quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O CANDOMBLÉ

NAVIO NEGREIRO


No final do século XVI, os primeiros navios portugueses com seus porões cheios de escravos chegam ao Brasil. Provenientes de várias etnias, traziam eles para a nova terra em que, à força, passariam a viver suas concepções de mundo, suas crenças, suas divindades. Dentre as raças que vieram destacamos, como principais, Jejes, Iorubás, Fons, Angolas, Haussás, Fantis, Ashantis, Malês, Fulas e Congos.

Corria o ano de 1538 quando aqui chegou a primeira leva de escravos. Vinham de São Tomé. As levas sucessivas, ao que parece, eram parcialmente islamizadas. No século XVII, Angola e o Congo tornaram-se os principais centros abastecedores. Esses negros falavam o Banto, nome de um grupo linguístico nígero-congolês. Até início do século XIX, foi também por via do contrabando que um considerável contingente de negros chegou ao Brasil. Um grande número veio da Costa, daomeanos, nagôs e haussás. A maior parte dos que aqui chegaram se concentrou na região da Bahia, pois os importadores locais mantinham ligações diretas com os reis de Daomé. É devido a essas importações que vai se destacar o modelo nagô como básico para a evolução posterior dos cultos africanos entre nós.

Aqui chegados, foram os negros se misturando segundo os interesses dos mercadores, espalhando-se pelas senzalas da Bahia, de Pernambuco, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, pelo sul. Traziam eles certamente concepções religiosas antiquíssimas, muito semelhantes àquelas que vamos encontrar no patrimônio de populações já instaladas no continente africano muito antes da unificação das tribos egípcias por volta de 3000 aC. Semelhantes também as suas concepções, como se constatou posteriormente, às das populações negras drávidas que viviam a leste do Rio Indus e abaixo do Ganges, antes da invasão dos árias indo-europeus.

Luís Viana Filho, na sua obra "O Negro na Bahia", compõe o seguinte quadro relativo à entrada de escravos no Brasil: l) séc. XVI - Ciclo da Guiné; 2) séc. XVII - Ciclo de Angola; 3) séc. XVIII - Ciclo da Costa da Mina e do Golfo de Benin. Ao todo, foram trezentos anos de comércio negreiro. Extinta a escravidão, abandonado socialmente, não sendo uma mão-de-obra especializada, marginalizado, o negro de aculturou mal e precariamente, sempre marcado por preconceitos de cor e religiosos pelo mundo branco.



O aparecimento dos chamados cultos afro-brasileiros se dá dentro desse quadro histórico, caracterizado, quanto aos negros, por cruzamentos vários e sucessivos, misturando-se as etnias, já que os senhores as incentivavam como um meio aumentar numericamente a mão-de-obra escrava. A mistura desordenada de etnias, praticada como um processo de desculturação criou uma certa confusão linguística, dando origem ao chamado dialeto das senzalas, aos poucos, porém, em cerca de dois séculos, silenciado pelo crescente uso da língua portuguesa.

De um modo geral, ainda que consideradas as diferenças entre as crenças das várias etnias que para cá vieram, havia entre elas quatro importantes pontos em comum. Acreditavam todos num Deus único, uma energia primordial criadora, que se ordenava por si mesma; tinham um panteão de deuses, que administrava tudo o que entrava na existência, desde a ordem cósmica aos reinos mineral, vegetal e animal, neste último se encaixando o ser humano, com seu corpo, mente e emoções; acreditavam na existência de dois mundos distintos, um visível, o material, e outro invisível, o espiritual; traziam todas, mais ou menos, elementos islâmicos.

Estas concepções, como se pode constatar até com certa facilidade, se aproximam bastante daquilo que os hindus chamam de Brahman, a imensidade, o substrato comum de toda a existência. O espaço, o tempo e a consciência que tudo percebe podem ser considerados como aspectos diversos desse substrato, que jamais poderá ser verificado na sua expressão última, pois ele se encontra sempre além dos nossos meios de percepção e de todos os métodos de investigação que possam ser criados.

Antecipando-se aos conceitos mais atuais da Física moderna e aproximando-se também de algumas formulações da Filosofia grega (Plotino, um “hinduísta” perdido na filosofia grega), achavam que no universo tudo é uma integração e a mesma coisa, do átomo (grão de areia no dizer deles) às estrelas. O que vemos, o aspecto visível das coisas, é apenas a transformação incessante das coisas, tudo animado por uma força inteligente chamada "muntu", que é representada pelos entes intermediários (orixás), pelas entidades tutelares familiares e pela energia primordial, Deus.

