sábado, 14 de dezembro de 2013

AS LEITURAS DO CICLO DE HÉRCULES


   Os vários mitógrafos que desde a antiguidade abordaram a história de Hércules sempre se mostraram unânimes: a realização do ciclo dos doze trabalhos foi imposta ao herói como uma punição. Desde tenra idade, Hércules sempre deu demonstrações de um descontrolado comportamento. Já quanto à ordem de execução desses trabalhos, não encontramos, praticamente, nenhuma concordância. 

HÉRCULES
Embora muito variados, os doze trabalhos, no seu conjunto, podem ser vistos como uma espécie de ascese, tarefas que, pelas suas exigências físicas, tinham a finalidade de transformá-lo num homem novo, capaz de controlar sobretudo seu corpo físico, seu lado instintivo, e, quem sabe, seu espírito. Aliás, esta nos parece a razão principal do uso da história do nosso herói para ilustrar os mais significativos traços de uma personalidade masculina que, no seu processo educacional, os jovens das elites gregas deveriam cultuar, sempre em luta contra a adversidade e contra si mesmos.    
Antes de prosseguir, porém, é preciso que nos detenhamos na questão do caráter punitivo do ciclo dos doze trabalhos. Os gregos, como sabemos, tinham no seu panteão três divindades que, atuando em conjunto, eram as responsáveis pela punição dos crimes cometidos contra a família, a sociedade e contra os preceitos morais em geral. Eram as Erínias (etimologicamente, perseguir com furor), também conhecidas como as Fúrias. Munidas de chicotes, carregando tochas, as três, Aleto (a que não deixa esquecer), Tisífone (a que uiva e berra, não deixando dormir) e Megera (a que divide), aladas, o corpo coberto de serpentes, eram as executoras da vingança divina, percorrendo a Terra para atormentar os mortais culpados. 

AS FÚRIAS
  Divindades infernais, as Fúrias perseguiam incessantemente os criminosos que, por suas ações nefastas, haviam perturbado a ordem familiar e social. Provocavam o remorso nos criminosos, inspirando-lhes uma angústia sem fim. Sua ação demoníaca estendia-se também ao mundo subterrâneo onde torturavam as almas dos mortos que lá estavam, sob a acusação de terem cometido crimes de impiedade (falta de respeito aos deuses) e de perjúrio (falso testemunho).
Os doze trabalhos de Hércules devem ser analisados não só sob a óptica do que significam as Fúrias, as vingadoras do sangue parental derramado, como também, para completar esta análise, através de um conceito que os gregos tinham na sua mitologia, depois incorporado à sua filosofia. Referimo-nos a Ananke, princípio nunca personalizado, mas muito presente na vida social e religiosa grega, na sua arte e no seu teatro trágico, principalmente. A palavra Ananke, etimologicamente, quer dizer, ao mesmo tempo, coação, necessidade, violência, fatalidade e destino. Na filosofia pré-socrática (Parmênides), Ananke governava todas as coisas de modo providencial; era uma espécie de necessidade mecânica que atuava tanto no mundo físico, na base da ação e da reação, como no mundo moral.

