arremessar, lançar para longe). O mau-olhado causa malefícios, infortúnios. O mau-olhado ou simplesmente olhado afeta a saúde de quem o “recebe”. No Brasil, também chamado de quebranto, feitiço, é sempre influência externa maléfica, coisa artificial, não natural, prática de feiticeiro, de embruxador, sortilégio. Tem também o nome de ebó, de caráter intermediário, guardando relação com despachos, muamba.

O mau-olhado pode trazer desfalecimento, sintoma de estados infecciosos, languidez. Era considerado como doença no Brasil colonial, pedindo benzedura ou benzimento para ser curado. Fazia-se, àquele tempo, uma distinção: quebranto para as pessoas, mau-olhado para plantas e animais. Os jettatori, basta sua presença ou fala, se atacam um enfermo, podem levá-lo à morte. Os textos e depoimentos nos dizem que “os próprios médicos não sabem o que é. De repente, as pessoas sentem umas coisas que sobem e descem; às vezes dão para rir, outras vezes para chorar. Sentem um lado quente, outro frio; ora vêem uns coriscos vermelhos e azuis diante dos olhos...”


Olhos meus (disse então por defender-me)
Se a beleza hei de ver para matar-me,
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me. (Gregório de Matos)

Os nomes são vários: olho gordo, olho grosso, olho de secar pimenteira, olho de matar pinto. O mau-olhado é vizinho da espinhela caída, da urucubaca, da ziquizira e do tangolomango. Espinhela é a designação popular do apêndice xifoide (extremidade inferior do osso esterno). Espinhela caída é qualquer dor na região do esterno, produzida por fadiga, doença, mau olhado. Tangolomango ou tanglomanglo é doença que se origina do feitiço, do mau-olhado, mazela, moléstia, significando às vezes morrer (dar o tangolomango=morrer).


Urucubaca é má sorte no que se faz ou intenta. A base da palavra é urubu, ave agourenta, mais a palavra cumbaca, designativa de um peixe azarento, que, fisgado pelo anzol, estraga o anzol e a pescaria para o resto dia. É sorte mesquinha, sorte torcida. Já ziquizira se emprega mais para doença de causa não esclarecida. Nos meios mais elegantes no Brasil colonial, ao invés de quebranto ou mau-olhado, usavam-se fascinação ou filtro. Esta última, embora não tivesse relação com o olhar, indicava feitiço, encantamento; veio para o Português do Latim, de philtrum, poção, beberagem para despertar o amor. Mais remotamente, temos o verbo grego phileo, amar. Quanto à fascinação, ela funciona através do olhar ao qual se atribui o poder de causar malefícios ou provocar atração irresistível e paralisante exercida sobre pessoa ou animal. Fascinar é submeter pela força do olhar.

Embora não produza os mesmos malefícios que o mau-olhado, o olho grande tem irradiação maléfica. Vários são os registros sobre a necessidade de nos precavermos contra o olho grande. Os registros nos falam de pessoas que perderam sua fortuna, o emprego, que decaíram moral e fisicamente, tudo causado pelo olho grande. As “comadres” contavam que se punha olho grande em negócios, felicidade doméstica, noivados promissores, filhos bonitos... “Muito ruim, por exemplo, é o olho grande de mulher que quer ter filho e não consegue.”

Dentre os gestos condenados relacionados com os olhos, proibidos, que cercam as condutas, está o de não se olhar para trás. Quem olha para trás pode ficar tomado de um pavor inexplicável. Pode também, quando anda pelos matos, adquirir a moléstia de árvores doentes.

LOT E SUAS FILHAS.

A mulher de Lot foi transformada em estátua de sal ao olhar para trás. Os anjos do Senhor recomendaram a Lot, o patriarca, que quando abandonasse Sodoma, cidade do pecado, condenada ao enxofre e ao fogo do céu, não olhasse para trás. Ao deixar a cidade maldita, a mulher de Lot voltou-se, cheia de curiosidade. Tornou-se uma estátua de sal.

“Os olhos são o espelho da alma”.

