sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - A IRA II



SANTO   TOMÁS
Santo Tomás, seguindo Gregório, indica as seis filhas da ira: rixa, perturbação da mente, insultos, clamor, indignação e blasfêmia, consideradas sob três aspectos, a ira no coração, na boca e nas ações. Citou-as nesta ordem, embora achemos que a perturbação da mente devesse ter sido mencionada em primeiro lugar. Rixa é estado de hostilidade entre pessoas ou grupos, é contenda, tumulto, caso que pode ser considerado como uma contravenção penal. Clamor, insultos e blasfêmias são da boca ou do corpo (braços e pernas) enquanto gritaria, palavras (insultos), atitudes ou gestos que têm o poder de atingir a dignidade de alguém. Blasfêmia é palavra que insulta o sagrado, ato de rogar pragas, amaldiçoar.


INVEJA  ( EDVARD  MUNCH , 1863 - 1944 )

A sinonímia da ira é vasta. Ela pode se manifestar de várias maneiras. Anda sempre, de modo especial, como se disse, na companhia de três sentimentos igualmente intensos, dominadores, como a inveja, o ciúme e o medo... Lá no fundo, todos sabemos, mais ou menos claramente, que o ser humano odeia o que lhe causa incômodo, desprazer, mal-estar, ou seja, qualquer tipo de sofrimento. Como fenômeno da vida afetiva, a ira é algo que se impõe. Por isso, é preciso reconhecer que não temos ira, mas, ao contrário, é ela que nos tem, sempre uma paixão, como sobre ela falaram Santo Agostinho, Montaigne ou Descartes.

Muitas vezes, ouvimos: tenho ódio. Mas ódio de quê, de quem? Embora tenhamos aprendido, desde a infância, a distinguir os sentimentos positivos e elogiáveis dos socialmente negativos e reprováveis, quanto mal já não fizemos e continuamos a fazer por causa das várias formas de ódio que alimentamos inconscientemente, de um modo disfarçado, escondido ou recalcado. Todos os que escreveram sobre o ódio, filósofos, poetas, sociólogos, teólogos, psicólogos, religiosos, escritores, ou simplesmente os que o vivem e sobre ele falam, são unânimes na afirmação de que a energia desse sentimento é tão poderosa que pode transformar inteiramente a vida de quem é possuído por ele. Ele vive dentro das casas, está em todos os relacionamentos humanos, paira nas ruas, espalha-se como um vírus.


O ÓDIO , 1896 ( PIETRO  PAJETA )

Um exemplo que comumente encontramos no nosso quotidiano é o da a ira entre os membros de uma mesma família, entre irmãos. O ódio entre os gêmeos parece ser o mais perturbador. Em todas as culturas e mitologias encontramos histórias sobre os gêmeos e o ódio que sentem um pelo outro. O fenômeno dos gêmeos sempre colocou, desde a antiguidade, o problema da ambivalência, exprimindo, nesse caso citado, uma oposição entre forças da luz e forças das trevas. Simbolizam eles, no fundo, a própria dualidade do ser humano, as suas oposições internas e o conflito que devem enfrentar para superá-las. Caim e Abel, Rômulo e Remo, Esaú e Jacob são exemplos clássicos destas oposições. Inúmeras histórias apresentam os gêmeos como antagonistas, um bom e outro mau, este último sempre criando obstáculos para perturbar a relação entre ambos.


CAIM  E  ABEL
( PIETRO  NOVELLI , 1603 - 1647 )
Um dos principais ingredientes da psicologia das multidões no capítulo da violência coletiva é o ódio. É ele o responsável tanto pelo arrebatamento como pelo sentimento de agressividade que se apossa em determinadas ocasiões dos grandes grupos humanos, das multidões, O linchamento é um dos aspectos deste ódio. O ódio acionado coletivamente provoca o dogmatismo, a intolerância e traz também a ideia de irresponsabilidade, pois todos o sentem. O ódio dá unanimidade; como todos são culpados, ninguém é culpado. O ódio, nesta perspectiva, é um sentimento simples, extremado, intenso. Ademais, opera por contágio. No linchamento, o ódio é um gatilho que, quando disparado, não há como fazê-lo voltar atrás.

