sexta-feira, 7 de março de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - O SOL (6)




BONZO

Sabemos que na mitologia chinesa misturam-se elementos oriundos de três religiões diferentes, taoismo, confucionismo e budismo. A primeira e a última têm (tinham) templos e sacerdotes, os taoches e  bonzos, respectivamente. A última tinha templos sem sacerdotes. Interpenetraram-se, passaram por modificações profundas, principalmente sob a influência de textos literários e do teatro.

A organização do panteão chinês se assemelha a uma organização política terrestre. Uma vasta organização burocrática com uma série de ministérios, tendo cada um o seu chefe e o seu pessoal. 

Os deuses são como funcionários hierarquizados e com atribuições perfeitamente definidas. Nesse mundo, tudo é anotado, registrado; circulam nele papéis e documentos como prestações de contas, informes, relatórios, memorandos, declarações formais, tudo com a finalidade de manter informado, para a sua devida apreciação e julgamento, a suprema divindade, chamada Yu Ti, o Augusto de Jade. Por trás de toda essa organização, sempre presentes, três conceitos fundamentais, inseparáveis, a Totalidade, a Ordem e a Eficácia. Os deuses podem ser destituídos de suas funções, não são vitalícios, segundo as determinação da soberana divindade.  

As divindades vivem no céu, mas não juntas. Cada uma tem o seu
YU TI
palácio. O céu é dividido em andares (o número varia; para uns, nove, para outros trinta e três); os deuses mais velhos ou mais importantes residem nos andares superiores. Acima de todos vive Yu Ti, com sua numerosa corte. Ele é chamado de Pai do Céu (Lao-tien-yeh). Seu palácio é muito semelhante ao do imperador terrestre. Ao seu lado vive Wang, a rainha-mãe. Tudo nos palácios é cerimonioso, rico, muito refinado, cuidado, os ambientes, a arte, a música, a gesticulação, a indumentária dos deuses, as joias, as roupas, os móveis, os objetos. Embora reconhecido como o maior dos deuses, Yu-Ti era apenas o segundo elemento da tríade suprema. Ele era precedido por uma divindade chamada Venerável Divindade Original. Depois dele vinha aquele que um dia assumiria o seu lugar, o Venerável Celeste da Aurora de Jade da Porta de Ouro.


WANG - RAINHA MÃE

 Na terra, o imperador oferecia a cada ano a Yu-Ti dois sacrifícios solenes, um no equinócio da primavera e outro no solstício de inverno. O Sol era objeto de um culto oficial o ano todo, culto ligado sobretudo aos aspectos astronômicos. Popularmente, porém, o Sol era venerado como uma antiga divindade, representada desde sempre por um galo, que, por ter caminhado pela Via celeste (eclíptica) havia tomado a forma humana. Era honrado no início ano, na primavera, e no dia do aniversário do imperador.

O culto solar chinês personificava no galo cinco virtudes: 1) as virtudes civis, representadas pela sua crista, emblema dos mandarins; 2) as virtudes militares, representadas pelos seus esporões; 3) a coragem, em virtude de seu comportamento nos
combates; 4) a bondade, porque ele divide a sua comida com os pintos; 5) a segurança, demonstrada pela sua confiança ao anunciar o início do dia. Era costume popular, quando do nascimento de um filho, o sacrifício de um galo aos ancestrais à guisa de agradecimento. Era costume também a oferenda familiar de um galo ao professor quando do uma criança (do sexo masculino) ia à escola pela primeira vez. Todas estas práticas tinham por base a ideia de que o canto matinal do galo dissipava as trevas e abria a terra à luz e à vida.

YAO
     
Uma antiga tradição chinesa, de inspiração solar, preconizava que o soberano (Yao) deveria fazer periodicamente uma volta pelo império, começando pelo levante e seguindo a marcha do Sol, de modo a adequar exatamente o tempo e o espaço. Esta obrigação de imitar o Sol era obrigatória a cada cinco anos. Neste quinto ano se fazia uma celebração, a da promulgação de um novo calendário real, podendo o imperador nos quatro anos de cada período quinquenal permanecer na capital. 