Nas grandes plantações de cana e de fumo, que precisavam de muita mão-de-obra, os negros foram se agrupando. Alguns historiadores calculam que no Nordeste açucareiro cada engenho dos maiores chegou a ter mais de mil escravos. Foram eles, aos poucos, se juntando em "nações" e conseguindo celebrar as suas festas. Nas cidades, a Igreja organizava as Confrarias dos Pretos, que tinham suas capelas, podendo eles realizar ao lado delas os seus folguedos, tudo sob a supervisão dos padres. Contudo, ignorando os idiomas e os costumes dos negros, os padres não percebiam que determinadas celebrações, tendo por centro figuras religiosas, como a Nossa Senhora do Rosário, eram cerimônias que no fundo resgatavam as suas crenças. Assim, dançavam para São Benedito, ao ritmo do toque de Oxumaré. Não podendo invocar de modo explícito os seus orixás, punham no lugar deles os santos da Igreja.

Tudo isto, com o correr do tempo, foi produzindo um vasto sincretismo. Nas regiões onde a influência indígena era grande, Norte e Nordeste, fazia-se o culto dos espíritos dos caboclos, cultos que se expandiram bastante. Esclareça-se que caboclo é o orixá que aparece nos candomblés onde a influência ameríndia é grande. Jogados nas senzalas e, depois, dispersos nos centros urbanos, os negros foram superando as suas diferenças linguísticas e reconstituindo a sua religiosidade, incorporando inclusive elementos da religião dos brancos. O lugar onde se realizava o culto e o conjunto das cerimônias, a liturgia, recebeu o nome de Candomblé, a religião dos negros nas terras brasileiras. Segundo o estudioso Edison Carneiro, o primeiro Candomblé surgiu no Brasil em 1830, na Bahia. Antes de prosseguir, um esclarecimento: orixá é a designação genérica das divindades cultuadas pelos iorubas do sudoeste da atual Nigéria, do Benin, do Togo, trazidas para o Brasil pelos negros que vieram dessas áreas e aqui incorporadas por diversas seitas, que fazem a intermediação entre os homens e as forças naturais e sobrenaturais. Dá-se o nome de orixá de frente a um protetor de um filho ou filha de santo (na hierarquia do candomblé ou da umbanda, uma espécie de sacerdote).

Para entender melhor a questão do sincretismo que ocorreu no Brasil devemos relacionar os seguintes pontos: 1) vieram para o Brasil cerca de 3 milhões e meio de negros; 2) o número de missionários religiosos portugueses no Brasil era muito reduzido; os que vieram se preocuparam muito mais com a catequese dos índios que com a dos negros; 3) ainda que proibidos de falar seu idioma e de praticar atos religiosos, os negros, em muitas paróquias, conventos e comunidades sempre conseguiram se organizar (confrarias dos pretos), mantendo sub-repticiamente as suas tradições religiosas; 4) a maior parte dos escravos se concentrou em trabalhos agrícolas ou foi distribuída nos meios urbanos, o que sempre facilitou a sua agregação; um número bem menor se fixou em atividades pecuárias e mineradoras, nas quais os contactos eram mais difíceis; 5) a adoção forçada ao catolicismo pelos escravos ocorreu apenas exteriormente na maior parte dos casos; 6) a diversidade de etnias; 7) a religião dos aborígenes brasileiros; 8) elementos tomados do Catolicismo; 9) elementos tomados do Ocultismo e do Espiritismo. Cerca de sete sistemas religiosos se montaram a partir do sincretismo verificado. Os mais importantes são o Candomblé e a Umbanda.


IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS


O CANDOMBLÉ


O Candomblé (etimologia controvertida) desenvolvido no Brasil tem características iniciáticas. Nisto, podemos aproximá-lo, sem dúvida, das mesmas religiões de mistérios que encontramos no mundo grego e mediterrâneo sob os nomes de Mistérios de Eleusis, Mistérios da Samotrácia, de Isis e outros. Seus segredos (eró) só podem ser transmitidos ao adepto por um mistagogo, um iniciador, um professor de mistério, palavra grega que quer dizer iniciação. Seu caráter é, portanto, esotérico, sedo bastante demorada a iniciação. Basicamente, o Candomblé é a recriação em terras brasileiras da religiosidade africana, centrada no culto dos orixás. O cerimonial é realizado num espaço e tempo determinados com o objetivo de obter a manifestação dos orixás, trazendo-os ao mundo visível, recompondo-se, assim, a unidade do universo.

