terça-feira, 26 de abril de 2011

EM BUSCA DA VIDA


Com a instauração do regime comunista na China a partir de 1949, o novo governo passou a considerar o cinema como um eficiente meio de propaganda. Os temas dos filmes se voltaram principalmente para a vida de camponeses, soldados e trabalhadores nas indústrias. O patrocínio estatal era absoluto e as massas começaram a ir ao cinema, crescendo bastante o número de frequentadores, inclusive no campo. Devido a esse incentivo, a qualidade fílmica foi melhorando aos poucos e já em 1961 uma película chinesa era premiada num festival internacional em Londres.

Com a reviravolta da chamada Revolução Cultural, entre os anos 60/70, o impacto foi grande na produção cinematográfica. Restrições e revisões, além de problemas estéticos, afetaram o que então saía dos estúdios. Na então chamada China popular, pelo seu imenso território, um cinema ambulante levava para as grandes massas temas inspirados na luta cotidiana pela sua emancipação. Vários diretores e técnicos ocidentais trabalharam na China por essa época. Durante o governo de Mao-Tse-Tung já eram produzidos cerca de cem filmes por ano. Lembre-se que um dos melhores realizadores holandeses, Joris Ivens, mestre do cinema documentário e grande sucessor de Robert Flaherty, trabalhou por um bom tempo em estúdios chineses.

Enquanto isso acontecia na China, em Hong-Kong, fazia-se o chamado cinema de ação, baseado em modelos hollywoodianos, aos quais se juntavam ingredientes estéticos chineses. É dessa época, anos 70, o estilo wuxia, de onde sai o kung fu, uma mistura de luta de espadas e misticismo.

Nesse período tivemos a ascensão e a morte de Bruce Lee. Nos anos 80, surge Jackie Chan, um cinema urbano, onde se misturam acrobacias, palhaçadas e lutas.

Histórias de policiais e gangsters (John Woo) comandam a produção de Hong-Kong entre 1980 e 1990.

Este cinema, entre 1990 e 2000 começou a ser “levado a sério” por alguns cineastas ocidentais, indo trabalhar em Hollywood alguns diretores de Hong-Kong. Foi neste lixo cinematográfico, por exemplo, que Quentin Tarantino, queridinho de uma crítica cinematográfica totalmente alienada, se inspirou em 2002 para fazer os seus Reservoir Dogs (Cães de Aluguel), de 1992 e Kill Bill 1 e 2, de 2003 e 2004.

No restante da China continental, onde se fazia um cinema mais comprometido com a vida social, em 1980, a produção cinematográfica enfrentou a pressão de novos meios de comunicação, de novas formas de entretenimento das massas. Criou-se então um ministério para cuidar das transmissões radiofônicas, do cinema e da televisão.

Entre 1980 e 1990, aparece na China um grupo de cineastas que, com seus filmes, um pouco mais soltos, incorporando temas até então só abordados no ocidente, aumentou bastante a aceitação mundial do cinema chinês, obviamente quando pensamos num público mais selecionado e informado. Esse grupo ficou conhecido como a “Quinta Geração”. Dominando perfeitamente as modernas técnicas, descartando os métodos tradicionais de narração, desse grupo saíram bons filmes como Adeus, Minha Concubina e Lanternas Vermelhas.

Em 1992, Zhang Yimou, com A História de Quiu Ju, conquistou o prêmio máximo em Veneza.

A partir dos anos 90, aparece a chamada “Sexta Geração”. Grande parte da produção dos cineastas deste grupo, bem diferente da do grupo anterior, é barata, os filmes são realizados com certa rapidez, lembrando em alguns pontos os chamados filmes B do cinema americano. O cinema “câmera na mão” é priorizado, sendo grande a influência do documentário. Os ambientes sugerem bastante os do cinéma verité dos franceses e os do neo-realismo italiano. Locações externas, nada de embelezamentos, efeitos especiais e enganações para “encantar” o público. Embora façam parte do mesmo grupo, os diretores da “Sexta Geração” são muito individualistas, “cada um na sua” parece ser o lema. De um modo geral, todos são anti-românticos, postura que tem muito a ver com os temas escolhidos, questões urbanas, a desorientação dos que vivem nos populosos centros, os problemas que o progresso traz, filmes que, no seu conjunto, refletem as contradições decorrentes do acelerado ingresso e participação da China no mercado capitalista moderno.