MING TANG

Toda capital chinesa, para ter este nome, deveria obrigatoriamente possuir um Ming Tang, que era a marca distintiva da prerrogativa real e sinal de um poder solidamente estabelecido. Este Ming Tang era também a Casa do Calendário, um microcosmos, um universo concentrado. O edifício do Ming Tang era levantado sobre uma base quadrada, símbolo da Terra, sendo o edifício recoberto por uma forma abobadada, que representava o céu.

Na primeira estação do ano, o imperador usava vestes verdes, sentando-se num trono na parte leste do edifício. Quando terminava o verão, a segunda estação, com vestes amarelas, ele passava a ocupar o centro do Ming Tang. É a partir deste ponto central que ele animava o espaço, dando um centro ao ano. Para permitir ao soberano exercer a sua ação central, entre o sexto mês (fim do verão) e o sétimo (início do outono), era necessário instituir um tempo de repouso de um mês, uma preparação para o hemiciclo seguinte.

O imperador, seja circulando pelo Ming Tang ou pelo império, fazia sempre o caminho solar. O trono imperial ocupava a posição central do Ming Tang, cujo número é o cinco, conforme a
QUADRADO MÁGICO
representação do quadrado mágico chinês. Os quatro lados do Ming Tang, com três portas em cada um, num total de doze, correspondiam às quatro estações com os três meses de cada uma. Ao circular pelo edifício, o imperador refazia o caminho zodiacal do Sol, conforme a ordem celeste e assegurava a ordem terrestre. Para ocupar a posição central (nº 5) do Ming Tang, o imperador devia vencer os quatro dragões que guardavam os seus quatro cantos do horizonte, os quatro cantos do Ming Tang. Essa vitória lhe assegurava a saída da dispersão e a conquista de um centro no qual se instalava como um Sol central e fixo. As cerimônias litúrgicas se distribuíam ao longo do ano com base na divisão dos quatro quadrantes formados pelos eixos equinocial e solsticial, o que dava o ritmo do tempo para toda a sociedade.

                     Foram os primeiros astrônomos os responsáveis pelas noções do Yin e do Yang encontradas no pensamento filosófico-religioso da China. Já em antigos calendários de vários séculos aC estas noções eram notadas, aplicadas a todas manifestações da vida
YIN YANG
chinesa. O conceito Yang sugere uma ideia de solarização, de calor, de luz, podendo servir para representar desde um dançarino em pleno movimento aos dias da primavera e do verão e muitas coisas mais. O yang é o princípio masculino, a luz que surge das trevas, o consciente que sai do inconsciente. Constituem o Yang o movimento, o Sol do leste, o verão, a claridade, o dia, as regiões meridionais, a energia solar, a casa, o ouro, o jade. No nível pessoal, o Yang é o aspecto paternal, o método, a justiça, a severidade e os ossos (corpo físico). O Yin, o elemento feminino, procede do que é obscuro, negativo, feminino, existencial, potencial e natural. Tem relação com a noite, com as trevas do caos primordial, com a fecundidade. São dele o oeste, as regiões setentrionais, a Terra-Mãe, o jardim, a quietude, a coagulação alquímica, a Lua, as águas, a prata, a pérola, as forças da contração, de condensação e de retração. Sua contrapartida no organismo é a carne. Individualmente, Yin é o aspecto maternal, a indulgência e a sabedoria, a passividade, a doçura, a gentileza. 


Os japoneses antigos divinizavam as forças da natureza sob o nome de Kami. As grandes montanhas, as velhas árvores, os rios, os homens superiores eram chamados de Kami, palavra que tanto quer dizer “ espíritos” como “aqueles que estão nas alturas”. Os Kami eram venerados, mas não podiam ser considerados como divindades. Muitas vezes, eram chamados de poderosos (chi-haya-buru). A denominação Kami se aplicava também aos sete planetas conhecidos e também ao Sol.

 KAMI

A mitologia japonesa nos conta que no tempo em que o céu e a terra se formaram três divindades apareceram nas alturas celestes, autogeradas. Depois, apareceram mais duas, também autogeradas. Nenhuma delas se manifestou. Depois, sete gerações divinas se
IZANAGI E IZANAMI
sucederam. A última delas, formada por um par, Izanagi e Izanami, recebeu ordens para consolidar e fecundar a terra, dando início à ordem cósmica. Foram eles que criaram diversas ilhas (origem do Japão) e várias divindades, a do Vento, a das Árvores, a da Montanha etc. O último a nascer foi o deus do Fogo, que, vindo ao mundo, queimou a deusa Izanami, provocando-lhe grandes sofrimentos. Agonizante, antes de morrer, dos seus vômitos, de sua urina e de suas fezes nasceram outros deuses. Das lágrimas de seu marido, Izanagi, nasceu a deusa do Regato Lamentoso. Furioso com o filho que causou a morte de Izanami, Izanagi cortou a cabeça do recém-nascido. Gotas de sangue se espalharam sobre a terra, delas nascendo oito divindades diferentes, que deram nome a oito montanhas.