A participação no Candomblé é voluntária, sendo o sacerdócio (os que provocam o sagrado) exercido pelos membros do terreiro, todos procurando atrair as bênçãos e benefícios dos orixás. Como tal, o Candomblé é uma religião, ao procurar unir o "ayé" ao "orum". O primeiro é a terra, lugar dos fenômenos visíveis, onde vivem as criaturas. O outro é o Além, incomensurável, inapreensível, o lugar das energias, onde vivem os orixás e os espíritos.


COMIDA DE OXUMARÉ

No começo, os dois mundos estavam unidos. Um casal sem filhos pediu que Oxalá, o Criador, lhes desse um filho. Este casal vivia entre os dois mundos. Assim lhes foi concedido, sob a condição de que a criança não saísse nunca dos limites do "ayé". Na juventude, o filho do casal que há muito insistia em sair do limite que fora assinalado, acabou ultrapassando-o, invadindo os demais espaços. Pôs-se inclusive a desafiar a divindade. Oxalá lançou então seu cajado (opaxoró), separando os dois mundos e interpondo entre eles o espaço atmosférico. Cometido o primeiro "pecado", o do orgulho, a humanidade vem, desde, então, procurando recompor a unidade perdida, de modo a assegurar a passagem das mensagens de um mundo para o outro, a aumentar as trocas entre eles. Isto é feito pela condensação e pela distribuição da energia, da força sagrada (axé), presente em toda a criação. A representação desse acontecimento é feita através de uma cabaça dividida, mas ligada, colocada no altar (peji). O bastão de Oxalá tem na sua ponta superior uma pomba de asas abertas, simbolizando o "axis mundi", figura que encontramos em várias outras tradições orientais e europeias. A totalidade, isto é, os dois mundos, o visível e o invisível, é composto de nove planos superpostos, atravessados pelo cajado de Oxalá. Quatro espaços situam-se abaixo da terra e quatro acima. O quinto espaço é o dos humanos. Os mortos são filhos da terra e se transformam em manes, voltando para aconselhar e guiar seus descendentes


ACARAJÉ - COMIDA DE IANSÃ

Manes, entre os antigos romanos, eram os espíritos dos mortos, considerados bons, benevolentes, que subiam (manare, em latim, é sair do mundo de baixo para o mundo de cima) para ajudar os vivos. Entretanto, como vários registros nos contam, quando esses espíritos assumiam a condição de “manes”, eles manifestavam muitas vezes, abertamente, com relação aos vivos, a sua insatisfação, o seu inconformismo, o seu ressentimento. Daí, as várias festas que se realizavam em Roma para apaziguá-los, para fazer com que retornassem ao mundo ctônico.

Os orixás são os donos do "ori", o alto da cabeça. Lembremos que segundo a tradição hinduísta, o chakra coronário, "brahmarandra", correspondendo à glândula pineal, é simbolizado astrologicamente pelo planeta Netuno. Os orixás, encarregados de manter a ordem cósmica, são muitas vezes chamados de encantados, anjos da guarda, santos etc. São seres primordiais, administram a criação, muito semelhantes aos que encontramos na religião do antigo Irã. Tudo o que existe, da menor partícula do universo à maior, tem o seu orixá. Tendo atribuições e poderes, há uma hierarquia entre eles. Os orixás masculinos ligam-se ao fogo. Os femininos ligam-se à água, matéria-prima básica, ora associada à terra (Nanã), ao fogo (Iansã), ao ar (Yemanjá), exceção feita a Oxum (água pura).


Olorum é o dono do outro mundo (oló, senhor, orum, outro mundo); são dele toda a existência (iwa), a força sagrada (axé) e a permanência (abá). As primeiras emanações de Olorum são Oxalá e Odulua, constituídos numa trindade. Olorum é o demiurgo por excelência, que está em todos os lugares e em lugar nenhum. Não tem sexo, unindo o passivo (Odulua) e o ativo (Oxalá). Cosmogonicamente, no princípio, só o vazio, a indiferenciação. Olorum gerou então o primeiro movimento, descrição muito semelhante à que encontramos no Rig-Veda. Parte desse movimento, o ar infinito, se transforma nas águas primordiais, Orixinlá. Misturando-se estas àquele, surge a "prima materia", sem forma, pastosa, avermelhada, nela aparecendo um ser primordial, modelo de todos os demais, Exu.