ANANKE
Em nome de Ananke agiam duas divindades, as mencionadas Erínias e Nêmesis, esta com a   finalidade  de   recompor  o  equilíbrio  universal   quando  um   excesso,  um  crime,  um
descomedimento (hybris) era praticado. É através deste conceito de causa e efeito, muito semelhante ao do karma dos hindus, que o universo mantinha para os gregos o seu equilíbrio. As Erínias atuavam mecanicamente, cegamente, fazendo o criminoso adoecer, enlouquecer de culpa, tornando morbosa, doentia, a sua consciência. Já a punição da Nêmesis tinha uma função pedagógica, que podemos resumir através da expressão “sofrer para compreender”. A ação de Nêmesis tinha como objetivo principal fazer com que o criminoso voltasse, com grande sofrimento, para limites de onde nunca deveria ter saído.
LYSSA
Os escritores e mitógrafos que na antiguidade se aproximaram dos doze trabalhos de Hércules, na sua maioria, sempre entenderam mais a sua imposição pelo lado das Erínias. Isto é, descontrolado, num ataque de fúria, tomado por Lyssa, entidade infernal, Hércules cometera um crime (morte dos filhos para uns ou dos filhos e da mulher para outros); atacado pelas Erínias, não conseguia se recuperar apesar de haver tentado se purificar de várias maneiras. Queria nosso herói livrar-se do que os gregos chamavam de miasma, mancha, nódoa religiosa e moral, proveniente de um homicídio.
EURISTEU
Mergulhado numa profunda prostração, deprimido, dirigiu-se Hércules ao santuário de Delfos a fim de ouvir a sentença oracular divina. A Pítia, em transe, em nome do deus Apolo, disse-lhe que, para ser libertado do que o afligia, ele deveria se apresentar a seu primo Euristeu, rei de três cidades na Argólida, que lhe imporia a devida pena. Assim aconteceu: ao nosso herói foi determinado o cumprimento de um ciclo de doze trabalhos, que, uma vez concluído, não só o livraria da culpa como permitiria que ele chegasse à sophrosyne, ao autodomínio e à moderação.   

PITONISA
 Para a maioria dos intérpretes, as tarefas prescritas sempre foram consideradas sob o ponto de vista físico, uma visão bastante simplista diante de todas as possibilidades interpretativas que o tema sugere como se verá mais adiante. No momento, o que se pode dizer é que com esse ponto de vista ficou de lado o caráter pedagógico (paideia) dos trabalhos: em cada um deles uma lição, que o nosso herói sempre teve muitas dificuldades para assimilar, se é que isso tenha passado pela sua cabeça como possível.
As narrações dos doze trabalhos seguiram invariavelmente uma linha descritiva muito resumida. No geral, os mitógrafos se limitaram apenas aos fatos. Nada de se explorar nomes, de fazer relações, de pesquisas etimológicas e simbólicas, de se buscar analogias, de extrair sentidos das alegorias e das metáforas dos vários textos. Todas as atenções sempre se voltaram para a personalidade extravagante de Hércules e para as suas façanhas, espantosas sob o ponto de vista físico. Quase nada se mencionava sobre o que cada trabalho queria realmente propor, o que estava nas suas entrelinhas, no conjunto de suas informações, de grande riqueza, algo que só se tornou possível quando foram abordados pela via astrológica, a única leitura que os iluminou completamente.
Esta necessidade de uma abordagem pela via astrológica, já estava implícita aliás nos próprios elementos da história, na sua natureza zodíaco-solar; na sua estrutura arquetípica; na incomparável riqueza psicológica dos seus personagens; na variedade dos monstros e animais que intervêm nas histórias; nas possibilidades significativas do número doze; no preenchimento, como mito, da sua função básica, a de fixar modelos exemplares das mais significativas ações humanas; na sua geografia e toponímia (os cenários descritos) etc.
Em 1974, editado pela Lucis Press Limited, apareceu em Londres um livro, The Labours of
Hercules, de autoria de Alice A. Bailey (1880-1949), pesquisadora e escritora filiada à corrente teosófica de Helena Blavatski. O mérito desse trabalho está na associação que a
ALICE BAILEY
a
utora faz entre os doze trabalhos do nosso herói e o caminho solar zodiacal. A visão por ela defendida, entretanto, demasiadamente transcendente, fez de Hércules um aspirante a percorrer um caminho a que se dá na Teosofia o nome de "Sendero do Discipulado". Um processo de depuração, de sublimação e de transmutação que Hércules deveria ir assumindo para chegar ao “Monte da Transfiguração”, onde chegaria transformando num ser casto, puro e meditativo, uma espécie de sadhu indiano. Ou, se quisermos, como uma espécie de Sir Galahad, na visão cristã do ciclo do Santo Graal.  