Izanagi resolveu ir ao mundo infernal para trazer de volta Izanami. Ela, contudo, se recusou a voltar, enviando inclusive entidades
SUSANO
infernais para dar combate a Izanagi, que se defendeu, valendo-se do seu grande conhecimento das artes mágicas. Rompendo com a sua antiga companheira, Izanagi escapou do mundo infernal, mergulhando em seguida no oceano para se purificar. Ao se lavar, esfregando o seu olho esquerdo, deu nascimento a Amaterasu, que logo assumiu a sua condição de deusa solar. Da sua vista direita nasceu o deus lunar Tsukiyomi. Da limpeza de seu nariz nasceu o deus Susano. Izanagi ordenou então que a sua filha primogênita governasse a abóbada celeste, dando-lhe como presente um colar com muitas joias. Ao deus lunar deu-lhe a noite por reino, enquanto ao terceiro filho atribuía a tutela do céu tempestuoso e das chuvas.


AMATERASU

Amaterasu e Tsukiyomi vivem de costas e ocupam as regiões celestes alternativamente e suas cortes são muito semelhantes às do Japão imperial. Aliás, é da deusa Amaterasu que descende a família imperial japonesa, sendo imperador considerado um filho da deusa. As relações de Amaterasu com Susano nunca foram fraternais. O caráter deste último era muito instável e violento. Um dia, ele, a pretexto de se despedir dela (ia visitar sua mãe, que vivia num país distante, o mundo infernal), causou tanta confusão com o barulho e os tremores que causava à sua passagem, pondo o universo em sobressalto. Este comportamento de Susano provocou inclusive a destruição dos campos de arroz na terra. Amaterasu se recolheu então a uma caverna e dali não saiu até que, encorajada por uma multidão de divindades menores, que dançavam freneticamente com gestos obscenos à entrada do seu refúgio, se dispôs a voltar, vencida pela curiosidade. Ao sair, viu a sua imagem refletida num espelho que as divindades menores tinham pendurado numa árvore, desde que se refugiara na caverna.

A história acima é uma dentre as muitas que fazem parte da crônica da deusa Amaterasu, explicando-se por ela a origem do dia e da noite. É por essa razão também que o espelho passou a fazer parte das insígnias reais do Japão. O espelho (yata-no-kagami) é um dos
XINTOISMO  - TAPA
três tesouros imperiais, transmitidos com o trono, com a espada e as três joias, símbolo das três virtudes, conhecimento (chi), bravura (yu) e benevolência (jin). A tradição xintoísta (antiga religião politeísta do Japão de origem autóctone e ainda hoje professada, caracterizada pela veneração de divindades que
TRÊS TESOUROS
representam as forças da natureza e pela ausência de escrituras sagradas, que busca a salvação por prescrições de conduta) associa o espelho óctuplo ao simbolismo do metal e da espada cósmica da deusa Amaterasu. Foi o espelho, na história acima mencionada, que fez a deusa sair da caverna para onde se retirara, a fim de que ela iluminasse de novo a terra.

O retorno de Amaterasu foi motivado também, além do espelho e da dança das divindades menores, por inúmeros galos que estas colocaram perto da entrada da caverna, cujo canto, como se sabe, anuncia a aurora. Os japoneses sempre entenderam, como outras tradições também o fazem, que as danças obscenas têm sempre um caráter agrário, pois, nas religiões primitivas, a obscenidade sempre se ligou a festas celebradas nos campos depois das colheitas, sendo um rito de fecundação, cujo objetivo é de garantir o retorno da vida vegetal.

DAJBOR

O Sol (Dajbog; daj, luz, dia, e bog, divindade), entre os povos do leste europeu, antes de sua cristianização, era filho do céu (Svarog; a raiz svar, que quer dizer brilhante, pode ser encontrada na língua sânscrita). Svarog era também pai do fogo (Svarogitch, literalmente filho de Svarog). Depois de ter reinado sobre o universo, Svarog entregou o poder aos filhos. 

