sábado, 18 de janeiro de 2014

HÉRCULES E OS DOZE TRABALHOS


  
   
                 
 Hércules é um perseida, um descendente de Perseu, filho de Zeus (chuva de ouro) e de Danae (água), um dos maiores heróis gregos, famoso matador da monstruosa Medusa. Perseu e Andrômeda tiveram vários filhos. Dois deles são muito importantes para a história de Hércules, Alceu (a força) e Electrião a luz, o brilho). O primeiro tornou-se pai de Anfitrião (o que recebe) e o segundo de Alcmena (a forte), primos, que, unindo-se, geraram uma criança a que se deu o nome de Alcides (a força) como está explicado em nosso texto “As leituras do ciclo de Hércules”.

ZEUS E HERA
 Sob o ponto de vista divino, a história de Hércules  tem  um outro elemento: Zeus desejava um filho que tanto pudesse ajudar os imortais como os mortais, fazendo a ligação das forças terrestres com as forças celestes. Uma noite, sob os traços de Anfitrião, então ausente, Zeus chegou ao palácio. Voltava da guerra, que terminara, segundo narra a Alcmena. Ama a mulher com sofreguidão. Para tanto, chega a ordenar a Hélios, o Sol, que deixe de se levantar por três dias seguidos. Parte depois, a pretexto de resolver negócios.

Esta história foi utilizada, entre os romanos, por Plauto, autor
latino, como tema de uma de suas comédias: Anfitrião. Tendo notado Alcmena, Júpiter assume a aparência de seu marido, o general Anfitrião, que se encontrava comandando seu exército, longe da pátria. Júpiter, nessa empreitada, é auxiliado por Mercúrio, que toma a forma de Sósia, escravo de Anfitrião.

Uns dias depois, o verdadeiro Anfitrião aparece. Contou à mulher a história do término da guerra. Alcmena ficou muito
TIRÉSIAS
perturbada, mas nada falou. Desconfiado, Anfitrião foi a Tirésias, o cego, o maior adivinho da Grécia. Voltou com a notícia da gravidez da mulher. Tentou matá-la, arrastando-a para uma fogueira. Zeus, onisciente, mandou uma chuva providencial, salvando Alcmena. Depois de algumas tentativas infrutíferas de matá-la, percebendo que um poder divino atuava, perdoou a mulher. Uniu-se a ela e, por artifícios divinos, Alcmena passou a gerar então dois irmãos, gêmeos, um divino, filho de Zeus, e outro humano, filho de Anfitrião, que receberá o nome de Íficles (etimologicamente, o gloriosamente forte).

Nesse ínterim, um acontecimento no Olimpo quase pôs tudo a perder: Zeus, tomado pela deusa Até (o Erro, a que provoca distúrbios da razão), proclamara orgulhosamente numa reunião olímpica que um descendente seu, um perseida, nascido de uma virgem, seria o rei de Argos e, portanto, de toda a Grécia. Além disso, como herói, faria a ligação entre o mundo humano e o divino. Hera, tomando conhecimento do que seu boquirroto marido falara, tudo fez para impedir o nascimento do nosso futuro herói. Para tanto, enviou sua filha Ilícia, deusa dos 

MOIRAS
partos, juntamente com as Moiras, as donas do fio da vida à Terra. Hércules, contudo, acabou nascendo. Enquanto as enviadas de Hera retardavam o nascimento de Hércules, ela, Hera, havia se dirigido a Argos para fazer com que o nascimento de um outro descendente de Perseu ocorresse antes do de Hércules, a fim de que ele e não este herdasse o título de rei. Assim aconteceu, nascendo Euristeu, também neto de Perseu.

Hera passou desde então, por todos os meios, a perseguir Alcmena e seu filho Alcides, já aceito por Anfitrião. Numa noite, Hera enviou duas serpentes com veneno mortal a fim de que, picadas, as duas crianças morressem. Demonstrando já o que viria a ser mais tarde, Alcides, então um infante de poucos meses, as estrangulou com violência. Alcmena, para salvar Alcides, temendo a perseguição de Hera, resolveu expô-lo, abandonando-o numa montanha. O episódio das serpentes foi usado como tema literário, dentre outros poetas,  por Píndaro e Teócrito.

A obra de Píndaro parece ter por base uma profecia do vidente
PÍNDARO
Tirésias, que previu para Hércules um caminho grandioso ainda que cheio de provações, um caminho que o levaria à imortalidade. Muitas cidades gregas, quando invadidas e ocupadas por inimigos, usavam a imagem de Hércules estrangulando as duas serpentes como um emblema com o sentido de uma convocação à luta para a libertação de opressores. Pherecydes, escritor grego contemporâneo de Píndaro, entretanto, deu um sentido diferente ao episódio das serpentes: ele seria uma espécie de ordálio. Anfitrião, desejando saber qual dos dois filhos teria nascido dele, teria colocado a serpente no leito das crianças.     