GALAHAD
Ora, nada disto aconteceu, não é neste modelo que Hércules poderá ser enquadrado. Seria desfigurá-lo bastante. As preocupações metafísicas da autora, acabaram por fazer com que o conhecimento prático e ético que a realização dos doze trabalhos oferecia sob o ponto de vista astrológico, a chamada phronesis, se transformasse numa espécie de teoria das ideias platônicas, uma sophia teorética, contemplativa. O que os doze trabalhos propõem astrologicamente não é um diálogo com a eternidade, mas, ao contrário, é uma busca que tem a finalidade de levar Hércules (o ser humano) à compreensão de suas responsabilidades com relação aos outros homens e ao mundo.  
Muitos dos livros de Alice Bailey, como se sabe, foram “recebidos” ou “revelados” pelos chamados “mestres ascensos”, que viviam, segundo a autora, em outros planos (Djwhal Khul, Tibetano, Saint Germain, Jesus, El Morya, Kuthumi etc.). Neste sentido, fica difícil nós sabermos quem realmente foi o autor do texto. Além do mais, a mistura conceitual (Hinduísmo, Budismo Esotérico, Cristianismo, Espiritismo, Cabala etc.) de que se vale a autora para embasar a sua obra acentua demais o aspecto “religioso”, meio “fora do mundo”, transcendental, dos doze trabalhos. O resultado de tudo isto é que nosso herói   acabou sendo considerado como um discípulo, um aspirante, a trilhar um sendero de santidade, algo que o nosso herói nunca foi nem o caminho zodiacal admite como proposta.




O caminho zodiacal, é importante ressaltar, não pode ser considerado sob o ângulo de uma transcendência que leve o homem para fora da Terra, para paraísos celestes ou que o direcione para buscar um abrigo no seio divino. O caminho zodiacal aponta para uma realização terrestre. A espiritualidade de que nos fala o zodíaco (e como o ciclo dos doze trabalhos nos confirma) é terrena, bem terrena. Uma realização terrena que tem a finalidade de transformar o homem num servidor da humanidade. Além do mais, a natureza do conhecimento que o caminho zodiacal propõe não é algo que possa ser estabelecido aprioristicamente. Cada um viverá esse caminho a seu modo.
 O universo, como sabemos, é limitado à consciência do homem. Ao longo da sua história, por medo, ingenuidade, esperteza, má-fé ou ignorância, ou por tudo isso junto, muitos homens defenderam e continuam a defender ideias de que haja algo que a transcenda. Ora, tudo o que homem fala do mundo está limitado à consciência que ele tem desse mundo. O Todo é mente, como diz a filosofia hermética. Mesmo que falemos de Deus, só poderemos falar dele como objeto de nossa consciência e não de outro modo. Na perspectiva em que os encaramos aqui, os doze trabalhos são uma ilustração de um diálogo nem sempre fácil que o homem tem que estabelecer no mundo para fazer as suas escolhas tendo diante de si os outros homens. Nada de retirá-lo, da Terra, pois.
O zodíaco só pode ser entendido segundo uma perspectiva terrestre. Ele pressupõe a imanência e não a transcendência. Estamos encerrados na Terra, conforme a consciência que dela temos. Nossas possibilidades de mudança ou de transformação só podem ocorrer
dentro dela. As longas viagens para as quais nos aponta o signo de Sagitário, por exemplo, são viagens que devemos fazer no plano terrestre, sejam estas viagens físicas, mentais ou espirituais. Essa a razão pela qual é cortada por um traço horizontal a flecha que representa simbolicamente o nono signo, transformando-se então o desenho numa cruz. Se o traço vertical simboliza a energia conduzida verticalmente, lembrando distâncias a atingir, um princípio ativo, o traço horizontal, deitado, lembra o passivo, formando ambos um signo de vida, de conjunção fecundante e de poder realizador. A cruz liga-se ao número quatro, símbolo do terrestre, do mundo criado, da totalização espacial.   