WILLIAM  LYNCH
Linchar é executar sumariamente, sem julgamento regular e por decisão coletiva, um criminoso ou alguém suspeito de sê-lo. É a chamada lei de Lynch, que apareceu nos USA como um instrumento de justiça dos brancos racistas. Quase todas as vítimas de linchamento eram negras. Quem a instituiu, ao final do séc. XVIII, foi um fazendeiro da Virgínia, William Lynch. Criminosos apanhados em flagrante, muitas vezes forjado, eram sumariamente liquidados. Existe uma copiosa literatura sobre o linchamento, tanto histórica como sociológica e jurídica. Distinguem-se dois tipos de linchamento. Um é bem ordenado, limpo como o chamavam os especialistas, praticado por gente rica, limitado o castigo apenas ao criminoso, O outro é o chamado coletivo, praticado por grupos, no qual podem tomar parte várias pessoas; é desordenado, difuso, e pode gerar outras formas de violência muitas vezes incontroláveis, como incêndios, quebra-quebras etc. 


FREUD
(W.V. KRAUSZ, 1878-1959)
Segundo Freud, o ódio é uma paixão que procura a destruição do seu objeto. Ódio e destruição. assim, caminham juntos. Quando odiamos, quando estamos irados, queremos, no fundo, destruir. Essa vontade de destruição está associada a objetos ou seres que sejam fonte de uma sensação de desprazer, de dor, de incômodo, de sofrimento para nós. Pessoas próximas ou distantes, familiares, podem merecer todo o nosso ódio. O ódio não admitido por um parente volta-se geralmente contra a própria pessoa, muitas vezes na forma de uma culpa autopunitiva, de somatizações. O masoquismo, nesse caso, é outro companheiro do ódio. Masoquismo, como sabemos, é um comportamento, inclusive sexual, através do qual uma pessoa tem necessidade de sentir dor e
L.S. VON MASOCH
humilhação para obter alguma coisa, algum prazer. Chega esse comportamento às vezes ao sadomasoquismo, fazer sofrer e sofrer ao mesmo tempo. O nome deriva de cenas descritas nos livros de Leopold Sacher von Masoch (1836-1895), nobre, escritor e jornalista austríaco. Como exemplo, Freud cita casos de ódio entre mãe e filha, na luta mais ou menos explícita que ambas podem travar para serem amadas pelo pai, de forma exclusiva; o ódio entre irmãos ou irmãs, na luta pelo amor parental etc. 

Freud insiste na tendência inata à maldade, à agressão, à destruição, à crueldade. Socialmente, isso, para ele, é desastroso, já que o homem satisfaz sua aspiração ao gozo, a viver bem, segundo esse entendimento, à custa do seu próximo. Para viver em sociedade, é necessário renunciar a toda essa agressividade, o que nem sempre se consegue. Procura-se então um derivativo que receba a carga destrutiva que acumulamos. Este derivativo pode ser buscado fora da comunidade, do país, da classe social, exportado etc. “Criam-se” inimigos para receber toda a agressividade recalcada. Isto pode acontecer internamente, também. Alguém precisa ser satanizado, para que nos sintamos aliviados. 

BODE EXPIATÓRIO
( W. J. WEBB - 1830 - 1904 )
Um exemplo disto é o tema universal do bode expiatório, que nos vem desde a mais remota antiguidade. Elegemos um bode expiatório, que passa a receber todo o nosso ódio. Projetamos nele toda nossa culpa a fim de tranquilizar a nossa consciência, que sempre tem necessidade de um responsável, de uma punição, de uma vítima. Sacrificado o bode expiatório, nos aquietamos, ficamos tranquilos, pelo menos por uns tempos. Um dos melhores exemplos do que aqui se fala está nas touradas. Como não sabemos lidar com a nossa besta interior (a nossa vida instintiva), a mantemos intocada, montando um espetáculo de sangue, violência e morte para que alguém, o toureiro, no qual nos projetamos, se encarregue, em nosso nome, de matá-la simbolicamente numa arena através do sacrifício de um touro. 

