sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - A IRA - I

    
A  IRA  ( HIERONYMUS  BOSCH , C.1450 - 1516 )
                                    
 A ira se define, no geral, como um intenso sentimento de ódio, de cólera, de aversão, dirigido a uma ou mais pessoas em virtude de alguma ofensa ou insulto. Pode ser também rancor generalizado em função de alguma situação irritante. Expressa-se a ira, muitas vezes, como fúria, raiva, indignação.No latim, ira é sinônimo de rabies, que em português transformou-se em raiva. 

IRA
(GIOTTO, 1266-1337)
Muitas vezes, o colérico, o cheio de ira, manifesta o seu descontentamento de modo muito agressivo, inclusive com violência. Por isso, falamos de acessos, de crises, de explosões de cólera. Podemos descarregar nossa ira de vários modos, com violência, ferozmente ou usando de solércia, de astucia. O solerte, mesmo que não tomado totalmente pela ira, é, neste exemplo, o que age para causar muito mal a alguém com aparência de honestidade. O solerte é hábil, ardiloso, sabe despistar, é cheio de artimanhas. 
  
Em muitos casos, a ira é recalcada, explicando-a Freud, nesse caso, a partir do complexo de Édipo, ou seja, hipótese em que ela se volta contra um rival numa situação amorosa. Pode também a ira, assim, ainda com Freud, derivar-se do amor, sendo ela recalcada, coexistindo, em muitos casos, ambos os sentimentos.

Na literatura, a mais conhecida ilustração do que está acima pode ser encontrado num poema de Catulo, 84 aC-54 aC, poeta latino. É o famoso verso odi et amo (odeio e amo), que, segundo um dos melhores textos escritos sobre o jogo do amor (há tradução em português), Eros e Pathos, de Aldo Carotenuto, nos diz que o conflito entre estes dois sentimentos, o ódio e o amor, está sempre presente numa relação amorosa, mesmo que raramente atinja o limiar da consciência, como diz o autor. Completando o parágrafo, ele conclui: A prática clínica ensina que onde está presente um sentimento toma vida e consistência também o seu contrário. Os opostos que, com a sua interação, dilaceram o indivíduo, constituem o dinamismo secreto da vida. O amor reclama, pois, e até exige, a co-presença do ódio. 


CATULO
Pela importância de Catulo na poesia lírica latina, vale registrar aqui, ainda que brevemente, um pouco da história desse famosíssimo dístico Odi et amo. Nascido em Verona, em 87 aC,, viveu ele a maior parte de sua breve vida (apenas 30 anos) em Roma. De família nobre e rica, desde cedo dedicou-se às artes (poesia principalmente), frequentando   os meios sociais mais elevados, cultos e corruptos da cidade. Apaixonou-se pela bela e depravada Clódia, que ele chamou de Lésbia, esposa do cônsul Metelo Céler, imortalizando-a no mencionado dístico, uma estrofe mínima de dois versos, a seguir exposta e traduzida:   
            
Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.
Nescio: sed fieri sentio et excrucior.
(Odeio e amo. Por que agir assim? se me perguntas.
Não sei: só sei que o faço e sinto que me torturo )

Justos ou injustos, a ira, o ódio ou a raiva têm um campo semântico vasto: execração, gana, malquerença, rancor, sanha, zanga, repulsa, asco, aversão, fastio, nojo, ojeriza, repelência, repugnância, hostilidade, antagonismo, querela, rivalidade, agressividade, cólera etc. No fundo, a ira é um sentimento de irritação, violento, que nos leva a querer mal a alguém e, muitas vezes, a nos alegrarmos com o mal que lhe acontece. Embora possamos apontar algumas diferenças entre as palavras citadas, elas acabam se confundindo, sendo usadas como sinônimos. Muitas dessas palavras já não se usam mais, ficaram para trás, perdidas nos textos de escritores do passado.