EURÍPEDES

 Indo agora noutra direção, um grande problema a enfrentar quando abordamos mais detidamente a história de Hércules é a falta de concordância entre os que se valeram dele como personagem de suas obras (poetas, homens de teatro, escultores etc.) ou para discorrer sobre a sua personalidade (mitógrafos, filósofos, modernos psicólogos etc.). A confusão é impressionante. Eurípedes, por exemplo, o maior dos trágicos, na sua tragédia Heracles, além de entender que o ciclo dos doze trabalhos tinha causas políticas, inclui, além dos filhos, entre as vítimas do herói, Mégara, a sua esposa, o que o torna um uxoricida.      
Para certos autores (Diodoro, Eurípedes) os filhos do herói (em número variável) foram
APOLO
mortos a flechadas; para outros (Pherecides, Apolodoro), foram lançados ao fogo. As dúvidas se acumulam. Quando teria o jovem filho de Alcmena recebido o nome de Hércules? Isso só teria acontecido quando ele se dirigiu a Delfos, para ouvir o que a Pítia teria a dizer sobre o crime que cometera, ou antes? Numa das versões, a mais coerente, se narra que, ao proferir a sentença oracular, a Pítia deu ao jovem, até então chamado de Alkeides ou Alkaios (Alcides), o nome de Hércules, assim justificando porque o fazia: “Apolo, o Senhor do oráculo de Delfos, te dá o nome de Heracles, pois, ao levar socorro aos homens, terás uma glória imperecível”. Já em outras versões, o nome Hércules lhe teria sido dado na infância como uma homenagem à deusa Hera.
Ao sair de Delfos, Hércules já tinha assinalado por Apolo o papel que iria desempenhar, o de salvador da humanidade. Seu nome, a prevalecer a sentença da Pítia, seria formado por “socorro”, “salvação” (hera) e “glória” (kleos), ou seja, o glorioso salvador da humanidade. Este tema da salvação, como se verá, no décimo
GERIÃO
segundo trabalho, fala da libertação da humanidade de Gerião, gigantesco monstro de três cabeças, símbolos, respectivamente, do que no ser humano é instinto, emoção e mente inferior. Enquanto estas três cabeças não forem dominadas pelo homem não será possível se falar de vida espiritual.
É pela frase da Pítia que se esclarece inclusive um erro de tradução que em algum momento histórico acabou por fixar o nome do herói como uma homenagem à deusa Hera (etimologicamente, protetora, guardiã); Héracles ou Hércules (a glória de Hera). Como sabemos, “hera” em grego tanto significa socorro, salvação, ajuda, como é o nome da própria deusa.  Algo realmente incompreensível o nome do nosso herói ser uma homenagem à esposa de Zeus, Hera, que o perseguiu implacavelmente ao logo de toda a sua existência terrena, sendo a responsável
HERA
pela maior parte dos seus infortúnios.
É a partir do episódio délfico de sua biografia que Hércules teve o seu nome indissoluvelmente ligado a Apolo, deus solar, símbolo de uma ascensão de natureza espiritualizante, que o caminho do Sol no zodíaco representa. Tendo os olhos fixados na exemplar jornada de Hércules, caberia aos humanos conquistar progressivamente a correta ordenação dos seus três níveis existenciais, o instintivo, o emocional e o mental, para que a vida espiritual pudesse de manifestar (tema dos dois últimos trabalhos).  
Quanto ao número dos trabalhos, o problema também é grande; não há praticamente nenhuma concordância. Apolodoro menciona dez trabalhos inicialmente. A ordem dos trabalhos é confusa, sendo a mais difundida aquela estabelecida por razões mnemônicas, nada defensável. Há mesmo uma versão que nos fala de treze trabalhos ao invés de doze. Esta referência a um décimo terceiro trabalho nós a encontramos na Antologia de Máximo Planudio, monge grego de Constantinopla, do séc. XIV, muito divulgada; nosso herói deveria dormir (eufemismo para não se dizer fazer sexo) numa noite com cinquenta jovens. Teria este trabalho algo a ver com o mito das Danaides?