SVAROG

Dajbog vive no oriente, num país de eterno verão e de abundância. Parte a cada manhã do seu palácio dourado, no seu carro puxado por cavalos brancos que soltam fogo pelas ventas, para fazer o seu giro pela abóbada celeste. Quanto no palácio, sentado num trono de
KUPALO (A MORTE DO SOL)
ouro e púrpura, tem ao seu lado duas belas virgens, a Aurora matinal e a Aurora vespertina, sete juízes, os planetas, e sete mensageiros, que voam através do universo com o aspecto de estrelas com logas caudas (cometas). Possui doze reinos. Nos mitos, os movimentos diurnos do Sol na esfera celeste são marcados por uma mudança na sua idade: quando o Sol nasce a cada manhã uma criança o representa; ao meio-dia é um homem maduro que morre no crepúsculo (Kupalo). O movimento anual do Sol é representado da mesma forma.



MENELAU E HERÓIS GREGOS

O Sol e os heróis - Na cultura ocidental, os temas heroicos na mitologia aparecem invariavelmente ligados ao Sol, elaborados todos naquele período que astrologicamente denominamos era de Áries, signo de exaltação solar (entre 1.662 aC e 498 dC). Nesses temas encontramos sempre a glorificação de determinados seres que se destacaram sobretudo por feitos guerreiros, por seus esforços físicos, pela luta que travaram contra monstros e malfeitores. A esses seres se deu o nome de heróis. A palavra veio do grego (heros); latinizada, passou a designar os chamados semideuses, filhos de uma divindade e de um (a) mortal, mais raramente um ser humano divinizado após a sua morte (evemerização). Lembravam esses semideuses, união das forças terrestres com as celestes, um esforço evolutivo, um exemplo que poderia iluminar a vida das pessoas.  

BYRON - HERÓI ROMÂNTICO

Aos poucos, o sentido da palavra foi se ampliando, admitindo-se o seu uso para apontar pessoas que tiveram um destino incomum. Do século XVIII em diante, com o Romantismo em especial, uma nova dimensão foi incorporada à palavra, principalmente através da Arte (literatura). Determinados personagens que problematizavam sua relação com a sociedade começaram a ser chamados de heróis, nada tendo exemplares na maioria dos casos.

AQUILES FERIDO MORTALMENTE.

 Nas antigas culturas, a história do nascimento, da infância e da juventude dos personagens heroicos costumava se revestir de traços fantásticos, extraordinários, que vão sempre além da esfera do humano. A Grécia clássica procurou transmitir para as gerações futuras uma visão sublime do herói. Na realidade, os heróis gregos não eram tão heroicos assim. Todos eram marcados por uma forte dualidade, por inúmeras contradições. A maior parte dos heróis gregos tem um comportamento sexual aberrante, comete estupros, são chegados à homossexualidade, atacam os próprios deuses, podem ser feridos, têm acessos de cólera sem nenhum motivo, desrespeitam de um modo que beira a anarquia as normas da convivência e as regras da hospitalidade. O traço mais característico do herói solar grego é, sem dúvida, a hybris, a desmedida, em escala superlativa, lembrando ela que o Sol tanto dá a vida, vitaliza, ilumina, cura, higieniza, fertiliza como pode secar, cegar, ser um agente patológico, enlouquecer, incendiar, destruir, matar. 

HERÓIS   GREGOS 
 
Os heróis gregos, enquanto simbolizam propostas de impulsos evolutivos, revelam também a situação de conflito do psiquismo humano pelos combates que nele se travam entre as forças da luz (atributos solares) e as forças das trevas, lunares (monstros, malfeitores, gigantes, dragões femininos), lembrando tendências regressivas, uma espécie de fatum a persegui-los. Sempre para eles a vida como luta (agonística), como criação de novas formas de
ULISSES E SEREIAS
relacionamento com o mundo a partir dos conflitos internos, as conquistas sempre ameaçadas de dissolução. Um processo de interiorização e de exteriorização constante. Pressões internas imaginárias, temores, fobias, tentações, dúvidas. De outro lado, o mundo com os seus monstros, dragões, seres ameaçadores, sedutores. Ao lado dos ingredientes da vida heroica, da excepcionalidade (areté) e da honorabilidade pessoal (timé) que estão na base das vitórias interiores, sempre, de outro lado, as ameaças das origens inconscientes, a vaidade, o orgulho, a fama, o renome través da consideração pública.