Lembramos que a tradição do bode expiatório é universal e funciona em ambientes familiares, em locais de trabalho, na vida escolar, nos meios de comunicação de massa, na política, onde quer que pessoas se agrupem para fazer alguma coisa. É muito usada por pessoas, grupos sociais ou pela própria sociedade como um todo, que nada faz, para projetar a sua culpa (a sua inércia, o seu comodismo, o apego aos seus privilégios, a sua hipocrisia, a sua má-fé etc.) e aquietar a sua consciência que sempre tem necessidade, como se disse, de um culpado, de um castigo e de uma vítima.

Qualquer pessoa medianamente informada sabe que o Judaísmo e duas dissidências suas, o Cristianismo e o Islamismo, satanizaram e continuam satanizando a mulher, cada um à sua maneira. As três são consideradas religiões patriarcais porque defendem o poder do pai e a ideologia que ele representa, quer em termos religiosos, políticos, econômicos, sociais ou familiares, mesmo que formalmente esse poder possa ser exercido por mulheres, como encontramos alguns exemplos no passado e no mundo atual.


LILITH
Entre os judeus, um dos mais significativos exemplos dessa atitude, um verdadeiro ódio com relação à mulher, está na Bíblia. No Gênese, registra-se que Deus criou o macho e a fêmea em condições de igualdade. Contudo, o macho, com o beneplácito divino, não deu à fêmea tal condição. Rebelando-se, ela fugiu para o deserto e dali passou ao mar Vermelho. Os judeus deram a esta primeira mulher de Adão o nome de Lilith, considerando-a como um demônio e rainha da noite,
SITRA ACHRA
unindo-se ela a Samael, o senhor das trevas do Sitra Achra (o Reino do Mal). Belíssima, sedutora, além de raptora de crianças, ela ataca aqueles (homens) que, através de suas poluções noturnas, dormem sozinhos para ter com eles filhos-demônios. Eva só aparece mencionada no capítulo seguinte, como um produto masculino, inteiramente submissa a Adão, seu senhor e mestre. 

Samael, esposo de Lilith, na forma de uma
serpente-demônio, seduziu Eva, o que provocou a expulsão dela e de seu esposo Adão do paraíso. Lilith reina sobretudo nas sextas-feiras e é representada comumente sob os traços de uma mulher nua com a parte inferior do corpo pisciforme, numa evocação direta da imagem das primeiras sereias.    


Entre os judeus, hoje, apesar de todos os “avanços” (mulheres disputando o rabinato, seu acesso aos textos religiosos etc.), na liturgia tradicional, nos chamados agradecimentos matinais feitos a Deus, ainda têm muito valor frases como esta: Bendito sejas Tu, Rei do Universo, que não me fizestes mulher. Quanto ao Islã, basta citar apenas, em que pesem diferenças entre alguns países, para caracterizar a profunda desigualdade entre homens e mulheres, que a poligamia continua como uma prerrogativa masculina, que a mulher para trabalhar e se educar fora de casa precisa de autorização do poder masculino ao qual estiver subordinada, que a estética feminina continua como uma imposição masculina etc. etc. etc.

Ainda recentemente (estamos em 2019), na Arábia Saudita, foi noticiado pela imprensa que cobre o oriente e pelas redes sociais (Internet, Twitter etc.) que o Mufti (jurisconsulto, erudito, imã) da Arábia saudita, o sheikh Abdul Aziz Al-Sheikh, expediu uma nova fatwa, aviso religioso que tem a força de orientação legal, sem ser propriamente uma lei. Esse aviso é geralmente baixado pela figura
LEI  SHARIA
religiosa mais elevada no mundo islâmico. No exemplo ora citado, se declara que o homem pode comer a sua mulher no caso de estar submetido a situações de fome severa. Homens podem, assim, de acordo com a Sharia, a lei islâmica, comer partes do corpo de sua mulher até que a sua fome seja satisfeita. O Mufti disse, para justificar a sua proclamação, que ela é uma evidência do sacrifício que as mulheres devem fazer com relação aos seus maridos e que, com isto, elas estarão dando uma demonstração suprema de união com a carne deles. Esclareceram mais os meios religiosos sauditas que a fatwa do Grande Mufti deve ser seguida pelos muçulmanos de todo o mundo. 