DANAIDES
 Já na antiguidade se falava também de uma ordenação geográfica dos doze trabalhos: os seis primeiros tendo por cenário o Peloponeso e os seis últimos realizados em várias partes
do mundo, um deles no Hades. Atribuiu-se a Panyassis, tio de Heródoto, uma ordenação que seria a definitiva. Mas tudo, com o tempo, se revelou insatisfatório. Os estudiosos modernos tentaram classificar os trabalhos em função dos inimigos que Hércules teve que enfrentar: bestas, figuras humanas ou seres antropomorfizados, dois inclusive de natureza escatológica. Outros, com base em estranhos critérios, falam de lutas do nosso herói contra bestas nocivas e bestas comestíveis, além de uma contra os elementos, a água e os excrementos animais (décimo primeiro trabalho).Todas estas abordagens, algumas até muito criativas, foram provavelmente alimentadas por nítidos arroubos egoicos, como se cada autor quisesse fazer prevalecer a sua versão como a definitiva, a “diferente”,  quando na realidade ela não passava de mais uma dentre tantas outras.
De nossa parte, o que podemos dizer é que foi esquecida uma recomendação que os próprios gregos aconselhavam observar quando alguém procurasse se aproximar da matéria mítica. Para se ir ao mais importante dos mitos era preciso ter em mente  a hyponoia, ou seja, saber encontrar o sentido oculto, subjacente, nas histórias. A mente racional, objetiva, o “logos” grego, nunca entendeu os seus mitos, rejeitou-os. A mente racional não se dá bem com o simbólico; seu mundo é o do analítico, de natureza
PLATÃO
fragmentária, separadora. Por natureza, o analítico não sabe unir, aproximar, encontrar relações. A hyponoia trabalha no sentido da analogia, do social, do reconhecimento da pluralidade, da integração de sentidos. Não foi por outra razão, aliás, que Platão, além de considerar os mitos gregos um perigo para a vida social (poetas não entrariam na sua “cidade ideal”), nunca os admitiu oficialmente nem aceitou a hyponoia como instrumento de interpretação, embora tivesse usado vários mitos, deformando-os até bastante para justificar as suas teses filosóficas. Numa tradução livre, com base na sua etimologia, hyponoia, quer dizer aquilo que fica abaixo do superficial. O conceito aponta para uma região de riquezas ocultas que a “mente média”, racional, não consegue alcançar.      
Desde a Antiguidade, o ciclo de Hércules foi abordado de diversas maneiras. Todas as leituras filosóficas procuraram fazer do herói um modelo de virtude. O seu caminho corresponderia, segundo essa perspectiva, àquilo que, mais ou menos, as modernas escolas de Psicologia chamam de processo de individuação. Ele seria idealmente o ser que deveria ter a coragem de vencer todos os obstáculos, internos e externos, apesar dos inúmeros perigos e sofrimentos a enfrentar, a fim de não só se conhecer melhor, mas, ao mesmo tempo, ampliar os seus horizontes existenciais. Alguém que deveria procurar viver a vida, abrindo-se para o desconhecido.
Na leitura dos sofistas, a história de Hércules seria uma espécie de ilustração de suaspropostas: menos indagações sobre o Cosmos, sobre a Natureza, a "Physis", e mais atenção ao contingente, ao individual, ao múltiplo. Esse o caminho do homem, sempre em atrito com os poderes mundanos, vitimado pelas suas paixões, sofrendo para usar a sua mente a fim de resolver os problemas que criava para si mesmo. Hércules seria, então, nessa leitura, uma espécie de representante de um novo humanismo sofista que se contrapunha ao naturalismo dos pré-socráticos. Agora, nessa leitura, o homem e a sua subjetividade passavam ao primeiro plano. O herói era o que escolhia, deliberava, no mundo moral. Pelo sofrimento, uma virtude estóica, poderia chegar ao conhecimento.
Na visão dos órficos e dos pitagóricos, a vida de Hércules também seria um exemplo de edificação. A vida de um sofredor que, pela mortificação, por caminhos difíceis, ia se superando em direção de uma purificação definitiva. Esta leitura órfico-pitagórica tem cunho fortemente religioso, já que vê a vida de nosso herói como um modelo de ação que leva ao comedimento e à temperança (que Hércules jamais cultivou). A leitura dos sofistas, por suas vez, mais "mental", nos fala de um modelo que leva o ser humano a buscar a informação, a instrução, uma espécie de paideia. É por esta razão que os sofistas, mais coerentes, colocam Hércules como um ser de escolhas, numa encruzilhada, lugar de parada e de reflexão, onde se tomam decisões e o destino pode ser mudado.
O que se destaca para nós na figura de Hércules é que ele é antes de tudo um guerreiro,
HÉRCULES E O LEÃO
um herói típico das aguerridas tribos do Peloponeso, um ser que sempre procurou se expressar fisicamente e com brutalidade. Quando os seus trabalhos são iniciados ele usa uma arma rudimentar, a clava, símbolo da força bruta e primitiva que esmaga. Apolo lhe revelou que só quando da realização do nono trabalho ele entenderia o que a flecha e o arco significariam. Contudo, embora os tivesse usado, com muita eficiência até (terceiro e nono trabalhos), nunca a rigor se deu bem com eles. Embora os tivesse aceito como armas, nunca chegou a se identificar com a  flecha enquanto símbolo de um conhecimento que assegurasse a libertação, as buscas mais distantes que levassem a outros modelos de vida. A flecha, no mundo do qual Hércules sempre participou, era vista como a arma dos fracos, daqueles que lutavam a distância, traiçoeiramente, jamais aberta e francamente, como os hoplitas (soldados de infantaria) gregos o faziam .  
Pelas referências acima e por outras que se farão no transcorrer de nossa exposição acreditamos que vai ficando claro que a mais consistente e apropriada abordagem que se possa fazer do ciclo de Hércules é aquela que tem por base a leitura astrológica. Os doze trabalhos do herói, na sequência em que os apresentamos, sequência já notada, aliás, na própria Antiguidade, mas abandonada por outras, têm uma espantosa correspondência com a ordem zodiacal dos signos e com os seus respectivos significados. A analogia entre os doze trabalhos do herói e o trânsito do Sol pelas doze constelações zodiacais é evidente. Hércules sempre foi considerado um herói solar. Nos seus trabalhos encontramos um simbolismo que tanto apresenta aspectos de uma evolução biológica como psicológica e espiritual, com todas as suas contradições, recuos, avanços, vitórias e fracassos.