OGUM

Os domínios de Oxalá são formados pelo ar e pela água, enquanto os de Odulua o são pela água e pela terra, sendo o primeiro, portanto, o masculino universal e o outro o feminino primordial. Desse primeiro par divino surgirão os outros orixás, a partir da mãe celeste gerada por Odulua, Yemanjá, orixá feminino das águas salgadas, dos oceanos e dos mares e das águas em geral. Simbolizada por âncoras, barcos e peixes, sua cor é o azul celeste, seu metal a prata, sendo a sua força a da maternidade, presente na água salgada, a origem de toda a vida. No Catolicismo, associa-se Yemanjá à Imaculada Conceição e a Stella Maris. Matronal, Yemanjá tem seios volumosos, símbolo da maternidade fecunda e nutritiva. Vingativa se algo a incomoda, mas capaz de esquecer logo a ofensa. Deve ser reverenciada pelas pessoas que dependem do mar para viver. Seus "filhos" são fortes, vigorosos, altivos, às vezes impetuosos e arrogantes, podendo mudar muito o seu humor. Sérios, preocupam-se com o próximo.

YEMANJÁ

Como nas divindades hinduístas, em algumas entidades do Candomblé o feminino (shakti, dos hindus) e o masculino coexistem. Oxalá tem a sua metade feminina, Nanã, a terra-mãe ancestral (Geia entre os gregos), é aquela que vai receber o corpo físico quando da ocorrência da morte. É a mãe que retoma o corpo de seus filhos. Como a mais velha dos orixás femininos, é uma espécie de avó. São dela a chuva, as águas doces, os pântanos, a lama, a massa informe, os lugares de fermentações, a fecundidade, enfim. Sua a cor é o negro, como a das famosas Mães Negras da Europa pré-cristã. Nanã lembra sempre que a vida nasce da morte. Sua comida tem por base o peixe de água doce em postas, acomodadas em rodelas de cebola (a criação a partir de um núcleo).


OXUM

O princípio masculino gerado a partir de Odulua, a Grande-Mãe, é Oranyã, que se une incestuosamente a Yemanjá, sua irmã, nascendo dessa união os demais orixás. Yemanjá é a maternidade concretizada, suas cores são o azul-claro ou verde-claro e o branco, translúcidos. Alquimicamente, sua união com Oranyã é a dinamização da água e do ar pelo fogo. Nanã, por sua vez, é a maternidade em potência, não tem esposo, como Yemanjá também não. Nanã é calma, solene, não se vê o seu rosto, sempre coberto por um véu de palha com miçangas. Pessoas tuteladas por Nanã são calmas, mas podem se tornar terríveis nas suas vinganças.



Já Oxum e Iansã aparecem como complementos de um ou mais orixás masculinos. Oxum tem como símbolos o espelho, o ouro e o dinheiro. Sua cor é o amarelo, tendo relação com riqueza e negócios. Relaciona-se no Catolicismo ora com a Imaculada Conceição, ora com N.S. das Dores. O reino de Oxum está nas cachoeiras ou na água calma dos remansos dos rios, lugares em que seus "filhos" encontram a sua força particular (axé), lavam as suas ofensas e pedem graças. Oxum é a grande protetora da gravidez; a retenção do sangue menstrual é dela. Seu alimento é o mel, sangue vegetal, nutriente. Seu símbolo é um peixe mítico, que aparece no seu leque, pintado ou como pingente. A cor áurea lhe pertence, assim como os metais guardados no ventre da Terra, fazendo-se suas jóias de ouro, prata envelhecida e cobre. Meiga, é o arquétipo da esposa. Harmoniza-se com Xangô, complementando-o, condição que compartilha com Obá e Iansã.

Iansã é o feminino livre, independente, espantosamente semelhante à deusa Ishtar, da antiga Mesopotâmia, com alguns traços da Afrodite grega. Mulher-amante sensual, impetuosa, podendo ser violenta. Não é do lar, é guerreira. Suas águas são tempestuosas e tem por atributo o raio e os ventos. O vermelho e o branco são dela. Seus principais temas são a paixão e a guerra. Relaciona-se com o mundo dos mortos, tendo poderes sobre os espíritos (eguns), podendo ser invocada para conter aqueles que depois de mortos mantêm-se apegados ao mundo dos vivos. O raio tanto é dela como de Xangô (orixá da justiça). Seu metal é o cobre. Usa uma espada curva, um leque e um chicote de crinas para varrer os espíritos. O acarajé é a sua comida predileta. No Catolicismo é Santa Bárbara.