O tema do olhar para trás se prende às interdições relacionadas com as direções do espaço. Duas delas são perigosas. A esquerda é a sinistra, desfavorável, funesta, lembra o mal, o desequilíbrio, a desordem. A volta para trás é o passado, o regresso, a renúncia ao futuro, o retrocesso, a negação de um destino, já que a vida está sempre á frente. Aquele que se volta para trás, em todas as tradições, é indigno de conhecer, nunca chegará à sabedoria. Essa interdição é válida para todos aqueles que fazem despachos, ebós, mandingas ou feitiços. Os males se voltarão para aquele que faz o trabalho para atingir ou livrar alguém do feitiço, causador do “atraso”, da infelicidade, se ele se voltar para trás. Nas Lemuralia, outro exemplo, quando o pater familias, à meia-noite, na data certa, procurava conjurar os lêmures (fantasmas noturnos e espectros) que perturbavam a vida da casa, além das fórmulas mágicas (exortações) que devia proferir, jogava para eles favas pretas, sem voltar a cabeça. Se assim não procedesse, eles não se afastariam nem se transformariam em entidades protetoras (Manes, os Bons, os Benevolentes).

Em todas as cerimônias de iniciação na antiga Grécia (dionisíacas, eleusinas etc.) não se podia olhar para trás. Os demônios do pavor, do medo e do assombro seguiam de perto o candidato. Seu poder só se manifestava se ele se voltasse para trás. Em Homero, na Ilíada, encontramos a recomendação de Circe a Ulisses para que não se voltasse para trás, isto é, para o reino da morte.

“Os olhos e os anos não medem da mesma maneira”.

Não faz muito tempo, a boa educação doméstica das jovens tinha como item importante a recomendação de que elas não deviam olhar para trás nas ruas, sempre um indício de comportamento inconveniente, de indiscrição, de bisbilhotice. Sinal de respeito, principalmente com relação aos mais velhos, era falar com a vista baixa, sem olhá-los ou desviando olhar. Eram os famosos “olhos modestos”. Falta de respeito é (era) encarar o interlocutor mais velho, mais ainda se ele tivesse alguma dignidade. O olhar fixo significa sempre um desafio; olhar de frente é encarar, aceitar o repto de enfrentar. Esse costume de não encarar vem de longe. Ele aparece (aparecia) na tradição católica durante a missa, no momento em que o padre ergue a hóstia.

Desde a antiguidade, temos o instituto da purgação, ação de purificar. Sobras, resíduos, objetos considerados impróprios eram atirados ao mar ou a um rio, ficando de costas o oficiante, jamais se voltando.

ORFEU E EURÍDICE

Orfeu recuperou Eurídice sob a condição de não olhar para trás, enquanto estivesse no Hades. Ao sair, voltou-se, tomado por um invencível pothos, e a perdeu para sempre. Em Portugal e no Brasil, não se olhava para trás quando se atirava o primeiro dente de leite no telhado. Todas as recomendações para que não nos voltemos para trás têm como origem as cerimônias de iniciação, nas quais o neófito (erva nova) se desvencilhava do seu indesejável passado.

No simbolismo ocidental, seres de um só olho, como no caso dos cíclopes, representam a vida instintiva, brutal, seres de força prodigiosa e gênio laborioso, embora muitas vezes dominados pela crueldade e pelas paixões, como no caso de Polifemo, filho do deus Poseidon (Odisseia). Nos seres de dois olhos (característica dos humanos), o olho direito é ativo, solar; o esquerdo é passivo, lunar. O culto do terceiro olho, por vezes chamado de “olho do coração”, tem relação com a percepção espiritual, associando-se, na Índia, ao deus Shiva e ao poder sintetizador do fogo. No Budismo, o terceiro olho é o da visão interior; no Islã, é o da clarividência sobre-humana. Entre os parsis da Índia há o costume de levar um cão até junto do leito de morte de um moribundo para que ele possa ver o Além com os seus olhos. Já os xamãs astecas afirmavam que podiam ler os mistérios do mundo do espírito nos olhos de um jaguar.