JERUSALÉM CELESTE

 Só para nos fixarmos no número doze, é bom lembrar que este número é o produto do quatro pelo três, isto é, refere-se aos quatro elementos (fogo, terra, ar e água) constitutivos do universo e aos três estados dos corpos produzidos por eles, evolução, culminação e involução. É, em suma, o número do universo criado em toda a sua complexidade, no seu desenvolvimento espaço-temporal. Em todas as culturas encontramos esse número como símbolo de um ciclo que se encerra, o número do mundo acabado. As referências são inúmeras: a Jerusalém celeste do Apocalipse tem doze portas; doze são os apóstolos de Cristo, as tribos de Israel, os cavaleiros da Távola Redonda do rei Arthur, como doze é o número da lâmina do Tarot (Enforcado) que marca o fim de um ciclo involutivo, como é o número da manifestação da Trindade nos quatro cantos do horizonte; doze cantos tem a epopeia de Gilgamés, doze são as divisões do relógio, os deuses olímpicos, os nomes do Sol em sânscrito, as proposições da Tábua esmeraldina.
O número doze rege o espaço e o tempo, simbolizando a ordem e o bem. Já para os persas, todo o bem e todo o mal que a Terra poderia receber provinham dos movimentos regular dos astros no círculo zodiacal, formado por doze agrupamentos deles. Não é por outra razão, aliás, que todas as escolas filosóficas (darshanas) da antiga Índia trabalham com a ideia de que o bem na Terra só existe quando o dharma terrestre segue o dharma celeste (a ordem que há no zodíaco). Em todas as antigas tradições, o doze é um número de plenitude, de acabamento e de totalidade.  
Homero, no seu hino, chamou Hércules de "Leontothymos" (coração de leão), o que já
HÉRCULES
basta para identificá-lo com o Sol (o signo astrológico de Leão é, como se sabe, regido pelo Sol). O teatro grego também se apossou da figura de Hércules. Sófocles (Traquínias), Eurípedes (Heracles), Aristófanes (Nuvens). Píndaro, o grande poeta que celebrava os vencedores dos jogos olímpicos, também cantou Hércules. Zenão, o filósofo estoico, e Antístenes, o cínico, tomaram Hércules como um ideal, opondo-o radicalmente aos valores culturais. Noutras vezes, em períodos de decadência social, o burlesco se apoderou da figura de Hércules. Foi o herói satirizado, realçando-se o seu lado picaresco, façanhudo, fanfarrão, como uma figura de feira, de matador de monstros, enfatizado seu lado vagabundo, grosseiro, muito semelhante ao dos centauros, que tanto combateu. 
A Grécia clássica procurou transmitir uma visão sublime do herói. Na realidade, entretanto,
AQUILES
não era bem assim. Os heróis gregos são marcados por uma forte dualidade, por inúmeras contradições. São apresentados como invulneráveis, mas podem ser abatidos (Aquiles). Têm graça e beleza, mas podem ser monstruosos (o gigantismo de Hércules, de Aquiles, de Teseu). São, na realidade, teriomorfos ou andróginos, mudam de sexo, adotam o travestismo, transitam entre o masculino e o feminino, têm anomalias físicas (Hércules tinha três fileiras de dentes), têm problemas nos pés (Édipo), são transformados em serpentes (Cadmo); com facilidade, são atacados por monstros, pela loucura (Lyssa), pelo Erro (Até), pela Discórdia (Éris), como aconteceu com o próprio Hércules e acontecia também com as próprias divindades olímpicas. A maioria tem um comportamento sexual aberrante; Teseu, por exemplo, era famoso por seus estupros. Cometem incestos, mutilam ou massacram por inveja, cólera ou sem nenhum motivo, desrespeitando
ERIS
tudo e a todos de um modo que beira a inconsequência, a loucura mesmo, como se as normas de convivência e regras de civilidade não fossem para eles.