Um dos mais fantásticos orixás é Ogum. Na África, divindade do ferro, uma espécie de patrono da tecnologia, protegendo todos os que manejam ferramentas, armas, espadas, que conduzem veículos. É assimilado a São Jorge. Em todas as lutas, Ogum (guerra) e Exu (magia) são particularmente invocados. A violência e o assassinato são dele, mas nunca praticados gratuitamente. Positivamente, é um herói civilizador, inventor da metalurgia e da técnica. Sete é o seu número, sendo seu emblema uma penca de sete ferramentas em miniatura. É o transformador da madeira em objeto úteis. As palmeiras são dele, várias cantigas o descrevem vestido de franjas do dendezeiro. Em qualquer hipótese, ele representa sempre o confronto, inclusive em níveis profundos da consciência. Guarda todos os limites, inclusive o dos cemitérios. Com relação às três cores do mundo, a Ogum cabe o vermelho (luz, energia, força). O negro será algo a ser transformado em ato, sendo visto como um possível; o branco é a luz manifesta.



Justiça está nas mãos de dois orixás, Xangô e Oxalá. O primeiro tem por símbolos o machado e a balança, sendo suas cores o vermelho e o branco. Poderoso e impulsivo, irrita-se com facilidade. Castiga tudo o que se desvia da retidão, os mentirosos, os ladrões. Seus "filhos" são enérgicos, conscientes de sua importância e de suas obrigações, com um profundo sentimento de justiça. Devem agir com uma severidade benevolente. No Catolicismo é São Jerônimo, Moisés entre os judeus, lembrando também muito o Zeus da Mitologia grega. Ligado ao trovão, ao raio, ao fogo. O touro é dele enquanto representa poder fecundante (chifres), virilidade, coragem e ferocidade. As pedreiras são dele, como também o são as "pedras de raio" (meteoritos), com as quais se fazia o seu machado de duas lâminas opostas (o "labrys" cretense). A grande parceira de Xangô é Iansã, podendo ele unir-se também a Oxum, Obá e mesmo Yemanjá.




OXUMARÉ

Oxalá (Cristo), o branco e o dourado são dele como as cores dos começos; dono da sabedoria que a velhice deve dar. Símbolos: o olho, a pomba e o bastão. Reina sobre o céu como envoltório da Terra; é luz, tranquilidade. Orixá criador, gera os seres no plano físico ou espiritual, Sua fecundidade se dá pelo som. É o Verbo, tendo outros símbolos o cajado, o opaxoró (cetro do mistério) e o asum, barra de metal com sinos. Deus da brancura na qual se incluem todas as cores. A vida e a morte se abrigam sob o seu pálio, sendo uma imagem da totalidade. O dia de Oxalá é a sexta-feira. O inhame é dele, comido, nas suas festas, com o ebô, feito de farinha de milho branco, sem sal, ao qual, às vezes se acrescenta feijão-fradinho torrado e azeite de dendê; é o prato votivo de Oxalá, também de Iemanjá (com azeite de oliveira ou mel) e de Oxumaré (com coco). O caracol comestível é o seu alimento preferido. Orixá de todas as potencialidades tornadas concretas, Oxalá preside à criação dos seres, dos ritos de iniciação e dos ritos que visam ao renascimento dos adeptos. Enquanto Exu é a transformação, a dinâmica da vida, Oxalá é a origem, a criação, a totalidade.

Oxossi recebeu o domínio das matas, tendo a ver com os animais selvagens e com a caça. São dele também todas as técnicas, cabendo-lhe inclusive a caça às almas que se desgarram. Aparece sob os traços de São Jorge, como Ogum. Fazendo parte do grupo de orixás ligados à vegetação, encontramos Ossaim, cujo habitat é o mato, onde é senhor das plantas selvagens que crescem em liberdade. As plantas dos jardins, para Ossaim, perderam sua força sagrada, pois são cultivadas. Para entrar no mato de Ossaim é preciso pedir permissão. Nos rituais dele se usa o "sangue" escuro das ervas. Ele é dono das plantas em cujas folhas está o axé. Ossaim é a totalidade dos mistérios e das virtudes da vida vegetal. Note-se, porém, que é dentro do mundo de Ossaim que cada orixá tem a sua planta, isto é, a sua folha. Por exemplo, a imbaúba é de Xangô; o tabaco, de Iansã; a urtiga, de Ogum; o nenúfar, de Iemanjá; o mal-me-quer, de Oxum... Dentro do mundo vegetal atuam também Ofá e Dadá, ligados tanto a remédios como a venenos, bem como a filtros que estimulam a fecundidade ou a interrompem.