De ira vieram palavras como iroso, iracundo e irado. A primeira palavra designa aquele que está possuído e dominado por grande ira, por esta grande paixão, que pode ser passageira. Iracundo é o habitado pela paixão. Irado indica o ato de irar-se alguém. No homem irado, a ira é como um fogo que queima. No iroso, como
ANTÔNIO  VIEIRA
um incêndio que abrasa. No iracundo, como matéria inflamável que a menor faísca põe em chamas. Um bom exemplo deste último nos foi  indicado pelo padre Antônio Vieira, gênio da língua portuguesa, ao falar de Moisés. Trata-se do caso em que ele, com as próprias mãos,  atacou um egípcio, prostrando-o morto a seus pés. Vieira sentenciou: Moisés era arrebatado e iracundo. 


CRUZ  E  SOUZA
O grande poeta negro catarinense, Cruz e Souza, um dos grandes nomes do Simbolismo brasileiro, filho de escravos alforriados, referiu-se a um ódio bom que o alimentava nos combates contra o obscurantismo da época: Ódio são! Ódio bom! Sê meu escudo/ contra os vilões do amor que infamam tudo/ Das sete torres dos mortais pecados! Manzoni (Alessandro), famoso autor do século XIX, italiano, dizia: é uma das vantagens deste mundo poder odiar e ser odiado sem se conhecer

O ódio pode tomar muitos caminhos. Quando se volta contra a humanidade, indicando falta de sociabilidade, tem o nome de misantropia. Já misoginia é a aversão a mulheres em geral; muito usada também a palavra para designar homens que não gostam de fazer sexo com mulheres. Já a xenofobia será a aversão a estrangeiros. O ódio religioso ou político aparece como fanatismo ou intolerância. 

Sob o nome de lissa (lyssa, grego) são descritas umas pústulas que aparecem na parte inferior da língua de pessoas mordidas por um animal que sofre de raiva. Atribuía-se a raiva canina a um verme, lissa, que causava a doença. No ser humano, a mordida deste cão causaria a hidrofobia, aversão ou terror mórbido da água. Sabe-se hoje que a hidrofobia ou raiva é uma doença infecciosa causada por um vírus, transmitida ao homem pela mordida de animais infectados, como o cão, o lobo, o gato ou o morcego, caracterizada por lesões no sistema nervoso central que podem provocar convulsão, tetania e paralisia respiratória. 

Na mitologia grega, os deuses, os heróis e os mortais que nela aparecem apresentam algumas vezes um comportamento inexplicável, uma conduta totalmente imprudente, que, conforme as descrições, é proveniente de um obscurecimento ou confusão mais ou menos longa da mente, causando descontrole da vontade. Uma espécie de loucura temporária atribuída à ação de uma potência
HÉRCULES  CRIANÇA
demoníaca externa. Essa potência tinha o nome de Lyssa. Tomado por ela, Hércules, por exemplo, chega a um tal estado de fúria, a um ódio inexplicável; ainda bem jovem, esmagou a cabeça de Lino, seu professor de música, só porque ele o repreendeu por ter cometido um erro. É também tomado por Lyssa que o nosso herói mata a sua família. Lyssa, às vezes, é chamada de Anoia, etimologicamente ausência de consciência, raiva furiosa, que provoca a perda total da faculdade de pensar, de raciocinar.

A expressão física mais contundente da raiva nós a encontramos na Mitologia grega na figura do deus Ares. Pelas suas histórias, é Ares, sem dúvida, um dos  mais odiosos personagens do mito grego; sempre enraivecido, é aquele que excita o ódio, o desgosto, a indignação. É apelidado de bebedor de sangue, de senhor das lágrimas, de flagelo de deus etc. Onde ele aparecia só havia sofrimento, dor, guerra, inimizade, luta. Seu nome, Ares, tem relação com palavras que lembram enfurecimento, desgraça e infortúnio. 

É Ares filho partenogênico da deusa Hera; sua geração foi motivada pelo ódio que a deusa sentia por Zeus, seu marido, devido ao grande número de seus filhos espúrios, “semeados” fora do casamento. Somente Afrodite o acalmava, o amolecia, suavizando-o um pouco. Terão, ele e a deusa, uma filha chamada Harmonia, isto é, filha da guerra e da paz. Mas terão também, por outro lado, dois monstros como filhos, os gêmeos Fobos (Pavor) e Deimos (Horror). 