O cinema de Jia Zhang-ke, diretor de Em Busca da Vida, faz parte do que esta última geração vem produzindo de melhor. Antes, ele havia feito Plataforma e Prazeres Desconhecidos, exibidos no Brasil. Com estes filmes, Jia procurou questionar o que significava ser jovem numa cidade de província, numa China que mudava espantosamente, com os maiores índices mundiais de crescimento econômico.

Em Busca da Vida foi realizado em 2006. A velha cidade de Fengjie está prestes a ser inundada pela água de uma barragem hidroelétrica, mas as construções que abrigariam a população deslocada ainda não estavam de todo prontas. Os que abandonaram as suas casas deixaram coisas que ainda poderiam ser salvas. Han Sanming, trabalhador numa mina de carvão, viaja para encontrar a sua ex-mulher, que não vê há dezesseis anos. Eles se reencontrarão no rio Yangtze. Já a enfermeira Shen Hong dirige-se para lá com a intenção de visitar seu marido, que nos últimos dois anos não dera notícias.

O grande tema de Em Busca da Vida é o das pessoas deslocadas, que, num país que procura queimar etapas para se tornar uma das maiores economias do mundo, perderam suas referências históricas e geográficas, além dos desajustes afetivos e materiais que tudo isto causa, empurradas de um lugar para outro, em busca de empregos, tentando refazer suas vidas, reencontrar pessoas perdidas.

A temática de Em Busca da Vida não é nova no cinema e situações como a narrada no filme são constatadas diariamente em vários países, principalmente nos denominados emergentes, outrora de segundo e terceiro mundo, que se industrializaram e que procuram continuar se desenvolvendo. Os países emergentes, lembro, têm uma economia forte, muitas vezes comparada com a de países do primeiro mundo, têm parques industriais complexos e são exportadores tanto de maquinaria como de matéria-prima, como é o caso do Brasil (hoje, a décima economia mundial).


Em Busca da Vida só poderá ser corretamente apreciado se levarmos em consideração o que está no parágrafo anterior. A China faz parte do que em economia se convencionou chamar de BRIC*, uma sigla que compreende quatro países, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China. Estes países vêm se destacando no cenário mundial por um rápido crescimento de suas economias. Enfrentam, contudo, grandes problemas de infraestrutura, enormes carências, muitas vezes um conjunto precário de elementos estruturais que deve suportar este crescimento, energia elétrica, usinas, sistemas de saneamento básico, estradas, portos, aeroportos, tecnologias de informação etc. Esta é na realidade a temática do filme. Enquanto os donos do poder, o chamado primeiro mundo, acharem que índices econômicos, como o PIB e outros, são sinônimos de progresso, de qualidade superior de vida, dramas como o apontado no filme se repetirão. Se considerado no seu conjunto, como bloco econômico, o BRIC, dentro de três décadas, deverá ultrapassar os USA e a Europa, passando a China a ocupar provavelmente o primeiro lugar no ranking das maiores economias do mundo. A China se encontra hoje na fase de transição do capitalismo de Estado para o brutal capitalismo de mercado.



No Brasil, lembro, em 2003, fez-se um filme com tema semelhante, Os Narradores de Javé (direção de Eliane Caffé), que tratava da desapropriação de uma pequena cidade da Bahia, destruída pelas águas de uma represa. Seus moradores, sequer notificados, não seriam indenizados porque, embora ali vivendo há muito tempo, não possuíam registros nem documentos das terras.

Em Busca da Vida ganhou o Leão de Ouro em Veneza em 2006. Boa parte da crítica cinematográfica, que segue a pauta hollywoodiana, usou o filme e a sua premiação para falar mal do governo chinês, da sua desumanidade, do regime de quase escravidão a que eram ou são submetidas grandes parcelas de sua população para chegar ao topo na economia mundial. Ora, essa crítica esquece-se, ignora totalmente, melhor, que o modelo chinês nada mais é, em escala gigantesca, que aquele aplicado pelos países do ocidente (tão cultos e adiantados, posando de moralistas e campeões da liberdade hoje) para a sua industrialização. Uma industrialização, lembremos, que no séc. XIX, incluía praticamente a escravização da classe trabalhadora, importação de mão-obra, barata, colonialismo, guerras de conquista etc. Hoje, como se sabe, além de alguns itens dos sécs. XIX e XX, como as aventuras bélicas levadas para várias partes do mundo, temos novas formas de colonialismo através da criação de dependência tecnológica (as Webs mundiais de vários tipos) e sua consequente massificação, que muitos chamam de globalização.