Os excessos heróicos, a rigor, não têm limites. Violentam deusas (Orion, Ixion), são sacrílegos (Ajax Oileu agride Cassandra em recinto sagrado), são traidores (Tântalo traindo a confiança dos deuses), são hétero e homossexuais (Hércules), no que, aliás, imitam os próprios deuses. Talvez o traço mais característico e específico do herói grego seja a hybris, a desmedida, em escala superlativa. Embora
AJAX E CASSANDRA
punidos e castigados, tentarão sempre enfrentar os deuses, como se fossem iguais a eles, podendo, contudo, salvá-los quando necessário (Gigantomaquia). Ambivalentes e monstruosos, seu comportamento, já se disse, é extravagante. Eles são estapafúrdios, incoerentes, descomunais. No "mundo dos homens", na antiga Grécia (Atenas) do período clássico da sua história, numa sociedade organizada, onde as desmedidas, as explosões temperamentais e os excessos devem ser proibidos, ou, pelo menos, controlados, os heróis tornaram-se figuras bizarras, deslocadas. Sobreviverão, porém, na tragédia, como exemplos, para que os pobres mortais (as classes mais desfavorecidas socialmente) não ousassem imitá-los, ultrapassando certos limites e incomodando a aristocracia grega.  Na idade do ferro já não haverá lugar para eles. Foi Hesíodo, aliás, quem lhes deu um lugar entre as quatro idades tradicionais, intercalando, entre as duas últimas, a idade do bronze e a do ferro, a deles, dos heróis.
Hércules é sem dúvida o mais popular dos heróis gregos. Entre os romanos, sua história destacou a sua ação civilizadora, ligando-se ela de modo especial à fundação de cidades e à toponímia de vários lugares. O herói, unindo-se a Fauna, esposa de Fauno, tornou-se pai de Latino, personagem da Eneida, de Vergílio; como  responsável pela morte de Cróton, honrou-o, fundando a cidade de Crotona. Antes de deixar a Itália, construiu na Campania, uma extensa barragem e um canal, ligando o lago Lucrino ao mar. O mais importante, neste particular, é que nosso herói tem o seu nome ligado eternamente à península itálica, cujo nome, Itália, encontra uma curiosa explicação que retiramos do seu último trabalho. Ao retornar da Ilha Vermelha (Eritia) com o gado vermelho que libertara das garras do pavoroso gigante Gerião, nosso herói teve que atravessar aquele território peninsular até então sem nome. O rebanho foi alvo da cobiça de muitos ladrões e dos potentados locais, que tentaram de várias maneiras roubar os animais. Só a muito custo nosso herói conseguiu afastá-los, embora tivesse perdido muitas cabeças. Com o tempo, o território atravessado começou a ser chamado de “terra dos vitelos” (bezerros, novilhos). Em latim, como sabemos, vitelo é uitulus, nome do qual teria saído Itália.
 A crônica de Hércules sempre encantou de modo especial os italianos. O romano Sêneca, que nos deu um Hércules Furioso e um Hércules sobre o Etna, procurou, na linha dos estoicos, nos mostrar a grandeza do herói diante da impiedosa fatalidade. Em Roma, o culto de Hércules era conduzido por duas famílias sacerdotais, os Potícios e os Pinários. Primeiro de natureza privado, o culto de Hércules tornou-se público no ano de 312 aC, celebrando-se a sua festa no dia 12 agosto, quando Sol transita pela constelação do Leão. 
No século XV, os humanistas espanhóis e italianos nos deram  uma visão cristã do mito de Hércules. O herói tentava agora combater os demônios e lutar contra a fatalidade imposta por deuses desumanos (os da antiguidade, deuses pagãos),  numa espécie de prefiguração do cristianismo que estava por vir. Na França, no séc. XVII, autores franceses, à maneira do preciosismo e do barroco, alegorizaram a vida do nosso herói, cercando-o de personagens emblemáticos como o Prazer, a Preguiça, a Vaidade e a Luxúria.