Sob muitos aspectos, os mitos celtas e as suas fontes literárias não são muito esclarecedores sobre os seus cultos solares. É preciso muitas vezes recorrer à arqueologia para se ir pouco mais profundamente nesse mundo. Sabe-se que desde a chamada Idade
do Bronze muitas comunidades do ocidente europeu veneravam o Sol, representando-o por uma roda, um disco, um círculo. Evidentemente, a escolha para o simbolizar o Sol desta maneira levou em conta duas dentre as suas principais características, a sua forma e o seu movimento. Sabe-se que na Idade do Ferro os guerreiros costumavam usar amuletos com a forma solar, mortos eram enterrados com miniaturas do Sol com objetivo de ter iluminado o seu caminho no “Outro Mundo”. 

CULTO SOLAR

MENHIRES E DÓLMEN
É no mundo celta que encontramos uma das mais ricas simbologias solares. Refiro-me aos dólmens, menhires e outras pedras que simbolizam para os celtas o instante do nascimento do Sol. Em virtude de sua dureza, forma, permanência, grandeza, imponência, as pedras sempre impressionaram profundamente os celtas. É nesse mundo que encontramos, talvez, uma das melhores expressões da androgenia. O menhir, ereto, símbolo
LINGAN E YONE
da primavera, do masculino, da força, associava-se a uma forma rochosa deitada, que representava o princípio feminino, a matéria. Este símbolo solar tem muita semelhança com o lingan (a pedra ereta, masculina) e a yone (a pedra deitada, circular, feminina). Os povos da Índia védica (árias) e os celtas, como se sabe, têm a mesma origem indoeuropeia. 


MUNDO CELTA
     
Para nos situarmos melhor quanto ao que aqui se expõe, é preciso ter em mente que grande parte da Europa ocidental foi ocupada pela civilização celta, situando-se a sua história entre os anos de 600 aC e 400 dC. A área ocupada compreendia uma extensa região que se estendia pelo centro da Europa, do mar Negro à costa atlântica francesa, uma parte do norte da Itália, quase que toda a pensínsula ibérica e mais as ilhas britânicas e a Irlanda. Dentro de sua mitologia, os principais temas foram as selvagens deusas da guerra, os deuses solares, os sacrifícios aos deuses, o mundo dos espíritos e a vida do além-túmulo.

O chamado período romano-celta da história europeia conheceu um grande desenvolvimento dos cultos solares. A complexidade desses cultos pode ser inferida pela descoberta de muitas
JÚPITER
representações do papel que o astro desempenhava no seu relacionamento com a Terra. Várias imagens solares ligavam o astro à guerra, ao deus Júpiter e lhe atribuíam uma função apotropaica, a de afastar as trevas e do mal. Foram encontradas também grandes colunas feitas de troncos de árvores com a mesma função, chamadas de “As colunas gigantescas de Júpiter”. Embora a iconografia deste período apresente muitas influências romanas, encontramos na tradição celta mais isenta destas influências um deus da luz e da vida, montado num cavalo (os cavalos entre os celtas sempre apareceram intimamente ligados aos cultos solares), carregando numa das mãos um disco à guisa de escudo e na outra um raio como arma, atacando uma serpente gigantesca, símbolo das forças ctônicas. 

O calor e a luz deram origem a cultos relacionados com a cura de doenças e com a fertilidade, com a abundância. Muitas imagens solares (discos, rodas) faziam parte da paisagem onde se encontram fontes de águas curativas. Aliás, a deusa que pontificava no grande santuário de Bath (depois estação termal inglesa muito famosa nos séc. XVIII e XIX) tinha o nome de Sulis. Um Apolo céltico, como
APOLO BELENUS
divindade da luz e das curas, estendia o seu poder às fontes de águas termais. Era o deus Apolo Belenus, o “Brilhante”, cuja tutela alcançava fontes tão distantes como as da Nórica (Áustria). Havia um grande festival celta nas ilhas britânicas presidido por esta divindade, no começo do verão, com a finalidade de prevenir doenças, constituído de inúmeros ritos de purificação. Outro Apolo tinha o sobrenome de Vindonnus, nome celta que significa puro, claro, luminoso. Grande dos cultos do Apolo celta era voltada, na área médica, para a cura de moléstias dos olhos. Em várias regiões da Gália e da Inglaterra os símbolos solares, como talismãs e amuletos, apareciam associados às deusas da fertilidade, sendo comuns os discos solares e pequenos chifres (cornucópias) agregados numa mesma peça. 