Omolu é o orixá dos males, das enfermidades. Sua figura e seus ritos estão rodeados de mistério. A simples menção de seu nome já é um risco. Exerce o controle sobre os males, especialmente sobre as epidemias, podendo causá-las ou curá-las. Seu poder atua através da vida coletiva. É visto como um velho, inoportuno, resmungão, vingativo. Seus fiéis são pessoas solitárias, introvertidas, taciturnos, austeras, que protegem muito a sua intimidade. Suas cores, o negro e o marrom. No Catolicismo, é São Lázaro. Já Obaluaiê é o orixá ligado a Oxossi, tendo a ver com o desconhecido da morte, com lugar para onde voltarão os espíritos, sendo o depositário do segredo do que acontecerá no ciclo seguinte ao da morte. Obaluaiê tem poderes de cura, sendo o médico dos pobres. Sua comida é a pipoca.

Oxumaré e o arco-íris, grande serpente que envolve a terra e o céu, garantindo a unidade do cosmos e a sua constante renovação. Tira a água da terra, levando-a para o céu, de onde voltará sob a forma de chuva. Participando da água (terra) e da luz (céu), é um orixá duplo, representando a união dos contrários. É uma serpente mítica, forma que toma para viver nas florestas, durante metade do ano. Na outra metade, vive como uma bela jovem, ninfa de rios e de lagoas. Sua dança, para muitos, é a mais bela do Candomblé.

Bará é o mais humano dos orixás, dinâmico, jovial, oscila entre o bem e o mal. É o guardião dos templos, das casas e das cidades, sendo o intermediário entre os homens e as divindades. A ele devem ser feitas oferendas antes do início de qualquer trabalho para que abra os caminhos. Conforme o tratamento que recebe, abre ou fecha, isto é, facilita ou complica. Seu símbolo é a chave, sua cor é o roxo, associado no Catolicismo ora a São Pedro, ora a Santo Antônio.

O mais complexo e incompreendido dos orixás é Exu, o portador da força que permeia todos os aspectos e estados da existência. Alguns não o vêem como orixá, mas como a personificação do princípio da transformação, participando de tudo o que existe. Como tal, é preexistente à ordem do cosmos. Múltiplo, multifacetado, concede apoio mediante uma renovação constante dos sacrifícios que lhe forem feitos. Transforma-se sem cessar, mudando tudo a seu bel-prazer, enredando e desenredando. Lembra muito o Hermes grego. A "abertura da fala", na iniciação, para que o orixá venha a se manifestar é dele. Patrono da magia, é o mediador entre todos as partes, deus de todos os orifícios do corpo, das portas, dos orifícios e buracos; mensageiro, encarrega-se de levar o pacote dos despojos nos rituais fúnebres (Eleru, o Senhor do carrego). É o Senhor de todas as direções e de todas as encruzilhadas (Exu Lonã, Senhor do caminho). Possui um bastão que o transporta para onde quiser. A atividade sexual tem relação com ele enquanto comunicação e multiplicação. Seu símbolo é um montículo de barro com ferros fincados. A cerimônia que a ele se dedica, antes do começo de qualquer culto, privado ou público, tem o nome de "padê", que quer dizer reunião. Suas cores são o vermelho e o negro, tendo sido por isso associado erroneamente ao Diabo pelos cristãos. Exu confunde-se com a própria existência, com as suas permanentes contradições e sínteses. No Candomblé e nas seitas afins, dá-se o nome de ebó ao sacrifício de um animal votivo dedicado a um orixá, ou oferenda feita em sua intenção. Comumente, o nome ebó é mais aplicado às oferendas (despacho) que se faz a Exu em agradecimento ou como convocação dele para a realização de algum trabalho. O nome também se aplica a despacho com intenção maléfica (bozó, canjerê) ou para desfazer algum mal. Canjerê é agrupamento de pessoas para a prática de feitiçaria, mandinga, também nome de uma comida preparada com amendoim, camarão seco e castanha.