ARES
Ares, como toda divindade grega, tinha o seu séquito. Dele faziam parte, além dos gêmeos, Éris, a deusa da discórdia, as Keres (destruição, ruína, podridão), monstros femininos alados, que se alimentavam do sangue de moribundos nos campos de batalha. Sempre com roupas ensanguentadas, garras aduncas, corpo coberto de serpentes, aproveitavam elas para liquidar os agonizantes. A divindade Enio também fazia parte do grupo; era um demônio feminino devastador, sempre presente nos campos de batalha. Lembremo-nos ainda de diversos outros filhos que Ares teve, todos medonhos, violentos, assassinos, salteadores, brutais, espalhados pelo mundo.

Esplêndido fisicamente, Ares andava sempre armado. Sua presença era anunciada por seus uivos, por seus gritos e pelo barulho de suas armas. Entre os deuses do Olimpo, era o mais distante de Zeus, sempre odiado e evitado por todos, ninguém desejando a sua companhia. Entre os romanos, Ares é Marte. Na Astrologia, é o planeta Marte, simbolizando o fogo dos desejos, a vida instintiva, o dinamismo, a violência, o desrespeito pelo outro e também a genitália masculina. 

Os latinos, por exemplo, tinham o adjetivo rabidus, que significava furioso, enraivecido. Virgílio, o grande poeta latino, usa esse adjetivo para nos descrever a boca espumante da Sibila em delírio. Para o poeta, o cão tricéfalo infernal, Cérbero, tinha uma fame rabida (fome raivosa), com a suas bocarras sempre espumantes. 


DIES  IRAE  ( HANS  MEMLING , 1430 - 1494 )

O frade franciscano Tommaso de Celano (séc. XIII) colocou a ira numa famosa obra, Dies Irae, O Dia da Ira, para profetizar sobre os acontecimentos do Juízo Final. Consta que nesse dia ter-se-á um calor como nunca houve. Nesse dia, o Sol e a estrela Sirius, a estrela da canícula, da constelação do Cão Maior, estarão em conjunção. Já os profetas do fim do mundo, nos afirmam também que esse acontecimento se dará num tórrido dia de verão, estação em que as pessoas pecam mais.

LORD   BYRON
A inveja, a raiva e o ódio costumam caminhar juntos. O verbo latino é odi. Como dizia Byron, poeta inglês dos sécs. XVIII-XIX, o ódio é o prazer mais duradouro; os homens amam com pressa,
BALZAC
mas odeiam com calma. A energia do ódio é apontada por vários filósofos, psicólogos e escritores. É de Balzac, escritor francês, séc. XIX, esta observação: O sentimento que o homem suporta com mais dificuldade é a piedade, principalmente quando a merece. O ódio é um tônico, faz viver, inspira vingança; mas a piedade mata, enfraquece ainda mais a nossa fraqueza.

Chamamos de ódio figadal, profundo, visceral, o que vem do fígado porque a bile, secreção desse órgão, foi sempre um símbolo do ira, segregada justamente sempre sob a ação nervosa que a produz. O fígado é o lugar dos movimentos de cólera, do fel, da animosidade, das intenções deliberadamente venenosas, o que
SÃO  JOÃO  DA  CRUZ
explica o seu sabor amargo.  No Islã, por exemplo, o fígado é o lugar das paixões e da dor. S. João da Cruz, poeta místico espanhol, interpretando Jeremias (Lamentações), liga o fel à memória, à morte da alma, à privação de Deus.  Neste sentido, o fel se opõe ao vinho, pois é o contrário da bebida da vida, usado na eucaristia, que permite a metamorfose. Cheios de fel, não mudamos. Fel e bile se equivalem: lembram amargor, sempre um estado de espírito que reflete agastamento, azedume, impulsos destrutivos.

A vesícula biliar é o lugar onde simbolicamente encontramos as expressões da agressão, do amargor, do mau humor, da irascibilidade. Agressão não como ataque frontal, agressão como postura inamistosa, constante, cultivada, antipática, irritadiça. Os coléricos (cholé, bile, e aírein, alçar) precisam deixar fluir a bile, símbolo da energia vital retida, de algum modo. Se não o fizerem, poderão ser levados a estados de pressão e de excitação prolongados, causadores de situações hipertensivas desastrosas. 