Segundo antigas tradições, Hércules teria nascido num dia que corresponderia hoje à nossa quarta-feira. Para os antigos gregos, entre os do povo, quem nascesse nesse dia, consagrado a Hermes, ficaria preso a uma espécie de maldição, obrigando-se, enquanto vivesse, a trabalhar pelos outros.

 A criança abandonada por Alcmena dormia quando foi encontrada por duas divindades em visita à Terra. Eram Palas Athena e Hera; a primeira sabia de que se tratava enquanto a segunda de nada sabia. Sugere Athena que Hera a amamente, um subterfúgio para que, assim, a criança se tornasse inteiramente imortal. Acolhida por Hera, a criança, de um modo estabanado, 

RUBENS - A ORIGEM DA VIA LÁCTEA
 se atirou ao seio da deusa; o leite jorrou em esguichos, formando um risco luminoso no céu, dando origem à Via Láctea, a Galáxia. Hera, com o seio ferido, atirou a criança longe. As deusas continuaram o seu caminho. Palas, em seguida, voltou para resgatar o menino, tornado em parte imortal pelas gotas do leite de Hera que conseguira sugar, entregando-o de novo a Alcmena, com a promessa de que Zeus os protegeria. Nos céus, o rastro luminoso seria doravante o símbolo do caminho por onde os heróis iriam ao Olimpo. Em todas as tradições esta Via aparece como um lugar de passagem, criado pelos deuses, para unir os mundos divino e terrestre. Para maiores detalhes, veja neste blog matéria sobre a Via Láctea.

A educação dos primeiros anos de Hércules seguiu o modelo tradicional da criança grega da época. Anfitrião ensinou o menino a  conduzir carros de guerra, arte que ele aprendeu com rapidez espantosa, superando logo  em maestria seu pai terrestre. Para ensinar as letras e música aos irmãos, é convocado Lino, músico famoso e homem de letras, irmão de Orfeu. Enquanto Íficles aceitava docilmente o que Lino lhe
LYSSA
transmitia, Hércules mostrava um comportamento irritado, agressivo, indisciplinado. E tanto o mostrava que numa crise de fúria (tomado por Lyssa, a Raiva) esmigalhou a cabeça do professor com violenta pancada de uma lira. Indo a julgamento, soube defender-se tão bem que conseguiu absolvição. O que nos fica desse período, segundo informações de muitos biógrafos, é que Hércules, nessa fase de sua vida, sempre se mostrou muito interessado nas disciplinas militares e esportivas, nada querendo com as coisas do espírito, irritando-se muito quando lhe falam delas. Esta atitude ele a manteria até o fim da sua vida.


CHIRON
Anfitrião o enviou então para o campo, encarregando-o de cuidar dos seus rebanhos. Lá foi adestrado nas armas por Castor, um dos Dióscuros. Na gruta do centauro Kiron, recebeu
HÉRCULES E O CENTAURO
ensinamentos sobre as cinco grandes artes que todo herói deveria dominar: clínica, mântica, cinegética, agonística e hípica, nada tendo fixado quanto à dimensão espiritual delas. Consta que Hércules, a essa altura, com um ar selvagem, passava grande parte do seu tempo a caçar os centauros por todo o Peloponeso, inimigos que perseguiu por toda a sua vida e que, ao fim, seriam indiretamente os responsáveis pela sua morte, como se verá.  

Aos dezoito anos, é chegado o momento da efebia, isto é, teve que se submeter a determinadas provas (docimasia) para ser recebido no mundo adulto. Conforme revelam antigos textos, Hércules, quando da efebia, tinha  quase três metros de altura, ou, mais exatamente, 2,97 m. Para provar o seu valor, o jovem herói dispôs-se a matar o montruoso leão do monte Citerão, que tudo dizimava, animais e seres humanos. Apresentou-se ao rei Téspis e depois de muita perseguição conseguiu matar a fera. A caçada durou cinquenta dias. Segundo a crônica do herói registra, a cada noite, por vontade real, que cumpria de bom grado, se unia a uma das filhas de Téspis, fecundando-as todas, nascendo, então, mais tarde, os chamados tespíades, raça de descendentes do herói, que emigraram depois para a Sardenha. Tendo retirado a pele do corpo do leão de Citerão, Hércules passou a usá-la como seu emblema.