Teus olhos são duas sílabas
Que me custam soletrar,
Teus lábios são dous vocábulos
Que não posso,
Que não posso interpretar. (Fagundes Varela)

Vários personagens do nosso folclore têm estreita ligação com os olhos. Dentre eles, relacionamos dois em especial: Anhangá, um veado com olhos de fogo, gênio da floresta, protetor dos animais, da mitologia tupi, que traz a desgraça para quem o vê (caçadores).
O Anhangá pode também tomar a forma de qualquer animal para assombrar os caçadores ou viajantes. O outro é o Boitatá, uma serpente de fogo, cobra luminosa, que habita as águas. Mata os animais e come os seus olhos. Já no século XVI, o padre Anchieta se referia a esse gênio das praias, dos mares e dos rios. Dizem que o Boitatá é uma alma penada, lembrando o pecado do incesto.

Quando o amigo é certo, um olho fechado e outro aberto; quando o amigo não é certo, os dois abertos”.

Entre os antigos egípcios, o olho era usado como símbolo sagrado, encontrado em todas as obras de arte. É neste sentido que eles usaram o olho do Horus, o deus-falcão, para simbolizar a percepção absoluta. Em todas as tradições egípcias o olho tem natureza solar e ígnea, fonte de luz, de conhecimento e de fecundidade. Esta concepção é retomada pelo filósofo neoplatônico Plotino, séc. III DC, para quem o olho da inteligência humana não poderia contemplar a luz do Sol (espírito supremo) se não tivesse a mesma natureza do astro-rei. A águia, usada como mensageira das divindades uranianas em todas as tradições, é, dentre os seres que vivem na terra, o único capaz de olhar o Sol sem baixar os olhos. Por isso, é usada como símbolo das grandes divindades e dos maiores heróis.

Você conhece o relacionamento entre os seus dois olhos? Eles piscam juntos, se movem juntos, choram juntos, vêem coisas juntos, e dormem juntos, embora nunca vejam um ao outro. A amizade deveria ser exatamente assim. (Citação de Florivaldo Menezes).

A propósito da águia, uma história francesa nos conta que Luis XIV estava passando em revista uma tropa formada. Os soldados baixavam os olhos à medida que ele ia passando. Um soldado, porém, o encarou. Terminado o desfile, Luis XIV mandou chamar esse soldado. “Como te chamas”, perguntou-lhe. O soldado prontamente respondeu: “Majestade, chamam-me de Águia”. “Por que”, perguntou o rei. “Porque a águia, majestade, é o único ser que pode olhar o Sol sem baixar os olhos.” Desde esse dia, o soldado Águia passou a fazer parte do “entourage” do Rei-Sol.

Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus. (Vinicius de Moraes

Na Astrologia, o signo que tem a ver com a visão, com os olhos, é o de Áries. Este signo corresponde ao início da primavera, à passagem da sombra e da obscuridade (Peixes) à luz. Como tal, é um signo intimamente ligado à ideia de um fogo original, impulsivo, impetuoso, cego, rebelde, ao mesmo tempo violento e generoso. O signo de Áries corresponde ao polo yin. Seu temperamento é bilioso, lembrando vitalidade, dinamismo e resistência à fadiga. A zona de sensibilidade está na cabeça e, em especial, nos olhos. Porque lhe falta o elemento terra (limites, precaução, planejamento, definição clara de objetivos), o ariano costuma usar a sua energia sem saber bem como vai, por onde vai. Interessa-lhe mais a ação, o ímpeto, o rompante. A estrada é normalmente para o ariano uma pista na qual as competições automobilísticas (são fanáticos por Fórmula Um) ocupam um lugar mais importante que o respeito aos outros, à paisagem ou ao lugar de chegada. O ariano não gosta de ser ultrapassado e nada o enerva mais que os engarrafamentos. Fica “cego” quando contrariado, apelando invariavelmente para um comportamento agressivo, não costumando “ver por onde vai”. Muitos arianos são imprudentes, não tendo olhos para obstáculos ou para regras e regulamentos. Costumam ir aos excessos e aos abusos com facilidade, não gostando de “ver ninguém à sua frente”. Por isso, não cuidam bem do seu organismo, ativando-o até o limite de suas possibilidades.