Com planos cuidadosamente trabalhados, (há algo de Antonioni nesses planos, sem dúvida) Jia, com um ritmo deliberadamente lento, e com um conhecimento dos recursos do chamado cinema de arte, nos conta a história dessa gente desencontrada que anda perdida em meio às ruínas de Fengjie. Gente com as vidas dilaceradas, esperando encontrar ainda alguma coisa, antes que as águas cubram o que resta dos maiores edifícios da velha cidade.

Jia filma com muita sobriedade, sem nenhuma espetaculosidade, o desaparecimento da cidade. Ele nos mostra uma China que o ocidente não vê ou que não quer ver. O povo, em grande parte desnutrido e ignorante (isto lembra muito o que aconteceu com os índios nos USA e ainda acontece com os nossos, no Brasil), sem escolaridade, famílias divididas ou dispersas, tudo para levar adiante um plano que tem a finalidade de fazer da China a maior potência mundial, a um elevado custo humano e social, um custo muito difícil de avaliar, mas do qual Jia nos fornece alguns dados importantes. Lembremos que por esta teimosia de Jia, de nos revelar o “outro lado” do milagre chinês, seus três últimos filmes foram banidos dos cinemas do país.

Jia nasceu em 1970 e é a principal figura da “Sexta Geração”. Reconhecido hoje internacionalmente, é sempre citado como um dos melhores diretores do mundo em ação. Desde os tempos de estudante da Academia de Cinema de Beijing, quando fazia cinema underground, ele vem dando demonstrações de grande virtuosismo na direção de filmes, sendo justificada a sua premiação em vários festivais no mundo todo.

Os grandes temas de Jia continuam sendo a alienação da juventude, a história contemporânea da China e o fenômeno mundial da globalização. Sua linguagem se caracteriza por planos longos, por um tratamento formal minimalista das imagens e por um estilo realista, tendo algo a ver, me parece, com o pessoal do Dogma 95, de Lars von Trier. A esse tratamento Jia dá o nome de “autêntico”, um tratamento que o leva a procurar compreender o que vem acontecendo à China do séc. XXI, um cinema que tende por isso, fortemente, ao documentário.


I WISH I KNEW

Segundo notícias recentemente veiculadas por jornais, Jia apresentou no festival de Cannes que ora se realiza (maio de 2010) um filme (I Wish I Knew), em que continua a abordar os problemas do crescimento econômico da China, a grande prioridade que lhe é dada pelo governo, e os problemas sociais que que tal prioridade acarreta. A crítica cinematográfica ocidental mais lúcida vem considerando o filme como muito bom, de técnica refinada, como sempre. Jia, como se depreende das informações recebidas, continua comprometido com as questões humanas, pondo em relevo, como indagação, com o seu cinema, perguntas que nos parecem fundamentais: até onde as questões econômicas deverão se impor na condução dos destinos de um país? Até onde a vida das pessoas e das coletividades poderá ser afetada, prejudicada, em nome do “progresso”, todo ele centrado em índices econômicos. No Brasil, por exemplo, desmatar até onde? Será que o grande prêmio “Motosserra de Ouro” ninguém tira de nós? Grandes problemas, sem dúvida, para todos os membros do BRIC. Até onde podemos atrelar a qualidade de vida de um povo ao PIB de um país? Jia, pelos temas que aborda, é, sem dúvida, um cineasta que cabe em qualquer cultura, merecendo ocupar um lugar de destaque no grupo dos cineastas-historiadores, junto de gente como Costa-Gavras, Jean Renoir, Abel Gance, Gillo Pontecorvo, Eisenstein, Mario Monicelli, Luchino Visconti, Marco Bellochio e muitos outros.



Ciclo de cinema 2010 - Lita Projetos Culturais
*Em abril de 2011, a sigla BRIC virou BRICS com a entrada da África do Sul no grupo.