Retornando glorioso do monte Citerão, todos a falar de sua façanha ao longo dos caminhos, Hércules, ao passar por Tebas, tomou conhecimento de uma situação horrível que afligia os tebanos: a cidade pagava um pesadíssimo tributo (cem bois) a Ergino, rei de Orcômeno. O herói conseguiu desviar as águas de um rio que, inundando uma planície vizinha, provocou o afogamento de toda a de cavalaria de Ergino. Foi nesta luta que morreu Anfitrião, lutando ao lado do filho. Libertada Tebas, Creonte, o rei, resolve homenagear o herói, dando-lhe em casamento a filha, Mégara, nascendo dessa união três filhos. A Íficles, que já era pai de Iolau (a mãe era Automedusa), coube como prêmio a irmã mais nova de Mégara. Iolau terá um grande lugar na vida de Hércules, tornando-se o condutor de seu carro e seu companheiro mais próximo.  

Hera, todavia, mais uma vez resolveu perseguir o nosso herói. Possuído por Lyssa, a Raiva, enviada pela grande deusa, mata, segundo uma versão, os seus próprios filhos. Saindo da horrível crise, repudiou a mulher, forçando-a a se unir ao seu sobrinho Iolau. Tentou suicidar-se, Teseu interveio demovendo-o. Palas Athenas o mergulhou então num longo sono. Ao acordar,
APOLO
lançou-se no mar, numa tentativa de se livrar da culpa que o perseguia. Resolveu ir então em peregrinação ao oráculo de Delfos, a fim de obter de Apolo uma sentença que o ajudasse a reparar tão monstruosa falta. Apolo fala através da Pítia, determinando que ele deveria se apresentar a Euristeu, seu primo, rei de Argos que lhe ditaria uma sentença. Seriam doze anos de trabalhos, findos os quais, diante da enorme relevância das tarefas e do descomunal esforço exigido para cumpri-las, obteria a imortalidade, segundo Apolo e Palas Athena lhe prometeram.

OS  DOZE  TRABALHOS    

Matar monstros é função típica de heróis. Nenhum, porém, como Hércules. Tudo nele é incomum, seus ataques de loucura, sua força descomunal, seu excesso de vitalidade, seu lado animal. Sua figura: hirsuto, com uma pele de leão como símbolo sobre os ombros, uma clava, livre com relação ao vinho, ao amor, ao sexo, à comida e às regras sociais. Estas não eram para ele. Sua fúria e suas paixões o impediam de observá-las. Por outro lado, bem intencionado, justiceiro, exercendo sempre uma atividade libertadora e civilizadora no sentido de tornar a terra mais habitável, semeando os campos, fundando templos e cidades, instituindo jogos (na tradição dórica, de quem Hércules é patrono, o nosso herói teria fundado os jogos olímpicos no antigo santuário da Élis, no Peloponeso, para celebrar a sua vitória sobre Augias, quando do décimo primeiro trabalho, como lembra Píndaro. Veja neste blog o artigo sobre Hércules e os Jogos Olímpicos), criando oráculos, participando de rituais. Embora participe do divino, é o mais "terrestre" dos heróis gregos e, por isso, o mais popular. Essa dualidade, sempre presente na vida do herói, é ilustrada por Aristófanes e por outros filósofos e escritores da época através dos conceitos Aretê (Virtude) e Kakia (Vício), na figura de duas mulheres. A primeira está vestida de branco, tem ar modesto, pudico, lembra que só através do trabalho conseguimos alguma coisa, que o corpo tem que se submeter à inteligência. A outra tem roupas ricas, defende a luxúria, é gulosa, concupiscente, é contra qualquer esforço e controle interior.

ARETÉ - HÉRCULES - KAKIA
 Ao ingressar na senda que o levaria ao cumprimento dos doze trabalhos, Hércules, diz a tradição, diante da gigantesca tarefa que o esperava, recebeu vários presentes e conselhos dos deuses. De Palas Athena recebeu uma túnica, de Poseidon cavalos, de Hefesto um peitoral dourado para proteger seu nobre coração, de Hermes uma espada, de Hélios um carro (biga) e de Apolo o arco e as flechas, que, segundo palavras do próprio deus solar, só os saberia usar bem a partir do seu nono trabalho. Diz também a tradição que Hércules recebeu os presentes divinos, agradeceu, mas os deixou guardados num bosque próximo de Argos. Desse mesmo bosque retirou um tronco de oliveira selvagem do qual fez uma clava; era o presente que dava a si mesmo. Afastou os professores, com impaciência ouviu os conselhos, logo esquecidos, e renunciou ao nome de Alcides.     


Os doze trabalhos são as provas a que Euristeu, rei de Argos, submeteu Hércules. São doze provas principais dentro das quais encontramos vários outros episódios, considerados às vezes como secundários, mas não menos importantes. Ao todo um vastíssimo plano, cheio de labirintos, desvios, descidas, subidas, quedas, acessos, uma viagem em meio a muitas trevas para que, ao final, um novo ser possa surgir. Simbolicamente, os acontecimentos, no seu todo, representam o trânsito do Sol pelas doze constelações zodiacais, uma proposta de autotransformação,  o caminho da libertação, que nosso herói, não conseguiu.