Toda tristeza que anda nos meus olhos veio de ti, meu pai, que pelos ermos choraste olhando as águas do Mondego ( Alphonsus de Guimarães)

NARCISO (CARAVAGGIO)

Um personagem muito famoso da Mitologia grega é Narciso, cuja história está ligada aos olhos, ou melhor, ao ato de olhar, de perceber os outros, a vida à sua volta. Narciso (narké, em grego, é entorpecimento, embriaguez, tontura), antes de receber este nome, era um jovem belíssimo, admirado por todos, todos se apaixonando por ele. Sempre permanecendo distante e indiferente a todos, o jovem era amado, não amava. Era visto, não via. Uma jovem ninfa chamada Eco, perdida de amores por ele, era solenemente ignorada, repelida. Nenhuma palavra do jovem, nenhum olhar. A jovem ninfa deixou de se alimentar, definhou, transformando-se num rochedo, capaz apenas de repetir os derradeiros sons que lhe chegavam. As demais ninfas, furiosas com a insensibilidade do jovem, pediram vingança à deusa Nêmesis, que prontamente condenou o jovem a amar um amor impossível.

Aproximando-se o jovem de uma fonte para mitigar a sua sede, debruçou-se sobre o espelho das águas e se viu. Viu a sua própria imagem e não mais conseguiu se levantar, sair do local. Apaixonara-se pelo seu próprio reflexo. O mais belo dos seres humanos, prisioneiro das águas, desceu então às suas profundezas. Morreu ao se ver. Procuraram o corpo. No lugar, apenas uma flor delicada e amarela, cujo centro estava circundado por pétalas brancas. Era o narciso. Narcisismo: amor pela própria imagem. O indivíduo prisioneiro do seu eu, aquele que não vê ninguém, a libido desinvestida dos objetos externos de amor e afeto. Ausência de reciprocidade. Narciso, o embriagado de si mesmo.

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela (Casimiro de Abreu)

A linguagem dos olhos é extensa. Temos, por exemplo, olho da rua, no sentido de despedir, dispensar, lugar para onde vão os enjeitados; olho de seca-telha ou seca-pimenteira, olhos cobiçosos; olhos de retrós, embaraçados, vesgos; olhos aboticados, grandes, projetados para fora; olhos de cabra morta, tristes, lânguidos, sem expressão; olhos de víbora, pequenos, luzentes; olho de lince, visão aguçada; olho-de-gato, sinalização de estradas; olho de águia, o mesmo que de lince; olhar de mormaço (como os de Capitu), olhar langoroso, de pálpebras semicerradas; olhar de gata morta ou olhar de peixe morto, olhar triste; olho clínico, capacidade de antecipar diagnósticos; olhar de vaca laçada, olhar para baixo, abatimento; olho do furacão, estar numa situação muito difícil; olhos de sapiranga, olhos avermelhados (blefarite); comer com os olhos, cobiçar; encher os olhos, ser agradável à vista; entrar pelos olhos, fácil de perceber; saltar aos olhos, ser evidente; ter os olhos maiores que a barriga, gula; olho do mundo, o Sol; olho d’água, nascente; olho de boi, selo e abertura em tetos ou paredes; olho de sogra, docinho feito com ameixa; olho mecânico, para registrar a ordem de chegada de concorrentes; olho por olho, dente por dente, qualquer vingança na mesma proporção ou equivalente ao mal sofrido; comer com os olhos, desejar muito; meter pelos olhos adentro, explicar de modo muito claro; fechar os olhos, fingir que não percebe; pelos seus belos olhos, sem esperar qualquer retribuição em troca; ter debaixo do olho, não desviar a atenção; ver com bons olhos, aceitar de bom grado; olho-de-fogo, indivíduo albino; olho-de-peixe, calosidade ou objetiva (lente),olhômetro, o olho como instrumento de medição; olheiro, observador, informante; e olhe lá, no máximo que se pode conceder ou dar; antojar, pôr diante dos olhos; pregar o olho, dormir.