TERTULIANO
No Cristianismo, os exemplos abundam. Lembremos inicialmente de Tertuliano (155-222), o primeiro dos escritores cristãos, que exerceu na África do Norte um verdadeiro magistério doutoral, sendo muito grande a sua influência na formação da linguagem teológica do cristianismo latino. São dele as seguintes palavras (De Cultu Feminarum) sobre a mulher: Mulher, tu és a porta do Diabo.Foste tu que tocaste a árvore de Satã e a primeira a violar a lei divina. Com efeito, sempre responsabilizada pela queda do gênero humano, excluída, em

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
inúmeras religiões cristãs ou não, do sacerdócio, a mulher sempre recebeu qualificativos muito depreciativos. Aristóteles, o sábio estagirita, adotado pelo tomismo, a chamou de macho mutilado. São João Crisóstomo, um pouco mais suave, disse: a mulher é uma ferida da natureza sob a máscara da beleza. Se formos à filosofia (Schopenhauer, Michelet, Proudhon, Hegel, Nietzsche etc.) encontramos também os mesmos ataques às mulheres. Do último citado, temos esta “pérola”: A mulher foi o segundo erro de Deus.

Poucos admitem o ódio que sentem por si mesmos porque gostariam de ser diferentes e não conseguem.  Mas esse ódio é um fenômeno universal, como podemos constatar. Na história das religiões, temos o exemplo de pessoas que, embora o desejem, encontram muita dificuldade para se afirmar na vida, por razões diversas: tomadas por um grande idealismo, por uma incontida ânsia de espiritualidade, alegando muitas vezes desprezar as coisas mundanas, costumam desenvolver uma pulsão tão agressiva contra o seu próprio corpo físico que se entregam a certas práticas que podem ser consideradas como formas disfarçadas de um suicídio lento. Fazem parte dessas práticas o abandono do mundo, a renúncia a um nome, ao ambiente familiar e a entrega a formas severas de mortificação. Este último aspecto aparece muitas vezes nas religiões sob o nome de ascetismo (askeo, em grego, exercitar-se), que se caracteriza sobretudo pela renúncia ao prazer sexual e muitas vezes pela recusa à satisfação de outras necessidades básicas. 


STENDHAL
Daí, quanto a este item, os vários motivos de pessoas que se dizem religiosas, motivos no mais das vezes inconscientes. Muitas vocações religiosas são, no fundo, refúgio; medo do sexo; saída para desilusões sentimentais; forma de evitar a angústia das escolhas diante das exigências da vida;  egolatria disfarçada (complexo de Moisés: querer guiar, salvar ou influenciar pessoas), como meio de resolver os seus problemas materiais da
DE J. RIVETTE, 1966
existência, ficando asseguradas casa, comida e, dependendo da personalidade de cada um, maior ou menor possibilidade de ascensão na carreira religiosa e/ou social. O romance
O Vermelho e O Negro, de Stendhal, dentre os vários aspectos de sua grandeza, é um dos melhores exemplos do que se expõe aqui). Outro exemplo: a capitulação diante da filosofia de um tempo, conforme se pode ler em A Religiosa, romance de Diderot, que serviu de roteiro para os belíssimos filmes que dele fizeram Jacques Rivette e Guillaume Nicloux). Aliás, a visão que Diderot tinha das mulheres e do
DE G. NICLOUX, 2013 
feminino é uma clara contestação das envergonhadas razões dos que tentam encontrar desculpas para o machismo de filósofos. Em pleno século XVIII, lá está em
Sobre as Mulheres: mulheres, como eu vos lastimo! Não havia senão uma compensação para vossos males; e se eu fosse legislador, talvez a tivésseis obtido. Libertas de toda servidão, vós seríeis sagradas em qualquer lugar em que tivésseis aparecido.