As entidades femininas são designadas pelo nome genérico de Aibás, Rainhas, simbolizadas por uma cabaça com um pássaro no seu interior, simbolizando o ventre fecundado, sendo elas as donas do mistério da gestação. Os humanos costumam chamar os orixás de Baba mi (meu pai) ou de Iyá mi (minha mãe). No processo de individuação, o orixá é um eledá, o agente dessa individualidade, entendido que o ser humano provém da mesma substância de que são feitos os orixás. Cada ser humano tem, portanto, uma origem divina, e por isto está ligado à divindade. A parte mais importante do corpo é a cabeça (ori), lugar da individualidade. No nível do transcendente, todo ser humano tem um duplo espiritual que lhe é correspondente. O ser humano reside sempre em dois planos, no concreto e no espiritual.

Quando nascemos, opera-se uma síntese entre o individual e o coletivo. A substância divina (ipori) em nós concretiza a nossa filiação a uma entidade específica (eledá). A cabeça, intercessão dos pontos cardeais, é, pois, o ponto de encontro entre as forças sagradas e as nossas possibilidades de realização pessoal. Cada ser humano se expressará assim de um modo único na rede de relações que se chama vida. Somos um feixe de linhas convergentes e divergentes. Todo ser humano tem o dever de saber quem realmente é, quem é seu pai espiritual (eledá), que afinidades é preciso respeitar ou aquilo que deve ser evitado, para que possa viver de acordo com a sua natureza mais profunda. A tradição afirma que no momento em que somos criados escolhemos livremente a nossa cabeça (ori) e em função dela o nosso destino (odu). Porém, na hora em que entramos na existência tudo é esquecido. Será preciso recorrer ao oráculo (Ifá, associado no Catolicismo ao Espírito Santo) para obter orientação. O mal provém, deste modo, da ignorância. Exclui-se também a ideia de determinismo. Temos é que procurar saber o que trazemos. Para viver harmoniosamente entre os dois mundos, temos que nos conhecer a nós mesmos, como propõe o oráculo délfico (nosce te ipsum).

No Candomblé, o mundo invisível e o mundo visível não estão completamente separados, há um fio a ligá-los. Este fio é representado pelas cerimônias. Para alguém adquirir o direito de servir de elo entre os orixás e o mundo visível há um longo processo de iniciação (abiã), com inúmeras etapas.

Terreiro é a designação da Casa do Candomblé, local onde se situa um templo para o culto dos orixás. É concebido como uma miniatura da África, sendo uma organização sócio-religiosa, com suas próprias leis e estruturas. De um modo geral, em todos, em que pesem as diferenças, três itens devem ser obedecidos rigorosamente: 1) observar o respeito; 2) ter preceito; 3) guardar segredo. O respeito equilibra os membros do egbé (a coletividade do terreiro), assegurando as relações entre os participantes e o orixá; o preceito conserva o axé, para que o caminho possa ser seguido; o segredo é a chave da sabedoria e do poder, pois onde não há segredo não há poder.

Do ponto de vista político, o babalorixá ou a ialorixá representam o orixá na terra, mantendo um poder que é uma síntese das funções e dos papéis que exerce: centralização do poder, administração, terapia corporal e psicológica, aconselhamento, sacerdócio etc. Seu poder costuma estender-se aos lares dos seus confrades, interferindo em questões econômicas, conjugais, sexuais, de educação dos filhos, uma forte ação pastoral, portanto. O poder costuma ser total e vitalício. Também lhes cabe, muitas vezes, definir em nome do orixá o que se pode comer, beber, usar, falar, fazer, vestir. Tudo, porém, deve ser conduzido com muita cautela para não causar problemas com o orixá ou com a coletividade. Ao lado destas figuras, há outros auxiliares, que procurarão sempre seguir estritamente a orientação da autoridade suprema do Pai-de-santo ou da Mãe-de-santo, fixada inclusive através de um calendário de festividades.

Filha-de-santo nos candomblés de rito nagô é a sacerdotisa preparada para fazer às vezes de suporte físico à descida dos orixás (na Umbanda, médium feminino que em transe faz suporte à encarnação das entidades, divindades ou espíritos, da casa. Dá-se o nome de ebome ao filho, ou, mais frequentemente, à filha-de-santo que atinge sete anos de iniciação, podendo, por isso, receber o decá e tornar-se ialorixá de seu próprio terreiro.