CONSTELAÇÃO DE HÉRCULES
 Os astronômos da antiguidade também se sentiram tocados pela saga do nosso herói. Deram seu nome a um grande conjunto de estrelas situado perto das constelações boreais de Draco, Corona Borealis e Ursa Minor. A constelação de Hércules é uma das mais antigas dos céus; antes de receber o nome do nosso herói, era chamada de a constelação d´ “Aquele que se Ajoelha” ou, “O Genuflector”. A estrela mais importante (alfa) da constelação de Hércules tem o nome de Ras Algethi, de magnitude variável, situando-se atualmente, com relação ao zodíaco, a 15º28´ de Sagitário, nos remetendo, quanto a possibilidades interpretativas, a ideias de serviço, de submissão auto-conquistada. A imagem celeste desta constelação foi divulgada pelos astrônomos dos sécs. XVII e XVIII, que a desenharam, segundo a distribuição estelar, como um herói em genuflexão, tendo numa das mãos uma clava e na outra a pele de um leão que lhe serve de escudo.


AS COLUNAS DE HÉRCULES
Os geógrafos da antiguidade foram seduzidos também pela gigantesca figura de Hércules. Deram o nome de “As Colunas de Hércules” ao estreito de Gibraltar, vendo nosso herói como chefe de uma colônia fenícia ali situada. As colunas foram construídas pelos membros dessa colônia, em honra a Hércules, para comemorar a abertura, feita por ele, de uma passagem do mar Mediterrâneo para o oceano Atlântico. É desta história que sai a expressão “as colunas de Hércules para designar metaforicamente os limites extremos além dos quais o pensamento nada pode conceber. Ainda sob o aspecto geográfico, lembremos, sem que saiba por qual razão, há no norte da Espanha, perto de La Coruña, ruínas de umas torres, chamadas desde tempos imemoriais de “As Torres de Hércules”. Miticamente, elas teriam relação com o último trabalho de Hércules (A libertação do gado vermelho, aprisionado pelo gigante Gerião), quando ele retornou de Eritia pelo norte ao continente, seguindo dali em direção da futura Itália. 
   Se quisermos mais, podemos ir ao léxico de várias línguas ocidentais, inclusive orientais. Do nome de Hércules saiu o adjetivo hercúleo que tem o sentido de excepcional, assombroso, de força extraordinária. “Um trabalho de Hércules” é expressão que se usa para designar tarefas ou projetos, que, para o seu cumprimento ou realização, exigem grande esforço.