Um outro aspecto deste problema "biliar" é o da melancolia (bile negra), mal causado por excesso desse tipo de bile que leva os indivíduos dele acometidos à lentidão, tristeza e prostração. Era, no passado, o que se chamava de abatimento, apoucamento, atrabilis (atra, negro, sombrio), marasmo, soturnidade, taciturnidade, neurastenia. Este estado aproxima-se daquilo que hoje tem o nome de psicose maníaco-depressiva (problema mental marcado por grande oscilação emocional, alternando-se nele fases de mania (excitação, hiperatividade em grego) com fases de depressão (sentimentos de inadequação, retardamento de ideias e movimentos, ansiedade, tristeza, ideias de suicídio, às vezes). Muitas doenças de pele, eczema, erisipela, psoríase, lúpus eritematoso cutâneo, pênfigos, melanomas e outras, têm relação com o ódio e a raiva. Estas doenças nos remetem sempre uma ideia de autoagressão. 


CONDE  GOBINEAU
A ira e o ódio aparecem na vida social de diversas formas. Uma delas, geradora de muita violência, de guerras, é o racismo. Nos tempos modernos, um dos grandes teóricos do racismo foi Joseph Arthur, o Conde Gobineau (1816-1882), diplomata e escritor francês. Serviu na Pérsia, na Grécia e no Brasil, onde manteve muito cordialmente relações intelectuais com D.Pedro II. Dentre outros livros, deixou um, muito famoso, o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, no qual apresenta ideias da
CHAMBERLAIN
superioridade da raça nórdico-germânica sobre as demais. Sua teoria foi explorada pelos pangermanistas (pangermanismo: agrupar todos os povos de origem germânica sob um só Estado) e pelos adeptos do nacional-socialismo (nazismo). Na Inglaterra, um dos grandes defensores dessas ideias foi Houston Stewart Chamberlain (1885-1927), escritor alemão de origem britânica, autor de uma obra sobre Richard Wagner, cuja filha (Eva) desposou. É um dos precursores do nazismo.

O racismo ganha expressão através de doutrinas ou sistemas políticos fundados sobre o direito de uma raça, considerada pura e superior, de dominar outras. O racismo se expressa também por preconceitos mais ou menos extremados contra indivíduos pertencentes a grupos regionais menos adiantados economicamente dentro de um mesmo país. Na Itália, por exemplo, temos o preconceito dos habitantes do norte, mais adiantado economicamente, contra os do sul, os chamados meridionali ou terrone. O mesmo acontece, aliás, aqui entre nós com relação aos nordestinos que vieram de seus estados viver no sul, em busca de melhores condições de vida. É tanto o preconceito que mesmo os nossos dicionários já o registram. Baianada, por exemplo, passou a ser sinônimo de coisa mal feita, patifaria, baixaria.

O racismo também é encontrado naquela atitude que chamamos de xenofobia, palavra de origem grega que quer dizer aversão ao estrangeiro, àquilo que é diferente dos nossos valores, ao que é, em suma, diferente de nós. Foram os antigos gregos que criaram a palavra para designar aquele sentimento diante de povos que não participavam de sua cultura e, sobretudo, que não falavam a língua grega. O som da língua desses povos, aos ouvidos gregos, soava bar, bar, bar... Eram os bárbaros, para os gregos, grosseiros, não civilizados. Já na Linguística, a palavra barbarismo, como ensinam os mestres, descreve a tendência de se usar indiscriminadamente palavras e expressões de outras línguas, como nós fazemos aqui no Brasil, ao substituir quase que totalmente, o Português pela língua dos nossos neocolonizadores norte-americanos em muitas áreas da nossa vida (negócios, computação, música popular, televisão, publicidade, comércio, tecnologia etc.).


SANTO  TOMÁS 
Alguns filósofos gregos, como os peripatéticos, falavam de uma ira justa, enquanto outros, como os estoicos, sempre se referiram a esse sentimento como vicioso. Santo Tomás considerava a ira como uma paixão e, por isso, nos dizia, olhando-a sob um ponto de vista formal, que ela sempre proviria de uma alma apetitiva, ou seja, seria sempre um desejo de vingança. Sob o ponto de vista material, afirmava que a ira estava relacionada com alterações fisiológicas, com aquecimento, calor, estados que chamamos de coléricos.