Grandes festivais celtas do fogo se realizavam por toda a Europa com a finalidade de celebrar o poder solar. A ideia era a de que o fogo dava e destruía a vida, que ele purificava e que das cinzas nascia sempre o novo. Estes festivais se baseavam no princípio da magia simpática com a finalidade de fazer o Sol voltar no período hibernal. Muitas festas cristãs, saliente-se, foram instituídas nas mesmas datas das festas celtas.

A  penetração  da  luz  solar  nas  trevas,  a  sua caminhada noturna,
TARANIS
serviu de base, por exemplo, para que em muitos túmulos fossem encontrados pequenos discos solares. Os celtas achavam que o melhor lugar para a realização do culto das forças celestes e solares, em especial, era o alto das montanhas. É do período romano da história celta que nos vêm nomes como Ladicus e  Poeninus, que lembram montanhas, sempre ligados a Júpiter. As divindades celtas honradas nas montanhas sempre apareceram ligadas a tempestades, como Taranis (de taran, raio na língua celta), o equivalente do Júpiter Tonans.

O nome do Sol na língua céltica era do gênero feminino, como acontece aliás nas línguas indo-europeias. Personificado mitologicamente ele é Lug (luminoso), considerado como um dos elementos fundamentais do universo. Os celtas da Irlanda, por
exemplo, sempre faziam seus juramentos em nome das forças celestes, nelas se incluindo, com destaque, uma menção ao deus solar. Entre os celtas da Irlanda, Lug ou Lugh (brilhante) era o deus da luz. Seu mais importante festival era o Lughnasad. É interessante notar que na língua gálica a palavra “lugos” quer dizer corvo, ave que aparece ligada ao deus Lugh. É de se lembrar também que na mitologia germânica, o deus Wodan, Odin para os escandinavos, anda sempre com dois corvos nos seu ombro, Hugin (Pensamento) e Munin (Memória), que são encarregados de recolher na vastidão do mundo e relatar a ele tudo o que acontece. 


LUGDUNUM

A cidade de Lyon, na França, era Lugdunum (colina de Lugh) porque foi o corvo de deus que, pousando sobre ela, indicou o lugar onde a futura cidade deveria ser levantada. O corvo, também na antiga Grécia, era uma ave divina, solar, consagrada a Apolo. Foram os corvos que indicaram o lugar do omphalos de Delfos. Como mensageiros dos deuses, os corvos desempenham funções proféticas, funções estas que na mitologia grega colocam-se sob a tutela de Apolo (mântica profética).

Os melhores exemplos de heróis solares (astrologicamente, o Sol
GILGAMÉS
nos três signos de fogo), nós os encontramos em Gilgamés (mesopotâmico), Hércules (grego) e Cuchulain (celta). O primeiro é o mais famoso herói babilônico, nascido entre o humano e o divino, figura central de um vasto poema intitulado “Aquele que descobriu a fonte” ou “Aquele que tudo viu”. O poema contém doze cantos, com cerca de trezentos versos em cada um. A versão disponível é do séc.VII aC 
(biblioteca de Assurbanipal, de Nínive); o poema é de muito antes, tendo sido composto por volta do ano 2000 aC. Gilgamés é “aquele que parte em busca da imortalidade”. Encontrou-a na forma de uma planta colhida por ele no fundo do oceano e a perdeu, levada por uma serpente.

Hércules, o mais célebre herói da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Alcmena, é famoso, dentre outros feitos, por ter realizado doze trabalhos, que lembram de algum modo os do herói mesopotâmico. Estes trabalhos simbolizam, como se sabe, a caminhada do Sol pelos signos zodiacais, desde o primeiro, a captura e morte das éguas geradoras de cavalos antropófagos do rei Diomedes (signo de Áries) até o último, a libertação do gado vermelho aprisionado pelo Gerião (signo de Peixes).


Cuchulain, grande modelo heroico dos celtas (Ulster, Irlanda do norte), um guerreiro de feitos extraordinários, cujo verdadeiro pai é
CUCHULAIN
o deus Lug.  Sua vida se assemelha muito à de Gilgamés e à de Hércules. Já na infância suas façanhas eram notáveis, sua força é prodigiosa. Quando colérico, um calor intenso emanava de seu corpo, derretendo a neve, afetando o que estava à sua volta. A magia fazia parte de sua vida; matador de gigantes, participou de guerras, amou deusas.

Por  último,  uma  referência  a  um  famoso mito grego  que  muito
tem a ver com o Sol, o de Narciso, nome que lembra embotamento, entorpecimento. Filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, era de uma beleza quase divina. Cresceu o jovem despertando paixões, mas nunca amando, indiferente a tudo e a todos. Era visto, não via. Tudo se concentrava nele. Uma ninfa se apaixonou e o procurou. Ele, como sempre, nenhuma atenção lhe deu. A jovem foi definhando, transformando-se num rochedo que passou a repetir os últimos sons que lhe chegavam. Recebeu, por isso, o nome de Eco.

NARCISO

As demais ninfas recorreram à deusa Nêmesis, pedindo que o belíssimo filho de Liríope fosse punido. A deusa condenou-o a amar um amor impossível. Um dia, debruçando-se num lago, o jovem viu sua imagem refletida nas águas. Não conseguiu mais sair dali. Apaixonou-se  pelo seu próprio reflexo. As pessoas, a princípio, nada notaram. Os dias se passaram e o jovem ali, imóvel, olhando o lago. Um dia, porém, a sua ausência foi notada. Procuraram-no. O jovem caíra e seu corpo descera ao fundo das águas, foi a conclusão de todos. Seu corpo jamais foi encontrado. No lugar, apenas uma pequena flor amarela com pétalas brancas. Deram a ela o nome de Narciso (narke, narkissos, narcótico), o “embriagado de si mesmo”.

O narcisismo, como podemos perceber, tem como fundamento os
ORPHÉE - JEAN COSTEAU
espelhos, o fascínio que eles exercem. Espelhos, como sabemos, têm relação mágica com seus donos, podem aprisionar a sua imagem ou a sua essência vital. São muitas vezes símbolos de vaidade, sensualidade, de orgulho. Podemos dizer que depois de Lewis Carroll e de Jean Cocteau devemos desconfiar deles. Os espelhos, além do seu interesse poético, transformaram-se em armadilhas (trompe-l'oeil) mágicas. Aliás, não foi por acaso que se deu o nome de psyché, em francês
PSICHÊ
(psichê, em português) a um grande espelho móvel montado num chassis com pinos, graças aos quais esse espelho pode ser inclinado para se olhar o corpo todo. A palavra, vinda do grego, psykhé, alma, foi usada também para designar o conjunto dos fenômenos psíquicos, considerados como formadores de uma personalidade. Na mitologia, o espelho era o instrumento de Psiquê, personificação da alma no conto de Apuleio.

Os dicionários definem o narcisismo como amor-próprio ou auto admiração de natureza mórbida. Outros sentidos podem ser admitidos, ligando-o a pessoas que se centralizam em si mesmas, com excesso de preocupações com a própria imagem, pessoas em cujos discursos o pronome pessoal eu é repetido insistentemente. Define-se também o narcisismo filosoficamente como uma forma de solipsismo (ipse, a, um, mesmo, de si mesmo), doutrina segundo a qual só existem efetivamente o eu (Sol) e suas sensações, sendo os outros entes (seres e objetos) meras impressões sem existência própria. Tendência a fazer de si mesmo o ponto de referência em torno do qual se organiza a experiência. Extremo individualismo, ausência de interesse pelo passado e pelo futuro, falta de consideração pelos outros, desinteresse absoluto por questões sociais.

REI DOS ANIMAIS.

Astrologicamente, como se pode notar, o narcisismo é um fenômeno tipicamente leonino, isto é, solar. Filosoficamente, esse fenômeno da vida psíquica consiste na sustentação de que o eu individual, do qual se tem consciência, com as suas modificações subjetivas, é toda a realidade e que os outros não passam de representações oníricas, são “sonhados”.